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Macau no mapa do cinema

primeiro Festival de Cinema de Macau, de 8 a 13 de Dezembro, no Centro de Ciências, conta com um orçamento que ronda 80 milhões de patacas, maioritariamente suportado pelo Governo e mais de 45 filmes, oriundos de todo o mundo, embora apenas uns quantos sejam aceites para competição. Alvin Chao, estrela junket de Macau (Suncity Group) é a figura de proa entre os apoiantes privados deste evento que terá como director artístico Marco Mueller, com currículo em festivais de grande envergadiura, como os de Roma e de Veneza. Foi ainda consultor no Festival de Pequim, cargo que terá abandonado, alegadamente, por discordar das restrições impostas pela censura chinesa.

Em Macau ouvia-se desde o início do ano falar na hipótese de um festival de cinema que se afirmasse pela diferença e qualidade,  percebendo-se desde cedo o entusiasmo com que a ideia foi acolhida pelo secretário para os Assuntos Sociais e Cultura, Alexis Tam. Mas foi no encerramento do Festival de Berlim, em Fevereiro, que a notícia começou a correr mundo, veiculada pela revista Variety. “Seria, sem dúvida, o menor festival do mundo, não fosse o nome de seu diretor – Marco Mueller”, comentou na circunstância Rui Martins, famoso crítico brasileiro e admirador confesso de Mueller, filho de uma brasileira radicada no litoral paulista e falante da língua portuguesa, embora tenha nacionalidade suíço-italiana. Mueller radicou-se em Itália, mas é muito forte a sua ligação à China, onde fez estudos antropológicos e é reconhecido não só como sinólogo mas também como um dos principais introdutores do cinema chinês nos festivais internacionais.

O Festival Internacional de Cinema de Macau quer mostrar filmes “’mainstream’ mas com uma diferença” e tornar a cidade num ‘hub’ cinematográfico, explicou Mueller na primeira vez que abriu o véu sobre o Festival, em conferência de imnprensa dada em Macau, na última sexta-feira: “Vão ter de ser filmes extremamente acessíveis e ao mesmo tempo extremamente criativos, ‘mainstream’ mas muito originais”. Os filmes serão escolhidos com “tripas, coração e pensamento”, o que significa que o júri vai lançar “um olhar particular sobre o cinema de género popular, mas singular. Não pode ser o simples cinema comercial, tem de ser ‘mainstream’ mas com uma diferença”, sublinhou acerca do evento que conta com uma longa lista de patrocinadores, incluindo operadoras de jogo.

Está prevista a exibição de 43 filmes, em diferentes categorias, incluindo “Dragões Escondidos”, obra dedicada “às últimas tendências do cinema asiático”, e a “Melhor do Panorama do Festival”, com longas-metragens premiadas nos principais festivais de cinema em 2016.

Na secção “Crossfire” serão exibidos 12 filmes oriundos da América do Sul, Europa, Sudeste Asiático e Austrália, recomendados por 12 realizadores asiáticos. “Escolhem um filme que é, para eles, uma referência, que está no seu coração. É uma mistura fascinante que prova que a partilha sempre existiu e Macau é o melhor sítio para isso continuar, para se consolidar de forma diferente do que acontece noutros festivais”

Mueller avisa que o festival vai “começar pequeno”, porque “Macau é um sítio pequeno”. Contudo, “Cannes também era um lugar de praia e de casinos, nada mais”, recordou.

“Vibrante”

Ivo Ferreira, português com o maior palmarés internacional entre todos os realizadores radicados em Macau, fará parte do Comité de Seleção dos filmes, tendo manifestado elevadas expectativas em relação ao evento: “De certeza que vai ser um festival vibrante. O Marco [Mueller] sempre foi um programador louco, ousado, sempre arriscou imenso, é o único capaz de juntar na mesma sessão dois filmes completamente antípodas que ao mesmo tempo se complementam”.

O cineasta está agora a trabalhar no seu novo filme, “todo passado em Macau e sobre Macau”, apesar da “imensa dificuldade em arranjar dinheiro em Macau” para o financiar. “Hotel Império” debruça-se sobre “questões identitárias do território e alguns fantasmas do passado”, explicou. “Embora pareça tristonho, há um lado de esperança, como se a própria erosão urbana acabasse por obrigar as pessoas a tomar uma posição em relação à destruição da cidade”, disse (ver entrevista nas páginas seguintes).

