Yunnan “nacionaliza” escolas construídas com donativos de Macau

por Filipa Rodrigues
Marco Carvalho

As autoridades da província de Yunnan, no sudoeste da República Popular da China, assumiram a gestão de quatro escolas que foram construídas por uma organização não-governamental (ONG) criada por uma escola de Macau. Os estabelecimentos de ensino, que foram ao longo de mais de uma década financiados com dinheiro angariado pela Escola São Paulo e pela Escola da Sagrada Família, foram nacionalizados depois de o Governo Central ter aprovado uma lei que dificulta as operações de ONG’s estrangeiras na China continental.

As autoridades chinesas apoderaram-se de quatro escolas construídas na província de Yunnan com donativos angariados por dois estabelecimentos de ensino de Macau: a Escola São Paulo e a Escola da Sagrada Família. Construídas entre 2006 e 2010 em aldeias isoladas da Prefeitura Hani e Yi, de Hong He, junto à fronteira com o Vietname, as quatro escolas foram, durante mais de uma década, financiadas a cem por cento com recursos angariados no território e em países como Japão, Singapura, Espanha, Suíça, Estados Unidos ou a própria República Popular da China.

O dinheiro, canalizado para a província de Yunnan pela Escola São Paulo através do projeto SP Edify – uma organização não-governamental constituída para o efeito – custeou não só a construção das instalações, mas também os salários e as despesas dos professores e o material escolar, roupa e alimentação dos alunos que estudaram nas escolas de Hongpotou, de Zhangpojiao, de Mataipo e de Pingtoushan ao longo de mais de uma década. 

Desde Fevereiro de 2007, mês em que foi inaugurada a primeira das escolas “Daoming” (traduzida à letra, a expressão significa “estrada brilhante”), mais de um milhar de crianças – a esmagadora maioria da etnia miao – aprendeu os primeiros caracteres nos quatro estabelecimentos de ensino, num processo do qual as autoridades provinciais de Yunnan sempre estiveram conscientes e com o qual foram coniventes até há relativamente pouco tempo.

“Nos anos mais recentes, os alunos das escolas Daoming começaram a estudar pelos mesmos manuais e com os mesmos materiais utilizados nas escolas oficiais e a submeter-se aos mesmos exames dos alunos que estudavam nas escolas do Governo”, explicou uma fonte conhecedora do processo, que falou ao PLATAFORMA sob anonimato.

O panorama começou a mudar no final de 2016, ano em que a Assembleia Nacional Popular aprovou uma lei para regulamentar a atividade das Organizações Não-Governamentais (ONG’s) estrangeiras que atuam no país. O diploma colocou o trabalho de instituições de caridade, de associações empresariais e de instituições estrangeiras na dependência direta das forças de segurança. Para operar, as ONG’s estrangeiras necessitam não só de autorização da polícia, mas também de operar em parceria com agências controladas pelo governo. A lei estipula que as autoridades chinesas possam interromper quaisquer atividades que coloquem em risco a segurança nacional e outorga poderes à polícia para interrogar os representantes de Organizações Não- Governamentais “a qualquer momento”. E foi precisamente isso que começou a acontecer com os responsáveis pelo projeto SP Edify com cada vez maior frequência.

“A partir de determinada altura começaram a insistir na origem do dinheiro, a querer saber quem eram os benfeitores, se o dinheiro tinha origem no estrangeiro. Começaram a deixar claro que estavam cientes  da ligação entre a iniciativa e a Igreja Católica, através de escolas católicas”, esclarece a mesma fonte. 

Em meados de 2018 as autoridades provinciais de Yunnan assumiram a gestão das quatro escolas e de um reservatório comunitário construído com donativos de Macau na localidade de Zhangpojiao, um ermo no fim do mundo que era até à viragem do milénio uma das localidades da República Popular da China onde a miséria se fazia mais visível.

