“Poucos ousam falar do lado negro de Macau”

por Filipa Rodrigues
Catarina Brites Soares

“Onde os pecados nunca dormem – uma volta ao mundo em Português” mostra as facetas desconhecidas das antigas colónias portuguesas. Henrik Brandão Jönsson retrata a lusofonia através dos sete pecados mortais. Em Macau reina a Ganância.

Um guia que chama perto de uma centena de mulheres no terminal de ferries em Hong Kong. São duas da manhã e o destino é Macau, para onde o grupo do Sindicato de Professores Chineses, de Changsha, segue entusiasmado porque conseguiu pela primeira vez um visto de 24 horas para Macau, o único território onde é permitido jogar no país. Henrik Brandão Jönsson testemunha a cena que compreende com a tradução de um outro turista, taiwanês, que também ruma à região a pensar nos casinos. É assim que começa o capítulo sobre Macau do livro publicado em julho, Onde os Pecados Nunca Dormem.

“Porque permite o regime comunista que haja casinos aqui quando estão proibidos no resto do país? Também vou descobrir como é possível que seja consentido a dois dos principais financiadores de Donald Trump [Sheldon Adelson e Steve Wynn] fazerem grande parte da fortuna aqui, apesar de Trump estar em guerra fria com a China. Se ainda tiver tempo, vou provar o prato Galinha Africana, e visitar o restaurante onde nem o Robert De Niro e o Martin Scorsese conseguiram mesa”, introduz o autor no excerto dedicado ao território.

De Macau, como dos restantes territórios lusófonos, quis mostrar as facetas menos famosas. Fugiu da que é conhecida – Macau, a capital mundial do jogo – e mergulhou nos submundos associados a ela, assim como nas contradições e qualidades que se desconhecem sobre a região. 

“Poucos ousam falar do lado negro de Macau”, afirma ao autor o investigador da Universidade de Macau, Desmond Lam, e dos poucos que anuiu falar sobre o assunto. “Macau é a máquina de lavar dinheiro da China”, reforça Kristoffer Luczak, a trabalhar no Wynn e que já teve como vizinhos Kim Jong-nam, o irmão assassinado do líder da Coreia do Norte, Kim-Jong-un, e um oficial do Exército chinês, que desapareceu numa noite depois de Xi Jinping ter lançado a campanha contra a corrupção. Hoje, a vizinhança de Kristoffer Luczak em Coloane, relata Brandão Jönsson no livro, é um dos líderes da segunda maior tríade na China, a 14K, com mais de 25 mil membros.

“É difícil alguém querer falar. As autoridades de Macau recusaram e muita gente tem medo. Ainda assim consegui entrevistas que falam sobre esse lado negro”, conta ao PLATAFORMA Macau.

No livro, e antes de referir que viu recusado o pedido de entrevista à Direção de Inspeção e Coordenação de Jogos e ao Turismo, escreve: “Grande parte das receitas provém do Jogo. Oficialmente diz-se que o dinheiro é investido em fundos, mas ninguém sabe ao certo. As autoridades locais podem desaprovar as políticas de Pequim, mas uma coisa apreciam no sistema comunista – não terem de ser transparentes”.

Mais à frente, num resumo da vida dentro dos espaços de Jogo na era do monopólio de Stanley Ho, acrescenta: “Em apenas numa década, Macau deixou de ser uma caverna melancólica portuguesa para se tornar na cidade pecadora nas traseiras de Hong Kong. Oficiais do Governo chinês juntavam-se em redor das mesas de jogo enfumaradas com prostitutas de Xangai, do Vietname e das Filipinas”. 

Ao PLATAFORMA Macau, o escritor ressalva que não foi o lado obscuro que mais o surpreendeu, mas o contraste entre a cidade moderna, preconizada pelo Cotai – “tão moderno, tão primeiro mundo, tão bonito” – e o Macau Antigo, tão diferente da zona onde se concentra a maioria dos 40 casinos. 

“O texto também é sobre frustração. Apesar de Macau ser o segundo território mais rico do mundo, depois do Qatar, ainda tem pobreza, bairros em que as pessoas vivem em cima umas das outras, seis vezes mais densos que Nova Iorque”, indigna-se. “Não me cingi a falar sobre a corrupção e lavagem de dinheiro, também falei do facto de as autoridades só se centrarem no Jogo. Essa foi a crítica que quis mostrar neste capítulo”.