Macau não foi só notícia em Berlim. Pela primeira vez na sua História teve um pavilhão na edição deste ano do Festival de Cannes, a 69ª, que terminou a 5 de Maio última. A Presidente da Comissão organizadora e diretora dos serviços de turismo, Helena Senna Fernandes, esclarece que apenas uma “meia dúzia de filmes estarão em competição”, tendo em Cannes dado uma curta entrevista áudio ao portal RFI – Vozes do Mundo, recordando cerimónias e entregas de prémios realizadas em Macau, tal como o famoso Festival de Bollywood, através do qual a Sands China promoveu os seus casino casinos no mercado indiano. Mas “não foi propriamente um festival organizado por Macau”, frisou Senna Fernandes, razão pela qual “o secretário para a Cultura teve esta ideia de organizar um festival organizado pelo Governo e que, ao mesmo tempo, pode incentivar a indústrria cinematográfica em Macau”, servindo ainda de “plataforma de intercâmbio para filmes internacionais, chineses e asiáticos”.

Ainda sobre Cannes, Helena Senna Fernandes rematou a referida entrevista: “Por um lado, queremos promover as indústrias criativas de Macau. O Governo tem esta ideia de que devemos promover cada vez mais as indústrias criativas e o cinema é uma delas; por outro, estamos aqui também para aprender como realizar um festival, ter contato com pessoas ligadas a esta indústria e, eventualmente, convidá-las a ir a Macau”. O Festival de Cinema, “para além de incentivar a produção local”, promove “o entretenimento” e o “intercâmbio” com outras culturas. “Vamos convidar o mundo para Macau”, concluiu a diretora dos Serviços de Turismo.

O mais importante é que venha para ficar

Ivo Ferreira, o mais premiado e conhecido cineasta radicado em Macau, foi convidado para o comité de seleção dos filmes que serão exibidos no fim do ano  no Festival de Cinema de Macau. O convite a Marco Muller para diretor artístico, diz, garante sê-lo de qualidade e visibilidade internacional. Já quanto ao impulso que o evento pode dar à produção local, alerta, muita coisa tem de mudar para além da realização do festival.

Plataforma – Como é que nasce a ideia deste festival?

Ivo Ferreira – A pré-história deste festival específico nasce de uma vontade do Governo, nomeadamente através do Turismo, de ter em Macau um grande festival de cinema. Entretanto, envolveu-se também a Associação de Cultura e Produção de Filmes de Macau, presidida por Alvin Chao. A presença do Marco Muller, um dos grandes programadores do mundo, que já esteve à frente de grandes festivais como os de Roma, Veneza e Roterdão, entre outros, é muito curiosa. Ele fala português e chinês, pois é filho de mãe brasileira e esteve muito ligado à descoberta do cinema chinês e à sua projeção no ocidente, nomeadamente na Europa – para isso contribuiu também muito Norman Wan, braço direito de Wong Kar-Wai. Além dessa relação com a China, pois foi para lá  estudar ainda durante a sua adolescência, o Marco teve sempre ligações muito fortes a Portugal e ao Brasil.

-Como é que nasceram essas ligações a Portugal?

I.F. – Houve sempre uma relação muito forte com cineastas portugueses. Foi ele que entregou o Leopardo de Ouro a um realizador como José Álvaro Morais; foi ele que primeiro organizou ciclos sobre cineastas portugueses desconhecidos, tais como António Reis ou Margarida Cordeiro. Curiosamente, o Marco tem também uma relação já muito antiga com Macau.

– O velho sonho de um festival de cinema em Macau, na altura alimentado por Paulo Branco…

I.F. – Sim. Essa ligação remonta ainda aos tempos do governador Carlos Melancia que, nessa altura, tinha convidado o Paulo Branco, já em parceria com o Marco Muller, para organizarem aqui em Macau aquilo que à luz da época foi projetado como um grande festival internacional de cinema.

