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O que mudou

Catarina Brites Soares

Rosendo da Costa, José Drummond e Andreia Peres foram dos primeiros a sentir as restrições da pandemia. Um ano depois foram também dos primeiros a verem-se livres delas. Há um ano contavam ao Plataforma como era viver numa nova realidade, no interior da China, depois de surgir o novo coronavírus. O jornal voltou às vidas dos três portugueses para saber o que, entretanto, mudou em Pequim, Xangai e Shenzhen. Pelo menos nas três cidades chinesas a normalidade parece estar de volta. Mas não é fácil nem constante.

“Passo os dias no que imagino ser a vida de um presidiário”. Foi assim que o advogado Rosendo da Costa resumiu o dia-a-dia e a situação em Pequim há um ano. A 28 de fevereiro de 2020 – quando foi publicado o artigo -, cerca de 780 milhões de habitantes na China estavam sob fortes medidas de isolamento e quarentena. Xangai, Pequim e Shenzhen eram três das cidades sob fortes restrições por causa do novo coronavírus Sars-Cov-2. 

Rosendo da Costa, José Drummond e Andreia Peres faziam relatos de cidades-fantasma. O cenário parecia longe de ser real. Um ano depois, a sensação repete-se. O que descrevem está distante para grande parte do mundo. “A vida regressou lentamente ao normal, havendo apenas a obrigatoriedade de uso de máscara nos transportes, parques, centros-comerciais e do código de saúde à entrada de edifícios e dos carros da Didi (Uber chinês). Há sítios onde se faz medição de temperatura e outros não”, detalha o advogado português Rosendo da Costa, a partir de Pequim, cidade agora com 53 infeções.

Xangai, com 114 casos ativos, também voltou ao normal, conta por sua vez José Drummond. “A cidade retomou uma dinâmica impressionante, tendo em conta os dois a três meses do confinamento quase total que viveu”.

O confinamento, enfatiza o artista português radicado na capital financeira chinesa há três anos, foi mais intenso face a outros países. Medidas como a medição de temperatura, o uso de máscara e quarentena eram cumpridas a sério, diz. “Mas tudo se resolveu. A cidade e o país retomaram o comércio e uma vida mais normal, enquanto se assistiu a um caos continuado no ocidente”, critica. 

Há um ano, Drummond descrevia a China como um sítio onde cerca de 1.4 mil milhões de pessoas estavam assustadas e deprimidas. Rosendo falava de uma Pequim que parecia ter sido abandonada à pressa. “Hoje oscila entre medidas como exigir exame de Covid à saída ou à chegada, e alteração frequente das regras. Quando Pequim deixou de ter casos durante uns meses já ninguém media temperaturas, nem pedia scan da aplicação de saúde. Sempre que surgem casos volta ao controlo, fazendo lembrar um acordeão que abre e fecha”, explica o advogado, a viver na capital chinesa há sete anos.

Prevenir para não remediar

A reincidência de casos na China e o Ano Novo chinês à porta implicaram novas medidas de contenção decretadas pelas autoridades. Viajar, por exemplo, é desaconselhado. “De um dia para o outro tudo pode voltar a mudar. Por exemplo, o uso de máscara já só era obrigatório nos transportes e edifícios públicos, e agora volta a ser um pouco por todo o lado. Não se vê as pessoas a negarem a gravidade da situação”, frisa José Drummond.

É também essa versão que Andreia Perez partilha sobre Shenzhen: “Pelo que sei de amigos, a vida começou a retomar alguma normalidade há cerca de seis meses. Mas mal se sabe de um novo caso, a China toma imediatamente medidas super-restritivas, o que permite que mantenham a pandemia sob controlo”.

O testemunho deixou de ser na primeira pessoa. Voltou para Portugal no ano passado face aos efeitos da pandemia. Antecipava que o encerramento dos espaços e os receios dos riscos iriam durar, e que dificilmente a academia onde o marido é treinador de futebol voltaria à dinâmica rapidamente.

A perspetiva era voltar quando a crise pandémica passasse. “Entretanto ficámos aqui retidos. Não é uma escolha. Estamos aqui porque a China não está a emitir vistos para familiares. Apenas o meu marido tem autorização do Governo para retornar, mas para isso teria de ir sozinho. A união familiar é imperativa para nós. Está totalmente fora de questão”, afirma.

O empregador do marido estaria disposto a tratar da papelada de renovação de contrato de trabalho e vistos, mas o pedido tem de ser feito na embaixada da China em Portugal. A entidade explicou que poderia emitir visto de trabalho para o marido, mas não para os familiares, e aconselhou que fosse comunicando de tempos-a-tempos para saber o ponto da situação.

