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Pressão a jornalistas na China “cheia de contradições”

Guilherme Rego

O Clube de Correspondentes Estrangeiros da China denunciou, na terça-feira (27), o assédio e as ameaças a vários jornalistas estrangeiros e aos seus assistentes chineses, após a cobertura das enchentes na província central de Henan. João Pimenta, delegado da Lusa em Pequim, em declarações ao PLATAFORMA, retrata o atual contexto vivido na China, entre a comunidade jornalística estrangeira e a população. No seu entendimento, existe “uma narrativa de excesso de vitimização relativamente ao universo estrangeiro”, que acaba por deturpar o trabalho feito no país.  

De acordo com o grupo, esta situação está a ocorrer através de mensagens enviadas para o número de telemóvel privado e pelas redes sociais, incluindo ameaças de morte. “É um incidente particularmente alarmante, a Liga da Juventude Comunista de Henan pediu aos seus 1,6 milhões de seguidores na rede social chinesa Weibo (equivalente chinês ao Twitter) para relatar o paradeiro do repórter da BBC em Xangai, Robin Brant, depois de este se ter tornado objeto de assédio ‘online’”, lê-se no texto. João Pimenta afirma estar a par da situação e, até à data, desconhece se as autoridades chinesas se pronunciaram sobre o assunto.  

No entanto, indica que o caso do jornalista Robin Brant é um caso particular e “tem uma história”. “Houve uma disputa entre a BBC e as autoridades chinesas, devido a um documentário sobre a província de Xinjiang e a situação dos uigures”. A autoridade reguladora do audiovisual chinês anunciou, em fevereiro, ter proibido a difusão da BBC World News, por considerar que os conteúdos da cadeia televisiva internacional transgrediram “seriamente” as leis em vigor no país.  

Robin Brandt, jornalista da BBC  

Ainda sobre a cobertura das enchentes na província central de Henan, houve vários relatos dos próprios jornalistas através das suas contas pessoais de Twitter, mostrando cenas em que são cercados por grupos de pessoas, insultados, repreendidos por um suposto preconceito na realização do seu trabalho ou mesmo forçados a apagar imagens.  

O Clube de Correspondentes Estrangeiros ficou “dececionado e abatido pela crescente hostilidade contra a imprensa estrangeira na China, um sentimento sustentado pelo crescente nacionalismo chinês, às vezes alimentado diretamente por funcionários e entidades oficiais chinesas”. “A censura à imprensa estrangeira na China contribuiu para uma visão incompleta do nosso trabalho. Em suma, isto criou uma deterioração no ambiente de trabalho para a imprensa estrangeira e impede que os jornalistas forneçam o conteúdo completo sobre a China que desejamos”. O grupo ainda pediu ao Governo chinês que “cumpra a sua promessa de garantir aos jornalistas estrangeiros o acesso irrestrito à reportagem na China e a sua responsabilidade de proteger a segurança das pessoas”. 

“BBC, onde estás? Alguns utilizadores pedem para vos acompanhar durante as filmagens. Já agora, se algum utilizador de Zhengzhou avistar alguém da BBC, por favor digam imediamente nos comentários. Por favor, ajudem os utilizadores a concretizar este desejo!”, dizia a publicação na Weibo da Liga da Juventude Comunista de Henan.

O delegado da Lusa sublinha que o país está “cheio de contradições”. “Quem anda na China sabe que, ao mesmo tempo que isto acontece, é um país onde também se goza de uma grande segurança. Não há propriamente ataques violentos e as pessoas não se sentem inseguras. Visto de fora tem-se uma perceção diferente. Acho que no continente asiático, no geral, não há uma queda para a violência e para o confronto físico. Essa ideia, muitas vezes, é deturpada pelo fenómeno das redes sociais, porque há várias ameaças, de facto. Mas isso não tem uma transição para a realidade quotidiana”, explica.  

