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“Sufrágio limitado” e Chefe “controlado”

Vitalino Canas e António Katchi, juristas e estudiosos do sistema político de Macau, estão convictos de que, vença quem vencer, a escolha do Chefe do Executivo traduzirá a influência crescente de Pequim nas autonomias regionais. Por um lado, através do poder informal; “sangue que corre nas veias; que não se vê, mas irriga o sistema”, explica Vitalino. Por outro; porque, ao contrário do que antes fazia, Pequim “já não disfarça” a opção de “subjugar o Segundo Sistema”, remata Katchi

Paulo Rego

Figura influente em Macau, antes da transição de poderes, Vitalino Canas, constitucionalista e político português, supôs a certa altura que o sistema político da RAEM teria uma evolução diferente: “Tal como a China era nos anos 2000”, pensei que haveria uma evolução mais democratizante, ao estilo dos padrões ocidentais. Até para Pequim mostrar ao mundo o respeito pela autonomia do Segundo Sistema”. Mas “isso não aconteceu”, conclui. Já António Katchi, antigo monitor de Filosofia do Direito, em Lisboa; e, mais tarde, voz relevante em Macau, na defesa dessa abertura, chegou a acreditar na “capacidade que Hong Kong teria de pressionar Pequim”; e no efeito galvanizador que, “gradualmente”, isso teria “nos movimentos pró-democráticos” em Macau. Contudo, remata, “a China escolheu outro caminho”; e já “não se importa de mostrar quem manda e de assumir a autoridade sobre as regiões autónomas”.

Convidados pelo PLATAFORMA a comentarem o processo eleitoral em curso, que escolherá o próximo do Chefe do Executivo, 25 anos após a transição, ambos transmitem uma leitura semelhante sobre desenho de um “sufrágio sobre o” e “indireto”, com várias restrições formais impostas não só na Lei Eleitoral; mas também pela influência, mais ou menos informal, imposta por Pequim. Apesar de analítica, Katchi assume maior deceção e atitude crítica em relação à dinâmica que descreve como “retrocesso” político. Entende que “não tinha de ser assim”; e “não estava previsto” que assim fosse. Mas a realidade é hoje ditada por um sistema legal, e uma prática política, “desenhados para garantir uma combinação entre o Governo Central, as elites do Partido Comunista, e a oligarquia local”.

Tal como a China era nos anos 2000, pensei que haveria uma evolução mais democratizante, ao estilo dos padrões ocidentais. Até para Pequim mostrar ao mundo o respeito pela autonomia do Segundo Sistema. Mas isso não aconteceu
Vitalino Canas, constitucionalista e político português

Vitalino Canas aproxima-se dessa visão, embora de forma mais moderada. Primeiro, porque assume que a democracia não deve ser vista como um sistema fechado, exclusivamente balizado por padrões dominantes a ocidente; antes percebendo que “ela permite várias modelações, de acordo com os contextos”. Admite até que Portugal “não tem condições – talvez a Inglaterra tivesse mais” para se afirmar como voz crítica nessa matéria, uma vez que a escolha do Chefe do Executivo, apesar de tudo, “é hoje em dia muito mais transparente do que era” antes de 1999. Viveu de perto as nomeações dos governadores Pinto Machado, Carlos Melancia, e Rocha Vieira, tendo todas elas resultado, recorda, de “escolhas unipessoais” dos Presidentes da República Portuguesa. E embora fizesse parte do processo auscultarem as forças vivas locais, seguiam para esse efeito “os critérios que bem entendiam”. Aqui e ali, podiam sentir-se limitados por “algumas condicionantes” relacionadas com os equilíbrios políticos em Portugal; como no caso da substituição de Carlos Melancia por Rocha Vieira, “onde isso foi mais evidente”.

Eleição “corporativa”

A Lei Eleitoral define “um sufrágio não universal – limitado”, que “não corresponde ao potencial de todos os eleitores”, explica Vitalino Canas, considerando que, na prática, o sufrágio é “indireto”, embora “materialmente” seja “direto”, no sentido em que o Chefe do Executivo é eleito pela maioria dos votos do Colégio Eleitoral do Chefe do Executivo (CECE), composto por 400 personalidades locais. O sufrágio pode também ser definido como sendo “corporativo”, termo sugerido pelo nosso jornal e aceite por Vitalino Canas. Isto porque, além de 50 membros inerentes, oriundos do chamado 4.º sector (22 deputados à Assembleia Legislativa; 12 deputados de Macau à Assembleia Popular Nacional; 14 representantes de Macau no Comité Nacional da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês; e 2 representantes do órgão municipal), os outros 350 são propostos na pele de representantes de setores pré-definidos da vida política, económica, cultural e social.

