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Crónica da crise crónica

João MeloJoão Melo*

Ponto prévio: não se infira a minha simpatia por qualquer dos partidos, movimentos ou pessoas que abordarei.

Em Portugal há dois grandes partidos, PS e PSD. Englobam variadas tendências, possuem implantação nacional e massa crítica nos respectivos aparelhos capaz de produzir governos, aos quais se podem juntar outros mais pequenos através de coligação ou acordo. Geralmente afastados do arco do poder os pequenos têm a possibilidade de fazer valer a sua especificidade contudo também são obrigados a dançar ao ritmo imposto pelos grandes. Sob a direcção de Rui Rio o PSD tem passado uma postura de “Estado”, às vezes até parece defender o governo; porquê? Porque fora a orientação ideológica e as personalidades à cabeça dos cargos, se ele fosse primeiro-ministro o resultado seria sensivelmente igual ao que temos. A principal distinção que tenta transmitir é ética, ainda por cima personificada na sua pessoa, por conseguinte discutível, o que resulta insuficiente para muitos dos seus correlegionários: se militam na oposição porque não serem mais oportunistas? Não se perde nada, antes pelo contrário, toda a gente sabe que caso António Costa estivesse na oposição teria essa postura.

Agora há uma (legítima) revolta popular contra o preço dos combustíveis; alguém acredita que se o PSD fosse governo o preço seria substancialmente mais baixo? E onde iriam buscar receitas para alimentar a máquina do Estado? O país não produz um chavelho, o haver advém da fiscalidade. Com estes dois partidos a liderar governos gastámos décadas a desmantelar o sector produtivo em favor dos serviços, à boleia de uma política supranacional que em troca de subsídios concentrou a indústria na Alemanha, a agricultura na França, a finança no Reino Unido, e permitiu a outros países com grande poder económico terem uma certa autonomia para seguir os seus próprios caminhos, como a Espanha, a Itália, o Benelux e os escandinavos. Se antes do alargamento da UE a 27 a condição periférica de Portugal pesava, administrando-se a conjuntura do momento sem estratégia definida para o futuro, imaginem hoje numa época de profunda crise. 

Estou convencido que um indivíduo, eu ou você que me lê, conquanto se munisse das melhores intenções e competência, logo que chegasse a primeiro-ministro seria manietado pela máquina do Estado; ela é poderosa e segue em modo auto-piloto quer o governante eleito seja A ou B, quem viu a série “Sim, Sr Primeiro Ministro” sabe do que falo. Não é novidade, todos os partidos que pretendem menos Estado apontam o “mal”, a questão é que ninguém tem capacidade para o gerir porque o Estado somos todos nós, e no fundo a grande maioria dos portugueses não quer ou não pode ter menos Estado. É uma contingência adquirida ao longo de séculos e não será por acaso que o panorama se assemelhe ao das nossas ex-colónias, até nas de extensos recursos. Temos sido governados por gestores de situação que servem ou servem-se do cargo, outros são obrigados a servir instâncias internacionais, e quando serviram interesses exclusivamente nacionais acabaram em regimes párias, um caminho impossível de seguir no contexto actual. Uma fatia das populações do mundo lusófono recorda com saudade ditadores, dificilmente nutrimos simpatia por uma personalidade que dirigiu o país em democracia, quando sucede não se deve tanto à sua acção mas ao ambiente próspero que encontrou. Melhor Estado é possível todavia quem tiver coragem de o emagrecer é crucificado, e se alguém conseguisse de facto emagrecê-lo o país tornava-se uma selva: em 2019, antes da pandemia, 1,6 milhões de portugueses viviam com menos de 540€ por mês, uma em cada 4 pessoas com o máximo de 9º ano de escolaridade é pobre; muito menos Estado e acabávamos como o Brasil. É um secular circuito de pobreza que gera ignorância que gera pobreza que gera ignorância… Espero que não vejam nestas considerações uma desculpabilização da incompetência governativa, diria serem a constatação de uma fatalidade estrutural para a qual não acho solução a médio prazo.

