Líder do povo, Homem do ano

por Filipa Rodrigues
Marco Carvalho

Um líder com fibra, autoritário mas expedito, a quem a SARS-CoV2 deu a oportunidade de demonstrar uma liderança forte e decidida. Ho Iat Seng chega ao fim do primeiro ano de mandato com níveis de popularidade imbatíveis, embalado pelo sucesso alcançado pelo Governo no combate à pandemia. O próximo ano, avisam analistas ouvidos pelo PLATAFORMA, poderá, no entanto, não ser tão pródigo. A recuperação económica na era pós-Covid é o maior dos desafios que Ho tem pela frente, numa equação que se deverá complicar com as eleições legislativas de setembro próximo

O momento é quixotesco. De máscara cerrada até meio do rosto, ladeado por dois dos mais fiéis servidores, Ho Iat Seng – ainda forasteiro nas artes de mandar – trava de uma penada a gorda engrenagem da gigantesca máquina de fazer milhões dos casinos de Macau. Estamos a 4 de fevereiro de 2020 e os tentáculos da misteriosa doença que enjaulou Wuhan e paralisou a China ameaçam engolir o território: no período de duas semanas, os Serviços de Saúde identificam uma dezena de infecções pelo novo coronavírus e entre os afectados pontificam já residentes de Macau.

Com um único hospital público e pouco mais de oito centenas de leitos para internamento, a RAEM não se pode dar ao luxo de ser leniente. A ocasião é grave e governar é fazer escolhas, mas nem a gravidade do momento preparara Macau para o que o quinto Chefe do Executivo, no cargo há pouco mais de um mês, anuncia naquela manhã de fevereiro. Com o novo secretário para a Economia e Finanças, Lei Wai Nong, de um lado e a recém-empossada secretária para os Assuntos Sociais e Cultura, Elsie Ao Ieng U, do outro, Ho ordena o até então impensável: a interrupção da atividade dos casinos por um período de duas semanas e a suspensão dos serviços básicos na Função Pública.

Na intervenção ressoam ecos subtis dos discursos proferidos por Winston Churchill perante o Parlamento inglês durante a Batalha de Inglaterra e o efeito, consideram de forma unânime os analistas e personalidades ouvidos pelo PLATAFORMA, é em grande medida similar. 

“A pandemia teria sido, por si só, uma espécie de maldição, mas é uma maldição que acaba por se revelar para Ho Iat Seng como uma coisa boa, na medida em que lhe deu a hipótese de mostrar à população um Chefe do Executivo com fibra suficiente para colocar cobro a esta situação”, considera Miguel de Senna Fernandes. 

“Ho Iat Seng esteve à altura do desafio no sentido em que teve a coragem, teve a visão suficiente para, num primeiro momento, determinar aquilo que determinou. Está de parabéns e julgo que isto é unânime, a população revê-se nesta decisão tão determinante e tão corajosa da parte dele”, complementa o advogado e dirigente associativo.

Popularidade imbatível 

A resposta rápida e incisiva do Governo fez disparar os índices de aprovação do Executivo, com Ho Iat Seng a alcançar níveis inéditos de popularidade. 

Um primeiro estudo, conduzido em meados de Fevereiro pela Associação de Pesquisa e Sondagens de Macau indica que 9 em cada 10 residentes estão satisfeitos com as medidas adotadas. O encerramento dos casinos, recorda Eilo Yu, é a primeira de uma série de decisões estratégicas que ajudaram a RAEM a manter-se à margem da Covid-19. 

“A pandemia transferiu a atenção da população da perspetiva do desenvolvimento económico e do crescimento para a sobrevivência da cidade. E a verdade é que Ho Iat Seng conseguiu gerir a crise e convencer a população de que a liderança da RAEM está bem entregue”, defende o professor de ciência política da Universidade de Macau. 

“O momento decisivo do primeiro ano de mandato foi, no início do ano, quando anunciou o programa de distribuição de máscaras aos residentes e a decisão de encerrar a fronteira com a China para travar a pandemia”, sustenta o académico.

Com as fronteiras fechadas e as salas de jogo virtualmente sem clientes, a economia agoniza e o Governo anuncia um vasto pacote de medidas financeiras que tranquilizam a população. Um abrangente plano de incentivo ao consumo, concebido para ajudar a manter à tona restaurantes e outros pequenos negócios rendem pontos a Ho. No início de Outubro, meses após a deteção do primeiro caso de Covid-19 no território, uma nova sondagem mostra que quase 95 por cento dos residentes estão satisfeitos com o desempenho do Governo na luta contra a pandemia e os elogios chegam até de quadrantes e vozes habitualmente críticas. “A pandemia limitou a ação e intervenção do Chefe do Executivo, pondo de imediato a nu as competências do atual Executivo nos momentos de crise que se atravessava, em que se exigiam medidas efetivas e eficazes, nomeadamente ao nível económico e social”, admite José Pereira Coutinho. “De uma maneira geral, logo no início do mandato, o Chefe do Executivo esteve bem ao controlar o impacto da Covid-19, sabendo que não podia falhar face ao estado de rutura do atual sistema de saúde pública”, assevera, no entanto, o também presidente da Associação dos Trabalhadores da Função Pública de Macau (ATFPM).