A forte ligação à gastronomia, a coexistência entre culturas e os diferentes ritmos da cidade também foram apanhados nas três semanas que o sueco passou na cidade, em 2017. “A última parte descreve a minha visita a Coloane, quando também mostro esse lado bonito de Macau, tão perto da cidade do Jogo, mas que nos dá a sensação de estar numa aldeia de Portugal”.

Que pecado mora aqui

Os sete pecados acabaram por ser a linha condutora do livro em sueco, com sete capítulos. A Portugal calhou a Inveja, ao Brasil a Preguiça, a Ira a Angola, Timor-Leste a Soberba, Moçambique a Luxúria e a Gula ficou em Goa. Antes da conclusão, as questões que o empurraram para a aventura de viajar pela Lusofonia com o intuito de escrever. “Como é possível que não se ouça mais sobre a sexta maior língua do mundo, falada por duzentos e cinquenta milhões de pessoas, em quatro dos cinco continentes?”, lança no prefácio. 

Atira como primeira explicação o facto de se ter criado uma imagem estereotipada e preconceituosa do povo português, como sendo tristonho, rígido e fechado, de culinária pesada e fadistas que cantam a mesma música repetidamente. Uma imagem contrária à das antigas colónias. “Vistas como as mais sensuais do continente, com a melhor música. Até na China, os portugueses são vistos como bon vivantes. Todos os anos, milhões de chineses visitam a península de Macau para se divertirem naquele que é considerado o maior antro do jogo do mundo”, descreve.

O contexto político no Rio de Janeiro, onde vivia, foi a desculpa que precisava, depois de se aperceber que se preparava para eleger um presidente “pastor pentecotista corrupto”. “Não queria estar presente quando a minha cidade de adoção, conhecida pelo estilo de vida hedonista, caísse nas mãos de um homofóbico retrógrado”, condena. Voou para Goa e começou a procurar vestígios lusófonos naquele que é o estado mais rico da Índia. A primeira descoberta foi o Feni, bebida alcoólica que diz ter tido origem no estado brasileiro de Pernambuco. “Comecei a perceber como os laços lusófonos ligavam o mundo”, repara.

Seguiu para Moçambique – onde sentiu que tinha voltado a casa pela descontração, ritmo e sensualidade que lhe lembraram o Brasil; meses depois aterrou em Angola, “governada por um regime brutal” e com a capital mais cara do mundo; mais tarde Macau e Timor-Leste, depois de já ter passado por Cabo Verde e Portugal. 

“O mais intrigante da viagem foi ter encontrado um novo fio condutor – exterior à língua – que ligava os territórios lusófonos. Em cada país ou região que, em algum momento da História, foi conquistado por Portugal, encontrei o polo oposto à envolvente conservadora. As antigas colónias, onde o sexo, o álcool e o jogo eram permitidos, funcionavam, na verdade, como válvulas de escape. Na maior parte dos casos, o pecado era tão evidente que se tornou possível associar os vícios lusófonos aos sete pecados mortais”, explica.

A ambição do livro, diz, é mostrar o que distingue os destinos lusófonos e um mundo que muitos ignoram. “Grande parte dos media europeus cobre as eleições primárias dos EUA com mais diligência do que dos países vizinhos – o mundo é grande, mas agora é menor do que era antigamente”, vinca. “Gostaria que vissem o livro como uma porta de entrada para um mundo mais vasto, fora do universo anglo-saxónico”.

Henrik Brandão Jonsson

É correspondente sueco na América Latina pelo Dagens Nyheter, o maior e mais importante jornal da Suécia e Escandinávia. Mora no Rio de Janeiro desde 2002. Em 2011, ganhou o prémio da televisão sueca pelo melhor programa de investigação e foi indicado para o Grande Prémio de Jornalismo Sueco pelo documentário A Royal Nazi Secret. 

Antes de Onde os Pecados Nunca Dormem publicou Fantasy Island – The Brave New Heart of Brazil; Jogo Bonito: Pelé, Neymar; e foi coautor do Palavra de Gringo – Um Olhar Estrangeiro Sobre o Brasil. “Onde os pecados nunca dormem – uma volta ao mundo em Português”, publicado pela Natur & Kultur – a terceira maior editora da Suécia, esgotou a segunda edição em menos de um mês, com mais de seis mil cópias vendidas. Por agora, o autor está em negociações com uma editora portuguesa e quer que o livro seja traduzido para português e inglês. “Chinês? Não sei como está o mercado, mas seria interessante”, responde, sorrindo. 

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