As chaves da Casa Branca podem estar na iminência de mudar de mãos, mas um eventual triunfo do Partido Democrata nas eleições norte-americanas da próxima terça-feira dificilmente favorecerá uma inversão de marcha na direção que tomaram as relações entre os Estados Unidos da América e a República Popular da China durante o consulado de Donald Trump, defendem especialistas em ciência política e em relações internacionais abordados pelo PLATAFORMA. Já em relação ao impacto que o escrutínio pode ter em Macau, as opiniões dividem-se
No início da semana, a oito dias dos Estados Unidos acorrerem às urnas, sete grandes sondagens conduzidas em todo o território norte-americano atribuíam ao candidato do Partido Democrata, Joe Biden, uma vantagem de entre 9 e 11 pontos percentuais sobre o rival republicano. Trump e Biden não se entendem em questões de fundo – como a gestão da pandemia de Covid-19, as políticas de imigração ou o acesso a cuidados de saúde – mas há um domínio em que o que une os dois candidatos é mais forte do que aquilo que os separa: pelo menos durante a campanha eleitoral, nenhum se mostrou disposto a assumir o papel de “polícia bom” no confronto estratégico com Pequim.
As duas maiores economias mundiais enredaram-se ao longo dos últimos anos numa espiral de acusações e engalfinharam-se num duelo com múltiplas frentes – comercial, tecnológica, geopolítica – agravado pelo impacto económico e social da pandemia de Covid-19 e nem Trump, nem Biden se abstiveram de colocar a China no centro do debate. O candidato incumbente prometeu reduzir ao mínimo os magros vínculos que ainda unem as duas economias e o aspirante democrata endureceu o discurso contra o regime chinês, a quem qualificou de maior antagonista económico dos Estados Unidos da América.
Para Bonnie Glaser, diretora do projeto China Power, do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais – um think tank com sede em Washington, tido como próximo da Casa Branca – a campanha para as eleições presidenciais do próximo 3 de novembro confirma o fim da complacência da elite política norte-americana para com o que é visto por muitos como “a ameaça chinesa”.
“A mudança de paradigma ocorreu logo no início da administração Trump e articulou-se claramente com a Estratégia para a Segurança Nacional”, enuncia a analista, em declarações ao PLATAFORMA. “O terrorismo foi relegado para uma posição subalterna como a maior ameaça aos Estados Unidos, tendo sido substituído pela competição entre os grandes poderes. Não acredito que o resultado das eleições possa alterar essa perspetiva”, defende Glaser.
Com Trump reeleito ou com Biden na liderança da maior economia do planeta, as relações entre Washington e Pequim, considera Priscilla Roberts, atingiram um ponto de não retorno e no futuro serão pautadas mais pela desconfiança, do que propriamente pela condescendência estratégica. A académica – uma historiadora especializada no estudo das relações sino-americanas que integra o quadro docente da Universidade Cidade de Macau – está convicta de que o braço-de-ferro entre as duas maiores potências do planeta se pode vir a tornar ainda mais amargo.
“Já houve uma mudança definitiva de paradigma no que diz respeito à política dos Estados Unidos e, de uma forma mais vasta, do mundo Ocidental em relação à China. As divisões já não são entre aqueles que defendem uma relação mais amistosa com Pequim e os que apresentam reservas, mas entre aqueles que têm reservas, mas ainda assim sentem que é necessário trabalhar com a China e aqueles que são profundamente anti chineses”, admite a autora de “Hong Kong in the Cold War”, em declarações ao PLATAFORMA. “A verdadeira questão que permanece nesta altura por responder é: o quão piores se podem tornar as relações entre os dois países?”, questiona a especialista.
Pequim sem opção
Errático e imprevisível, Donald Trump parece ter sucumbido, na recta final do mandato aos interesses das fações mais conservadoras do Partido Republicano e assumiu um posicionamento abertamente anti chinês, mas a eleição de Joe Biden, no entender de Priscilla Roberts, está longe de ser uma boa notícia para Pequim.
“Se Biden e os Democratas vencerem, as políticas norte-americanas vão continuar a ser fortemente anti chinesas, mas provavelmente menos erráticas. Não me parece, porém, que as relações entre os dois países voltem a ser como eram”, sustenta académica.
“Os Democratas são, de muitas e variadas formas, tão anti chineses como os Republicanos, apesar de o serem algumas vezes por razões diferentes, com as questões associadas aos direitos humanos a assumirem um peso maior quando comparadas com a questão das rivalidades estratégicas”, complementa.