Mas será que a crescente tensão e nacionalismo chinês traz entraves à atividade jornalística de estrangeiros? “Já estou em Pequim há seis anos. Hoje em dia a abertura é menor. Na abordagem a certos temas tem havido mais dificuldades”, lamenta João Pimenta. “No contexto geopolítico atual, de crescente rivalidade, as autoridades chinesas acabam por promover um pouco esta ideia dos Media ocidentais (de politizarem o conteúdo noticioso). O problema é que o termo é demasiado abrangente. Usam um tipo de linguagem que acaba por queimar pontos. Ou seja, o que são os Media ocidentais? Entre artigos de opinião e diversos jornais que compõem esse universo, também existe muito conteúdo favorável à China. Mas como partem deste pressuposto, desta educação que foi incutida relativamente ao resto do mundo, metem todos os media no mesmo saco. Surge uma divisão entre nós e eles. Isso é, provavelmente, uma forma errada de gerir as coisas”, conclui. 

João Pimenta diz que este antagonismo parte de uma semente que se plantou há muito tempo atrás. “Tanto na China, como também em Macau, a educação tem sofrido algumas alterações a nível do ensino da História. Na minha perspetiva, ainda há muito foco na agressão estrangeira, que ocorreu há mais de 100 anos. Só que há mais de 100 anos o mundo era completamente diferente”, evidencia.  

“Na ótica da China, se calhar já não existe uma grande necessidade em contar com jornalistas estrangeiros no território” 

Dados divulgados pelo Clube de Correspondentes Estrangeiros da China indicam que pelo menos 20 jornalistas foram expulsos ou forçados a sair da China. Louisa Lim, jornalista premiada e docente na Universidade de Melbourne, em declarações à Deutsche Welle, disse que o Partido Comunista Chinês vê o jornalismo estrangeiro como uma ferramenta que o ocidente utiliza para se infiltrar no assuntos do país”.  

O êxodo de jornalistas tem aumentado. Lim ainda salienta o perigo que este fenómeno pode constituir, estabelecendo um paralelismo entre a diminuição de jornalistas estrangeiros e o défice quantitativo e de qualidade do conteúdo noticioso de investigação no país. Na sua opinião, acaba por ser “contraproducente” para a China, que deteriora as suas relações externas e a própria visão do mundo relativamente ao país.  

Pessoas são levadas por tratores para atravessar a rua inundada pela chuva torrencial em Zhengzhou, na província de Henan.

João Pimenta explica que, “na ótica da China, se calhar já não existe uma grande necessidade em contar com jornalistas estrangeiros no território”. “Tem havido um grande investimento na internacionalização dos grupos de imprensa estatal chinesa, com protocolos de partilha de conteúdos. O plano passa por terem o monopólio sobre a informação que é difundida sobre a China, utilizando os seus orgãos estatais. Procedeu-se a uma ramificação destes orgãos em línguas estrangeiras, com a CGTN (China Global Television Network), a Agência Xinhua, o jornal China Daily, a Rádio Internacional da China, etc. No fundo, criaram braços dedicados à informação que passa para o exterior, de forma a controlar o conteúdo notícioso sobre a China. A altura em que os correspondentes estrangeiros tinham um papel mais importante, até no processo de reforma e abertura da China ao mundo, com divulgação de notícias e o acompanhamento do desenvolvimento do país, se calhar já não é assim tão válida para eles como foi outrora, há 20 ou 30 anos atrás”. 

Os jornalistas que cobriram as enchentes em Henan foram confrontados no local por uma multidão na capital da província, Zhengzhou, que os acusou de “espalhar rumores e boatos”. A província central sofre há dias com chuvas torrenciais que causaram inundações ao longo do rio Amarelo, especialmente na sua capital, Zhengzhou. Pelo menos 73 pessoas morreram devido à catástrofe natural que abateu a província. De acordo com meteorologistas chineses, caíram mais de 640 mm de água em apenas três dias  – volume que seria esperado para o ano inteiro. Cerca de 200 mil pessoas tiveram de ser transferidas para abrigos.  

A imprensa chinesa considera as chuvas torrenciais como “as maiores em mil anos”, numa das províncias mais populosas da China. A Bloomberg lembra ainda que as chuvas caíram depois de Henan sofrer por semanas com uma forte onda de calor, que causou cortes de energia em Zhengzhou. 

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