Retrato de um centro turístico em crise

por Guilherme Rego
Catarina Domingues

Mais de um ano depois de Macau registar o último caso local de Covid-19, quatro novas infeções levaram as autoridades a impor duras medidas de prevenção. No centro da cidade, o comércio atravessa dias difíceis. 

Quando Kong Iat Cheong transferiu, em 2001, o negócio de antiguidades para o Pátio de Chon Sau, nas proximidades das Ruínas de São Paulo, não havia aí muito mais comércio. Só armazéns. Depois, há uns anos “houve essa história”, começa por contar o negociante chinês, que também se apresenta como António Ferreira, nome de batismo herdado do padrinho macaense. “A patroa ou encarregada da imobiliária Kou Fu tinha um truque: por exemplo, uma loja só valia cinco milhões, ela dava oito ou dez (para comprar o espaço), mas convencia o dono a não receber o dinheiro e a investir na empresa dela, pagando juros muito altos”. Kong fala português – “estudei dez anos no Colégio Dom Bosco” – e alegra-se de não ter caído no engodo: “ela só me oferecia 12 milhões, mas eu queria 20 milhões e em cash”.  

O alegado esquema de burla, acompanhado pela imprensa local, levou pelo menos 70 pessoas, lesadas em centenas de milhões de patacas a apresentarem queixa contra a empresária Isabel Chiang, que terá investido, em 2015, na aquisição e remodelação de uma dezena de lojas deste bairro, no centro da cidade, com o objetivo de desenvolver um polo criativo.  

Kong Iat Cheong, responsável pela Collector’s House

Na altura, o comércio nesta zona estava a virar-se quase exclusivamente para os turistas e o plano tinha tudo para dar certo. Mas Kong Iat Cheong diz que não resultou. “É só a embalagem”, atira. E com a pandemia? “Pior, desapareceram os turistas, muitas lojas fecharam”, nota ainda o responsável pela Collector’s House, apontando que, com as medidas de prevenção da Covid-19, cerca de 80 por cento dos espaços comerciais da área viram-se obrigados a encerrar. 

Nem turistas nem locais 

Desde que pediu a exoneração da Direção de Inspeção e Coordenação de Jogos, pouco antes da transferência de Macau para a China, que este negociante de arte chinesa tomou as rédeas do seu destino. “Saía-se do serviço de pistola na mão,” recorda Kong Iat Cheong, referindo-se à violência entre seitas. Fora da função pública, dedicou-se a tempo inteiro à filatelia e numismática – “a especulação estava viva” – e posteriormente à porcelana. Trinta anos passaram, o negócio continua a fazer-se. Uma jarra chinesa, elevada ao fundo da loja, tem dois séculos, é obra do império de Daoguang, dinastia Qing, e custa 180 mil patacas. “A mim a crise não afetou tanto, porque os clientes são pessoas que conheço”, diz. 

No Pátio de Chon Sau está ainda aberto um restaurante, uma loja de tatuagens, um café. Portas de aço, puxadas para baixo, prenunciam a morte de muitos negócios. Subo a escadaria da Calçada do Amparo até à Travessa de São Paulo. “Coconut milk?”, pergunta um vendedor na única loja aberta hoje na Rua da Ressurreição, que segue quase paralela às escadarias das Ruínas de São Paulo. Por um breve instante, não se vê ninguém a andar em direção à fachada da antiga Igreja da Madre de Deus, destruída por um incêndio em 1835. Uma rara imagem do ex-líbris de Macau isolado no espaço, que podia ser uma alegoria à finitude das coisas. 

Pátio de Chon Sau. Catarina Domingues

Depois de mais de um ano sem infeções locais de Covid-19, quatro novos casos da variante Delta levaram o governo de Macau a encerrar, ao longo de duas semanas (até 18 de Agosto), espaços culturais, desportivos e de diversão, e a impor medidas mais restritivas nas fronteiras: numa fase inicial, à chegada a Macau por via terrestre era exigido um teste negativo à Covid-19 realizado nas 12 horas anteriores. À falta de turistas e de mão-de-obra do outro lado da fronteira, juntou-se “o fator medo por parte dos residentes”, e o comércio ressentiu-se, analisa Leonardo Dioko, diretor do Centro de Investigação do Instituto de Formação Turística de Macau.  

“Vivo em Mong Há, e uma das minhas lojas de sopa de fitas preferidas tinha uma pequena nota à porta a dizer que, por falta de recursos humanos, fechou por tempo indeterminado. É bastante surpreendente, porque é uma zona com muito tráfego de pessoas, frequentada por residentes. O que aconteceu nos últimos dias é que os locais estavam a controlar-se para não sair à rua”, refere. 