Pobreza e discriminação

Quando os responsáveis pelo projeto SP Edify (acrónimo de Saint Paul School Educational  Infraestructure Fund for Yunnan ou Fundo da Escola São Paulo para a Construção de Infraestruturas Educacionais em Yunnan) visitaram Zhangpojiao pela primeira vez, no final de 2006, encontraram uma pequena aldeia mergulhada na mais abjeta pobreza. As vinte famílias da localidade viviam sem acesso a água potável e sem eletricidade, em habitações grosseiras de taipa e colmo construídas nas inférteis encostas da mais meridional das cordilheiras da República Popular da China. O acesso à aldeia era feito por um trilho pedonal que se tornava intransitável sempre que a chuva caía com maior intensidade e dos cerca de 130 moradores da aldeia, apenas um conseguia identificar e reproduzir alguns dos carateres mais frequentes. A indigência extrema em que viviam os moradores de Zhangpojiao devia-se em parte ao isolamento da região, mas sobretudo ao facto de eles não terem existência oficial à luz da lei. 

“Estas pessoas eram párias. Eram aquilo que na China se designa de “hēi rén”, “pessoas negras”. Viveram durante décadas sem documentos e em situação ilegal. E a que de devia a ilegalidade? Por um lado, porque se deslocaram para outras regiões sem autorização do Governo com o intuito de fugir à pobreza. Por outro lado, porque infringiram repetidamente a política do filho único que imperou na China até há muito pouco tempo. Os miao que vivem nas montanhas do sul de Yunnan têm em média seis ou sete filhos por família”, ilustrou a mesma fonte. 

“Sem um registo oficial não há estradas, não há eletricidade, não há dignidade, não há direito à saúde, não há direito à educação”, complementa.

Desolador, o cenário estava longe de ser exclusivo de Zhangpojiao. O sacerdote dominicano José Ángel Legido apercebeu-se do problema – e da existência de milhares de crianças que cresciam num limbo – depois de ter sido convidado por Chen Li e Li Shuming, um casal com quem se cruzou na cidade de Kunming, a visitar algumas das zonas mais isoladas de Yunnan. A experiência constitui um abrir de olhos e no início de 2004, Legido, Chen, Li e o também dominicano Alejandro Salcedo, à época diretor da Escola São Paulo criaram, o projeto SP Edify, uma plataforma que se propunha providenciar educação básica às crianças das minorias étnicas de algumas das regiões que Legido visitara.

A primeira iniciativa desenvolvida na província de Yunnan não serviu, ainda assim, para construir uma escola de raiz, mas para ajudar a reconstruir uma escola governamental que funcionava sem o mínimo de condições numa choupana de madeira e palha na localidade de Shahongkou. Quase dois anos depois, em Novembro de 2006,  tem início a construção da primeira das quatro escolas Daoming. A obra foi financiada integralmente com donativos angariados ao abrigo do projeto SP Edify, mas a construção foi conduzida por inteiro pelos moradores de Hongpoutou. 

Contactado pelo PLATAFORMA, Alejandro Salcedo confirma o envolvimento da Escola São Paulo na construção dos equipamentos. O agora docente da Universidade de São José escusou-se, no entanto, a comentar a intervenção das autoridades chinesas por já não estar vinculado ao estabelecimento de ensino.

“Obrigado pelo vosso interesse na projeto SP Edify. Sim, foi um projeto promovido pela Escola São Paulo quando eu era diretor, mas já deixei a escola há três anos”, lembra o sacerdote da Ordem Dominicana.

Ao longo de mais de uma década, o projeto SP Edify dotou ainda os residentes das quatro aldeias intervencionadas de condições para o armazenamento de água e financiou a construção de duas dezenas de habitações e de um reservatório comunitário em Zhangpojiao. A estrutura, adianta o portal eletrónico Bitter Winter, especializado na questão da liberdade religiosa e dos direitos humanos na República Popular da China, também terá sido “nacionalizada” pelas autoridades chinesas, que terão destruído ainda um espaço de oração dedicado à Virgem Maria construído pelos residentes da aldeia. O PLATAFORMA procurou obter esclarecimentos junto do Departamento de Educação do Governo da província de Yunnan, mas não obteve qualquer resposta até ao fecho da corrente edição. 

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