Antes faziam-no com mais discrição, mostrando a preocupação que havia em preservar a imagem de autonomia do Segundo Sistema” (…) Mas a China “escolheu outro caminho; e já “não se importa de
mostrar quem manda e de assumir a autoridade sobre as regiões autónomas”
António Katchi, jurista e analista

Este ano foram considerados votantes habilitados 6.200 personalidades – contra 5.700, em 2019 – que participaram num processo organização e vigiado pela Comissão dos Assuntos Eleitorais do Chefe do Executivo (CAECE), que valida a capacidade eleitoral de cada nome proposto, na seguinte proporção legal: 120 do 1.º setor (industrial, comercial e financeiro); 115 do 2.º setor, que inclui quatro subsetores (26 do cultural; 29 do educacional; 43 do profissional; e 17 do desportivo); 115 do 3.º setor (59 do trabalho; 50 dos serviços sociais; e seis de associações religiosas). Mais do que “corporativo”, expressão com a qual concorda, António Katchi chama-lhe mesmo um processo “oligárquico”. Porque, sustenta, “para além das 50 inerências, dos outros 350 membros do Colégio Eleitoral, 120 representam os setores industrial, comercial e financeiro”. Além disso, conclui, “quando olhamos para os setores da educação, ou mesmo da cultura, grande parte de quem os representa são empresários que dominam o capital investido nessas atividades”.

Para além da limitação formal do número – e perfil – das elites com capacidade eleitoral; primeiro por setores; depois, nas proposições que chegam ao Colégio Eleitoral, Vitalino Canas lembra ainda uma terceira limitação, não explícita na Lei Eleitoral, mas sim na letra da Lei Básica: no fim de todo o processo, o Governo Central pode rejeitar a escolha” que resulte da maioria dos votos no CECE. E “por motivos meramente políticos”, se assim o entender, “sem necessidade de procedimentos ou formalidades”. É verdade que “nunca o fez”, mas também “nunca precisou de o fazer”; porque há em todas as fases do processo uma “informalidade” que permite a Pequim condicionar a escolha, sem necessidade desse último recurso. “Desde logo na escolha dos 6.200 proponentes, que até pode ser mais difícil, onde ainda assim segue determinados critérios”; depois, na seleção dos membros do Colégio Eleitoral, onde “tem também um papel importante”; e, finalmente, “no próprio aval a quem se candidata a Chefe do Executivo”.

A escolha do Chefe do Executivo, apesar de tudo, é hoje em dia muito mais transparente do que era antes de
1999
Vitalino Canas, constitucionalista e político português

“Transparente e assumido”

Katchi recorda que, à exceção de uma única vez, quando Stanley Au concorreu contra Edmund Ho, chega sempre ao Colégio Eleitoral um candidato único, já alinhado com o Governo Central”. E, mesmo nesse caso, “estou convencido que não foi uma candidatura para desafiar Pequim, mas antes para dar a imagem de que havia disputa eleitoral”.

A última revisão da Lei de Segurança Nacional, em Hong Kong, é o exemplo que Katchi dá como sendo paradigmático da inversão de atitude, por parte do Governo Central, na relação com as regiões autónomas. Embora “sempre tenha tido capacidade de influenciar” as decisões políticas, em ambos os lados do Delta, “antes faziam-no com mais discrição, mostrando a preocupação que havia em preservar a imagem de autonomia do Segundo Sistema”. Contudo, “hoje em dia isso já não é assim”; pelo contrário, Pequim “não se importa de o fazer de forma aberta e assumida”. Aliás, conclui, “parecem mais preocupados em mostrar quem manda, e em impor a subjugação do Segundo Sistema”. Atitude, essa, sustenta Katchi, que este ano terá necessariamente reflexo na escolha do Chefe do Executivo.

A escolha do Chefe do Executivo traduzirá o ‘domínio de Pequim’ nos destinos da RAEM”
António Katchi, jurista e analista

Já no que toca às últimas alterações introduzidas na Lei Eleitoral, em Dezembro de 2023, sobretudo centradas no reforço da soberania da China, na integridade territorial, e da segurança nacional, Katchi fende que “pouco vieram acrescentar, de facto, ao processo eleitoral”. Se é verdade que a CECE tem agora poderes explícitos para exigir altos níveis de patriotismo, e de nacionalismo político, Katchi explica que, na verdade, “tudo isso era já assegurado”, embora de forma mais “informal” e “discreta”. Razão pela qual considera que, em rigor, as últimas alterações “até introduziram maior transparência”, na letra da lei, face “a uma prática política” já em vigor.

Em Macau “nunca houve democracia, mas havia liberdade de expressão, de associação, de reunião, de manifestação… e uma certa abertura que nos permitia projetar uma gradual democratização do sistema. Não por iniciativa de Pequim, mas porque acabariam por ceder, pensava-se, a uma dinâmica que, sendo maior em Hong Kong, puxava também por Macau”. Contudo, “quando se bane dos processos eleitorais os candidatos ditos pró-democratas, mas também representantes do operariado livre, que defendiam o direito ao voto – ao contrário das associações tradicionais que alinham com o Governo Central – é claro o caminho que se segue”. Em 2024, esse “retrocesso” está “consumado”, conclui Katchi, transmitindo a convicção de que a escolha do Chefe do Executivo traduzirá o “domínio de Pequim” nos destinos da RAEM.

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