Seguros a pensar “no novo normal” 

Imelda Yatar, que tem estatuto de não-residente, trabalha há cinco anos na Kin Seng, uma das mais antigas lojas de móveis tradicionais da Rua de São Paulo. O espaço está vazio; dois funcionários, incluindo Imelda, estão sentados lá dentro. “Éramos três, mas uma das trabalhadoras é local e queria ganhar mais dinheiro. Eu preciso do visto e ela pode trabalhar noutro sítio por ser residente”, conta a trabalhadora filipina, referindo-se à dificuldade legal dos não-residentes de mudarem de emprego. 

Kin Seng, continua a funcionária, já estava a recuperar quando os novos casos de Covid surgiram em Macau. “Agora, poucos clientes passam por aqui, são todos locais e nem sempre fazem compras”, diz.  

Seguindo pela Rua da Palha – mais negócios fechados – é só preciso cruzar a Rua de São Domingos para chegar à Travessa da Sé. Ao redor da casa-museu Lou Kau, também encerrada temporariamente, já não se veem multidões de turistas a provar especialidades acabadas de sair das bancas a cachimbar. Nem um cliente nem um funcionário à vista no Datang Li Portuguese Restaurant. Ali perto, um homem à frente do Kam Wa Beef Offal, que oferece “a receita autêntica de caril com miudezas da vaca”, aguarda a chegada de alguém. Circulam duas ou três pessoas na rua, não se ouvem os pregões de quem vende, nem conversas cruzadas de turistas. Ouve-se sim o som da água a correr no cimo da travessa. Já nem me lembrava que existia aí uma fonte. 

Goto Reiko é proprietária da gelataria Kika. Esta japonesa de Shizuoca, no Monte Fuji, deixou há seis anos a Indonésia, onde estudou a língua e a gastronomia nacionais, para viver em Macau. Hoje está aqui sozinha. “Somos quatro trabalhadores ao todo, mas agora revezamo-nos”, nota. Quantos clientes passaram por aqui? “Ontem tivemos 20”, responde (Na Boutique Mei Lai, ali perto, na Travessa de São Domingos, a senhora Lee diz que no dia anterior recebeu quatro clientes; no dia antes desse, nenhum). 

Ao PLATAFORMA, a japonesa realça ainda que só na Travessa da Sé já fecharam “sete ou oito lojas” desde o início da pandemia. Apesar de apoiar as medidas das autoridades, Goto defende uma nova ronda de apoios financeiros.  

Goto Reiko, proprietária da gelataria Kika. Catarina Domingues

Já Leonardo Dioko propõe “uma solução mais duradoura e estrutural” para este “novo normal”. Sugere: “Temos pacotes de seguros para quando um tufão ou outro desastre atinge Macau. Também podemos criar para eventos adversos como a pandemia”. 

Negócios deixam centro 

Ainda há um mês, Goto Reiko pagava pelo espaço da geladaria 65 mil patacas, mas com a crise o valor baixou para 50 mil.  

Uma “descida substancial” das rendas dos espaços comerciais na zona do Largo do Senado é confirmada pelo diretor-geral da Jones Lang LaSalle (JLL), consultora internacional no ramo imobiliário. “Durante o pico – em 2014, 2015 até 2019 – o índice de renda era de 100, e neste momento é de 30 ou 40”, assevera Gregory Ku. 

À procura da sustentabilidade no negócio, alguns comerciantes das zonas turísticas querem agora virar as atenções para os clientes locais e estão, por isso, a deslocar-se para as áreas residenciais da cidade, acrescenta o responsável pelo arrendamento da JLL, Oliver Tong, no relatório publicado pela empresa em julho. 

“As taxas de desocupação do comércio a retalho nas áreas turísticas continuam a apresentar uma tendência elevada, refletindo o impacto limitado que a reabertura da fronteira pode trazer para o comércio retalhista que precisa de um alto fluxo de clientes”, lê-se no documento.  

A JLL revela ainda que, no primeiro trimestre deste ano, o setor apresentou sinais de recuperação, com uma subida anual das vendas de 68 por cento. O impacto das recentes medidas de prevenção no mercado só será conhecido mais para a frente, mas Gregory Ku está pessimista. “Enquanto houver restrições, penso que os turistas não vêm. Para um lugar como Macau, onde só há jogo, eles não vêm”. 

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