“Só estão a deixar entrar pessoas estritamente essenciais e familiares não são, no entender deles, essenciais neste momento. Estamos dispostos a passar por todo o processo de quarentena, viagens, testes e arcar com todas as despesas, mas só o faremos quando toda a família puder ir”, diz.

Em Portugal há meio ano, confessa que se sentia mais segura na China. “Estamos no segundo confinamento, mas o movimento de pessoas nas ruas continua próximo do habitual”, lamenta. “Na China, nem um carro se via. Era um absoluto deserto. Todas as pessoas estavam em casa a respeitar as limitações de movimento e o distanciamento durante meses. Foi uma mobilização incrível que permitiu que saíssem dessas restrições pouco tempo depois. Em Portugal infelizmente é o oposto. Vivesse como se nada se passasse”, atira.

Admite que o  regime – “mais autoritário em que prevalece o medo das consequências do incumprimento das ações do Governo” – teve um peso determinante no sucesso do combate ao vírus. Ainda assim, sublinha que por ser um país asiático e que viveu outros episódios semelhantes, percebe o perigo da irresponsabilidade e negligência. “As pessoas mais facilmente fazem a sua parte. Aqui como não se vivem problemas de sobrepopulação e episódios virais não acontecem regularmente, a população não percebe as repercussões e trata isto como se fosse uma gripe”, assinala.

Em Pequim mais de um milhão de pessoas já receberam a primeira dose da vacina contra a COVID-19

Estado de alma

A gestão da pandemia na China é contudo controversa. Entidades internacionais e países como os Estados Unidos, duvidam desde o início dos números oficiais de infetados e mortes relacionados com Covid-19, assim como questionam a resposta à pandemia. 

Recentemente, saiu mais um documentário da BBC sobre os 54 dias entre o primeiro caso conhecido do vírus e o isolamento de Whuhan – decretado a 23 de janeiro na cidade-epicentro da pandemia. Testemunhos ouvidos pela televisão britânica denunciam que Pequim encobriu a gravidade da situação. 

Neste momento há uma delegação da Organização Mundial de Saúde para recolher informação e estabelecer a origem da pandemia. É a primeira vez que o Governo central permite que cientistas estrangeiros o façam in loco. A visita foi impedida várias vezes e acontece mais de um ano depois. Há dúvidas quanto à eficácia e se não chega demasiado tarde.

Atualmente, o país regista cerca de cem mil infetados e quase cinco mil mortes de Covid-19. O mundo contabiliza mais de cem milhões de infeções e de dois milhões de mortos.

Sobre a confiança na informação oficial e autoridades chinesas, Rosendo da Costa é lacónico: ” Sim, são bastante eficientes”. 

Drummond responde que deixou de se colocar a questão. “Quanto mais tempo passa, mais as respostas não parecem fáceis ou certas. Portugal deixa-me bastante preocupado e gostava de ter mais certezas que se conseguirá a curto, médio prazos ultrapassar esta situação calamitosa”, desabafa.

Em Xangai sente que há uma esperança generalizada de que o cenário de há um ano não se repetirá. “Há uma consciência de que se todos cumprirem as medidas existem melhores possibilidades de conter um possível surto repentino”, realça.

Da capital, Rosendo da Costa fala de adaptação. O controlo de temperatura e scan da aplicação, ver as pessoas de máscara e “o receio com o que se passa lá fora” passaram a fazer parte do dia-a-dia. “Veem-se filas para vacinação em massa e penso que isso traz uma sensação de confiança geral no futuro”, ressalva.

Confessa que tem sido difícil aceitar o novo normal. “Não gosto de ver pessoas de máscara. Não ver caras é algo a que nunca me habituarei. Deixa-me deprimido”. 

Lamenta outras alterações como a perda de amigos – que deixaram a China e não voltaram -, a ansiedade de ver o que se passa em Portugal e de nada poder fazer, de estar impedido de ir a casa e de viajar pelo sudeste asiático em trabalho, como fazia. “Estou fechado na China. Quando posso viajo para sair de Pequim, mas sinto-me preso num aquário no qual me posso mover, mas não posso sair porque depois não posso regressar. Vi a minha realidade resumir-se à China e à maioria das vezes a Pequim”, acentua.

“O mundo mudou e mudámos nós”, afirma Drummond, que a seguir acrescenta: “Xangai está aberta. Vou a todo o lado sem restrições no momento. Parece que tal não é o caso noutras cidades na China”.

Estudos realizados por pesquisadores da Escola de Saúde Pública Johns Hopkins Bloomberg mostraram que os testes em massa
e o rastreio de casos de contato travaram a epidemia em Shenzhen

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