– Plano esse que caiu por razões políticas; ou seja, com a demissão de Carlos Melancia…

I.F. – Sim. Mais tarde, o Paulo Branco volta a propor essa mesma ideia a Macau, também com o Muller. Curiosamente, a associação dirigida por Alvin Chao e o Governo lembraram-se agora de voltar a convidá-lo. É uma solução completamente avisada, porque não se trata agora de ter aqui uma efeméride, como outras que aconteceram em Macau, com festivais que aparecem e desaparecem sem deixar marca. Para já, só o facto de Marco Muller ser o diretor do festival já atrai as atenções de todo o mundo, desde cineastas, produtores e atores, passando por agentes da indústria que veem participar e, depois, projetam Macau no mundo.

– Desta vez, Paulo Branco não faz parte do filme…

I.F. – Paulo Branco é um grande produtor de Portugal e França, para além de ser o diretor do Festival de Cinema de Lisboa e Estoril. Desta vez, o Festival não resulta de uma iniciativa privada – nem do Paulo nem do Marco – mas sim um convite feito ao Marco.

– Em termos de conteúdos, o que se pode esperar deste festival? Qual é a orientação que Muller lhe vai dar?

I.F. – Sendo um grande programador, o Marco é também conhecido por ser muito ousado. Mas ele próprio já admitiu que a lógica programática em Macau será a de um cinema um pouco mais acessível, seja lá o que isso quer dizer.

– Quererá dizer mais comercial?

I.F. – Talvez. Haverá certamente um lado mais comercial, mas também um lado mais regional, privilegiando o cinema produzido e realizado nesta parte do mundo. Sobretudo, a ideia do Festival é ser um hub entre a China e o sudeste asiático com o resto do mundo. Pode ser também importante a ideia de incluir no festival um mercado de financiamento, que naturalmente aproximará os cineastas de Macau e desta zona do mundo a oportunidades às quais de outra forma dificilmente teriam acesso.

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– Como é que funcionam esses mercados de financiamento?

I.F. -.Basicamente, o que se faz nestes mercados é constituir um painel de pessoas, que podem ser produtores, distribuidores, televisões, etc. No fundo, quem vem avalia uma série de projetos cinematográficos pré-selecionados, que podem assim beneficiar de apoios financeiros. Em Macau haverá 15 projetos selecionados para esse mercado, com acesso garantido a essas reuniões.

– Já se pode saber quais são esses projetos?

I.F. – Ainda não. Mas é muito interessante saber que haverá obras de países lusófonos selecionadas para terem acesso a esse mercado de financiamento. De alguma forma, isso também ajuda Macau a cumprir a missão de fazer a ponte entre a China e os Países de Língua Portuguesa.

– Quinze projetos em busca de financiamento é suficiente para um festival desta natureza?

I.F. – Posso dizer que em Veneza, no ano passado, houve cerca de 1.000 projetos a concorrer para uma seleção de 15; sendo que a quota para filmes italianos era de sete filmes, deixando livre uma slot para oito filmes estrangeiros. Em Paris, entre 700 candidaturas, são aceites 12 filmes, quatro deles franceses.

– Haverá uma quota para filmes de Macau nesse mercado de financiamento?

I.F. – Não faço ideia, mas não me parece que haja grande capacidade para concorrerem muitos projetos locais. Contudo, não deixo de achar que seria importante uma atenção especial à produção local.

– Apesar da fama do Marco Muller, um festival afirma-se sobretudo pela qualidade dos filmes e pela presença de grandes realizadores. Ou não é bem assim?

I.F. – Sim. Já agora, há outro fator muito importante e que será um grande pesadelo para um diretor em Macau: a qualidade das projeções. Quando passa num festival, é suposto o filme ter a melhor qualidade de projeção possível em todo o mundo. O Festival de Locarno, na Suíça, que Muller também já dirigiu, tornou-se mundialmente conhecido pela qualidade da projeção conseguida na praça central da cidade. Apesar de ser ao livre, é comovente ver 8/9 mil pessoas, em silêncio absoluto. Não há uma luz que se acenda, um café que sirva; não há uma janela que se abra na praça, nem um ruído que se ouça durante a projeção. É também essa a imagem de marca de qualidade a que Marco Muller nos habitou. Há um lado de transgressão, de cinema de autor, na rua, mas também a qualidade a que ele nos habituou.