O tema do mês é o orçamento de Estado e como todos os anos em que não há maiorias assiste-se a um folclore prévio que raramente resulta em chumbo. O PS precisa de acordar com o BE ou o PCP a sua viabilidade o que com mais ou menos drama acontecerá sobretudo porque o BE não deseja eleições. O PCP vai perdendo polpa a cada legislatura mas o caroço ninguém o parte, se for necessário ir à guerra e ficar à margem de tudo é para o lado que dorme melhor. O Livre é uma piada que passou do prazo, desaparecerá da assembleia sem glória. O PAN surgiu numa época de especialização de conteúdos que não é viável em tempos de redução dos mesmos, e o BE precisa de tempo para se reorganizar; ambos sabem que se fossem agora a eleições correriam o risco de se esvaziarem, quiçá até níveis humilhantes, os ventos não sopram de feição para essas bandas. Enquanto houver um PS virado à esquerda será preferível negociar as suas agendas, depois podem usar a legislatura para se posicionarem contra o governo. Desse lado do espectro as contas estão quase fechadas: o PCP fica no seu canto, quanto mais irredutível se mantiver melhor para eles, os outros partidos vão-se debatendo por um espaço, de modo não serem engolidos pelo gigante. À direita o PSD é a grande referência moderada do espectro, aparentemente moderada demais nos tempos que correm, daí o surgimento de novas forças. O Iniciativa Liberal parece estabilizado num nicho criado pela falta de vitórias do PSD sobre o PS, o CDS entalado entre inúmeros condicionalismos desespera para não desaparecer e o Chega desespera para crescer. Exceptuando o Chega que tal como o PCP pode viver à margem do sistema, os partidos de direita têm os mesmos problemas dos da esquerda: se a grande referência do seu espectro experimenta um período forte esvaziam-se, se está fraco medram. A batalha surda do PCP é com o PS e a batalha surda do Chega é com o PSD, a definição do território dentro das respectivas barricadas é vital para a sua afirmação. Se existe sucesso à direita do PSD, se a sua direcção é constantemente desafiada, significa que o partido está enfraquecido, por muito que o Rio deite água na fervura. Paulo Rangel anda há mais de uma década a tentar chegar à presidência do partido, até possui no currículo a presença numa reunião do grupo Bilderberg tendencialmente geradora de lideranças destacadas, assim como Rio, Costa e Marcelo marcaram presença antes de estarem onde estão. Depois de esclarecer publicamente o que tinha no armário para não ser pego de surpresa, vem novamente tentar a liderança; se a obtiver nem quero pensar no pratinho que será para o Chega, o próprio Rio já experimentou na pele as invectivas de Ventura…

Marcelo, qual príncipe do reino, prefere que os partidos se entendam para passarem o orçamento, em vez da trabalheira de ter nas suas mãos uma nova crise em que é obrigado a passar da intervenção das palavras, um prazer, à intervenção dos actos, uma maçada.

Não sou muito dado à narrativa de esquerdas e direitas, fi-lo porque é assim que as pessoas percepcionam a política e ajuda a explicar-me. Vendo de uma perspectiva mais lata estas diferenças tornam-se consideravelmente menores, afinal só são importantes porque radicalizam interesses particulares ao invés de estabelecerem pontes para um objectivo comum, o enriquecimento do país ao nível material e do saber. Temos um raio de visão limitado, se observássemos em larga escala perceberíamos que isto não é de agora, as tricas partidárias absorvem a nossa atenção parecendo muito importantes e na realidade são frívolas em face dos graves problemas de fundo que se mantêm por resolver.

Para provar este ponto transcrevo um texto não assinado do jornal humorístico “O António Maria” de 6 de Janeiro de 1881, dirigido por Rafael Bordalo Pinheiro, e que entre outros contava com a colaboração de Ramalho Ortigão e Guerra Junqueiro. Referia-se ao discurso do rei D.Luís na abertura das câmaras. Após lê-lo pensem se em 140 anos de nascimento e morte de pessoas, partidos, ideologias, guerras mundiais e coloniais, ditaduras, revoluções, empréstimos do FMI, subsídios da CEE, bazucas da UE, e três mudanças de regime algo mudou. Sim, protestamos mais mas pagamos à mesma…

“A tranquilidade inefável que em todo o reino continua a presidir ao engenhoso exercício do contrabando, às falcatruas do recrutamento, às iniquidades da repartição do imposto, à violação das cartas, ao roubo dos bancos, e bem assim ao trote regular das pilecas dos correios de secretaria atrás das tipóias do ministério, atestam que reina a ordem em toda a extensão da monarquia. (…) O governo, n’este momento de crise, continuando segundo a memorável tradição económica do país a não ter dinheiro, nem trabalho para o produzir, nem talento para criar o trabalho, nem saber para o dirigir, nem vontade para aprender a iniciá-lo, pediu mais alguns mil contos emprestados. Para quê? Para instituir alguma nova indústria? Para adquirir novos elementos de riqueza? Não, dignos pares e senhores deputados da Nação: o governo pediu emprestado mais dinheiro para o fim de pagar a dívida. É por este modo tão bem combinado e tão produtivo que os povos, assim como os indivíduos, penetram na senda da prosperidade e chegam, ao cabo de empréstimos sucessivos, ao mais alto grau de abundância e de magnificência. Infelizmente achamo-nos ainda longe desse desiderato, mas pelo caminho que tão corajosamente encetamos lá chegaremos um dia! (…) Depois, a pouco e pouco, por baixo do manto lacrimejado da retórica, sente-se bulir uma coisa, que a coroa, decorosa e comovida, não destapa de todo. Essa coisa é o aumento do imposto, que se está pagando. A coroa toca subtilmente nesse ponto: A nação sujeitou-se tranquila e resignada às provações que em nome do bem público lhe foram impostas. O país e os seus representantes cumpriram briosamente o seu dever. E com isto, a coroa não enfada mais, porque são as horas em que os diferentes poderes do estado, o moderador, o executivo e o legislativo, costumam ir para a mesa. Nós outros mostremo-nos dignos do elogio que nos fez o príncipe: Sejamos briosos… Vamos pagar a décima!”

*Músico e embaixador do PLATAFORMA

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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