Um líder forte, decidido, autoritário

A adoção de uma política de envolvimento e de medidas cirúrgicas quer para travar a pandemia, quer para impedir o colapso total do tecido económico do território fez de Ho Iat Seng o mais popular líder na ainda breve história da RAEM, mas o estado de graça em que o Chefe do Executivo ainda se encontra mergulhado ofusca, no entender de Leung Kai Yin, a forma implacável e, em grande medida, autoritária como o Governo geriu a resposta à Covid-19. Para o especialista em administração pública, a pandemia brindou Ho com a possibilidade de explanar o poder e a autoridade, um traço de caráter que se deverá manter intocado ao longo de todo o mandato. 

“Algumas das medidas tomadas foram tremendamente populares, como a aquisição de máscaras de proteção em Portugal, o encerramento dos casinos ou a decisão de reservar hotéis para o cumprimento da quarentena. Adotou uma política de envolvimento para impedir que a pandemia se propagasse a Macau. A população de Macau ficou convicta de que Ho é um líder forte e decidido”, explica Leung Kai Yin. “É um líder autoritário. É alguém que defende e encoraja o autoritarismo e faz uso dessa visão para governar Macau. Quer construir desde cedo uma imagem de um líder forte. Do seu ponto de vista, a existência de muitas vozes críticas ou contrárias atrasa a implementação das políticas definidas pelo Governo (…) Nesta perspetiva, a pandemia, apesar de ter sido desastrosa para Macau, constituiu uma boa oportunidade para Ho Iat Seng”, adianta o académico. 

No início de junho, a detenção de duas jovens, filhas do deputado Au Kam San, que assinalavam em silêncio, no Largo de São Domingos, o 31o aniversário do Massacre da Paz Celestial belisca a lua-de-mel entre o novo Governo e a população. Sob o pretexto de manter Macau a salvo da pandemia, as autoridades proíbem, pela primeira vez em três décadas, a habitual vigília do quatro de junho. Semanas mais tarde, a imposição, por parte do Governo Central, da Lei da Segurança Nacional na vizinha Região Administrativa Especial de Hong Kong coloca inevitavelmente a questão na ordem do dia também no território. “O caos de Hong Kong fez disparar os alarmes e a sensibilidade do Governo Central, que decidiu promulgar a Lei da Segurança Nacional na RAEHK. Macau deu recentemente sinais de que se prepara para apertar o sistema de segurança nacional, de forma a prevenir-se da eventual infiltração de elementos separatistas, quer de Hong Kong, quer de Taiwan”, assevera Sonny Lo Shiu-hing. “Os protestos em Hong Kong não afectaram a administração de Ho Iat Seng, mas o Governo necessita, no entanto, de melhorar os mecanismos da Segurança Nacional de acordo com os desejos do Governo Central em Pequim”, adverte o cientista político.

O peso político da economia

Para o ativista Jason Chao, a obsessão com a inviolabilidade dos preceitos da Lei da Segurança Nacional atenta contra a capacidade de formar novas gerações com capacidade crítica e pode, a longo prazo, revelar-se tóxica para os interesses do território. “As lições adquiridas com Hong Kong têm ensinado o Governo e os responsáveis de Macau a abafar qualquer sinal de dissidência ou a capacidade de pensar criticamente entre os jovens, especialmente entre os estudantes. As estratégias de vigilância vão intensificar-se. Macau tem de se apresentar a si mesmo como uma história de sucesso ao abrigo do princípio “Um País, Dois Sistemas”, alerta o antigo dirigente da Associação Novo Macau. “No entanto, a criatividade e o pensamento crítico têm grande valor económico no processo de diversificação da economia de Macau. Pergunto-me como é que a obediência que é exigida aos jovens pode andar de mãos dadas com a necessidade de fomentar novos setores de desenvolvimento viáveis em Macau a longo prazo”, questiona o activista pró-democracia, atualmente radicado na Alemanha.

Se é verdade que a crise de saúde pública motivada pela Covid-19 deu o mote à governação de Ho Iat Seng, para muitos dos analistas ouvidos pelo PLATAFORMA os verdadeiros testes à capacidade governativa do Chefe do Executivo só se deverão manifestar no pós-pandemia. O relançamento da economia, sustentam, será em mais do que um aspeto, o maior dos desafios que Ho Iat Seng terá pela frente. “É certo que se a economia se mantiver numa trajetória descendente durante os próximos anos, o Governo de Macau vai ter de enfrentar uma grande pressão e adotar medidas mais austeras que, provavelmente, irão desencadear o descontentamento da população e, como tal, roubar legitimidade ao Governo da RAEM”, sustenta Eilo Yu.

O estado-de-graça de que goza o Chefe do Executivo, prognostica por sua vez Leung Kai Yin, tem os dias contados. Com o desemprego a aumentar e a insatisfação a crescer, o especialista em administração pública antecipa novas dificuldades para Ho Iat Seng, ou não fosse 2021 ano de eleições. “O escrutínio para a Assembleia Legislativa será organizado no próximo ano. Todas as associações vão exigir do Governo que faça mais pelas pessoas. Mesmo as associações pró-governo vão abordar de forma mais crítica o Executivo. A meu ver, as eleições legislativas serão um fator crucial para o Governo liderado por Ho Iat Seng. Vai enfrentar uma série de desafios da parte de diferentes organizações”, antevê Leung.  “Aquilo que me parece é que a lua-de-mel entre Ho Iat Seng e a população de Macau chegou ao fim”, remata o académico. 

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