– Helena Senna Fernandes, diretora do Turismo, tem destacado a escolha de filmes que tenham cá sido filmados, ou que pelo menos façam referência a Macau. Faz sentido essa estratégia?

I.F. – Com certeza. Faz todo o sentido saber como é que a cidade é vista pelos outros e como é que se vê a ela própria. Passamos todos os dias pela mesma rua, mas quando a vemos num filme isso cria-nos uma relação diferente. Há um processo de distanciamento que nos permite olhar para nós, mas ao mesmo tempo há também uma certa apropriação da cidade.

– Uma cidade sem tradição cinematográfica e um historial de produção muito curto…

I.F. – Curtíssimo! Há aliás aqui um lado curioso que é o facto de o cinema ser normalmente apoiado pela Cultura mas, neste caso, o apoio está centrado no Turismo.

– O que é que isso pode querer dizer?

I.F. – O que é expetável e desejável é que o festival seja capaz de provocar alguma contaminação e que a cidade passe a olhar para o cinema com uma nova energia. Sobretudo porque a partir do momento que cá veem tantos convidados internacionais, é normal que as futuras produções locais venham depois a ter um acesso maior a festivais e uma visibilidade maior no resto do mundo. Era bom que Macau também aparecesse nas primeiras páginas dos jornais sem ser só pelos números do jogo.

-Como dizia Paulo Branco sobre Portugal: só mesmo o cinema, depois do futebol…

I.F. – Exatamente. E é uma questão estatística comprovada: as vezes que Portugal aparece nas primeiras páginas dos jornais internacionais, depois do futebol, é por causa do cinema português.

– Qual é o teu maior desejo em relação a este festival?

I.F. – O mais importante é que o festival dure; que venha para ficar e nunca se transforme em mais um evento efémero, como outros houve em que se paga uma fortuna para uma vedetas cá virem passear e depois não servem de nada nem servem a cidade.

Filmar em Macau é um pesadelo

– Como está a correr a experiência de filmar o teu próximo filme: Hotel Macau?

I.F. – Um pesadelo.

– Porque?

I.F. – Porque a pouca diversidade de financiamento que existe passa por duas ou três instituições. Depois, há uma grande confusão sobre o que é cinema, como se incentiva a produção local, ou que repercussão isso pode ter numa indústria. Tive uma resposta negativa por parte da Fundação Macau que, basicamente, considera o cinema uma indústria que não vê motivos para apoiar. Quando parecia haver um novo organismo e podíamos mandar três cartas e não duas… afinal, estamos reduzidos ao Fundo das Indústrias Culturais.

– Como pode este festival contribuir para uma mudança de paradigma a esse nível?

I.F. – A esperança é a última a morrer.

– Há um declínio da produção cinematográfica mesmo aqui ao lado, em Hong Kong. Isso não emite sinais negativos a uma maior ambição Macau?

I.F. – O cinema em Hong Kong não se compara com o que era há uns anos atrás. Grande parte da produção migrou para a China continental. Quando olhamos para os números, é absolutamente estonteante perceber que ali se fazem 70 a 90 longas-metragens por ano. Contudo, de facto, uma grande parte desse trabalho são comédias de baixíssimo orçamento.

– Se Hong Kong está a cair, como pode Macau se erguer?

I.F. – Nunca será fácil, porque não há infraestruturas, meios técnicos nem humanos. As grandes produções filmadas em Macau trazem de fora as equipas e o material; logo, acabam por não prestar grande serviço a Macau. Não formam cá pessoas, não deixam grande riqueza, nem meios técnicos e humanos que possam alimentar futuras produções.

– Qual é a solução? 

I.F. – Talvez copiar em parte o que aconteceu em Portugal. Através de coproduções, sobretudo com França, produtores como António da Cunha Teles e Paulo Branco formaram uma série de equipas e investiram em meios técnicos. Primeiro serviram o cinema francês, mas acabaram também por servir o cinema português, que com isso cresceu em quantidade e qualidade. 

Paulo Rego

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