As relações bilaterais entre Washington e Pequim arrefeceram de forma visível durante a administração Trump, ao ponto de ambas as nações terem encerrado representações diplomáticas do rival estratégico, mas a génese de um tal antagonismo, lembra Jianwei Wang, remonta ao segundo mandato de Barack Obama. O professor emérito da Universidade de Macau, especialista em relações sino-americanas, está convicto de que o braço-de-ferro entre a China e os Estados Unidos se tornou para a Casa Branca uma questão de interesse nacional que ganhou contornos de pacto de regime.
“É bom recordar que a ideia de uma política mais competitiva para com a China tem as raízes na administração Obama, com a chamada estratégia de ´regresso à Ásia´. É aqui que está a raiz de tudo isto”, defende o académico. “A minha perspetiva é que as relações entre os Estados Unidos e a China vão continuar a ser competitivas. Há um consenso em relação a isso do lado norte-americano (…) Se Biden for eleito, a grande diferença é que a relação entre os dois países poderá tornar-se mais previsível”, considera Wang.
Macau entre dois mundos
Se dependesse unicamente de Linda Switzer, Donald Trump já não regressaria à Casa Branca a 4 de Novembro. Radicada em Macau há 13 anos, a norte-americana traça um balanço calamitoso do mandato do atual presidente e aposta forte no regresso dos democratas ao poder.
“Acredito que se Donald Trump for reeleito, será um desastre para os Estados Unidos e para o mundo. A minha esperança é que o vice-presidente Biden seja eleito e possa incluir no governo líderes que sejam verdadeiramente transformadores”, assume.
Gestora de topo ao serviço de uma das concessionárias de jogo do território, Switzer – que falou ao PLATAFORMA a título individual – fez o que já fizeram mais de 62 milhões de eleitores norte-americanos e depositou o voto muito antes do plesbicito de 3 de Novembro.
“Continuo a dizer que devemos adotar um envolvimento mais ativo na comunidade onde nos inserimos para abrirmos as portas à mudança”, reitera.
Se a escolha dependesse, porém, de Sheldon Adelson, Donald Trump teria luz verde para governar durante mais quatro anos. O todo-poderoso patrão da Las Vegas Sands voltou a assumir o estatuto de principal financiador da campanha republicana, ao investir 75 milhões de dólares na reeleição do atual presidente norte-americano. Dado a turbulência nas relações entre Washington e Pequim, a opção é tudo, menos prudente e fragiliza mais ainda a posição de Macau, considera Priscilla Roberts.
“Como se sabe, Sheldon Adelson é um dos maiores apoiantes da campanha de Trump, o que transforma os respetivos casinos num eventual alvo da China, caso os Republicanos vençam. Com as relações a prefigurarem-se difíceis, vença quem vencer, as propriedades das concessionárias de jogo que têm acionistas norte-americanos podem tornar-se peões no xadrez da hostilidade sino-americana, a exemplo do que sucedeu com o TikTok, o WeChat ou a Huawei”, avisa a académica.
Entretanto, esta semana a agência de informação financeira Bloomberg noticiou que a Las Vegas Sands estará a preparar a venda dos casinos nos EUA, potenciando a aposta na Ásia, num negócio que pode atingir mais de seis mil milhões de dólares. A venda dessas unidades localizadas nos EUA significaria que os casinos da Sands ficariam concentrados em Macau e Singapura. Os casinos em Macau, o maior destino de jogo do mundo, geraram 63 por cento da receita da empresa em 2019.
A vulnerabilidade de Macau no âmbito da nova quadratura sino-americana é, ainda e em grande medida, uma incógnita, mas Glenn McCartney não acredita que as autoridades chinesas estejam dispostas a sacrificar Macau. Especialista em turismo e na gestão de resorts integrados, o académico britânico considera que, em última análise, as concessionárias de jogo – tenham ou não uma costela norte-americana – respondem apenas pelo trabalho que desenvolveram ao longo dos últimos 20 anos.
“As seis concessionárias de jogo são julgadas pelo desempenho. E todas as operadoras são bons cidadãos corporativos, pagam os respetivos impostos, são responsáveis por uma boa parte dos empregos gerados em Macau, formaram e atualizaram as competências dos trabalhadores e estes aspetos são todos muito importantes”, defende McCartney. “Não vejo de que forma a eleição de um ou de outro partido possa ser um problema”, conclui o professor da Universidade de Macau.