Falta saúde

por Filipa Rodrigues
Catarina Brites Soares

Caritas e Universidade de Macau criam aplicação (app) de apoio psicológico para imigrantes. Paul Pun alerta para o aumento dos pedidos de ajuda desde que surgiu o vírus da Covid-19 . Académico avisa que é preciso quebrar o tabu com a saúde mental. Líder de associação de defesa dos direitos dos trabalhadores não residentes defende que a iniciativa pouco vai ajudar. 

O objetivo é estender a Macau um programa de apoio psicológico da Organização Mundial de Saúde (OMS), criado para quem tem dificuldade em aceder aos cuidados. Na região – dada a escassez de recursos financeiros e dificuldade de acesso à saúde – os trabalhadores não residentes foram a prioridade. Foi a pensar neles que a Caritas e a Universidade de Macau (UM) criaram a aplicação “Kumusta, Kabayan” (em português, “como está, amigo?”). “Adaptámos o programa da OMS a pensar nos trabalhadores não residentes, começando pela versão filipina. É preciso combater o tabu face à saúde mental”, vinca Andrian Liem, do departamento de Psicologia da UM.

Nedie Taberdo, líder da Green Philippines Migrant Workers, mostra-se cética. “Não é com um questionário que se vai perceber os problemas que os não residentes têm”, alerta. 

Andrian Liem esclarece que a aplicação não substitui, nem oferece acompanhamento psicológico. Caso seja detetado um problema, ressalva, a equipa vai indicar os serviços de saúde ou de apoio recomendados em Macau. 

O que não acontece como comprova a mensagem que Nedie Taberdo recebe depois de usar a aplicação. Após responder às perguntas, mostra a mensagem que lhe aparece no ecrã em inglês: ‘Obrigada por preencher o inquérito. As suas respostas indicam que o programa Step-by-Step pode não ser indicado para si nesta fase. Se está preocupado sobre como se sente, pode contactar o médico ou procurar outras formas de ajuda. Cuide-se e obrigada pelo tempo e interesse no Step-by-Step. The Step-by-Step Team’.

Sobre o que realmente faria diferença, Nedie Taberdo é categórica: “Melhores condições de trabalho que incluam melhores salários, benefícios, um horário que não exceda as 10 horas diárias, com seguro de saúde. Isso sim contribuiria para a saúde mental de todos os não residentes.” Acrescenta mais um ponto: “E acabarem com a discriminação”. 

Em Macau, lamenta, os não-residentes sabem que só podem contar com a solidariedade. “Os trabalhadores migrantes são as últimas pessoas em quem se pensa quando se trata de apoios das entidades locais e os consulados também não ajudam especialmente”, critica. “Os problemas vão sendo minimizados graças à entreajuda que há entre nós e ao apoio de grupos não-governamentais que permitem que os que ficaram em situações precárias com a pandemia se vão aguentando mais um dia ou dois.”

“Kumusta, Kabayan”

Para ter acesso à app tem de se ter um smartphone, descarregá-la, e responder às perguntas que vão surgindo no ecrã. A “Kumusta, Kabayan” usa personagens e constrói cenários com base na identificação cultural, oferece cinco sessões, de 30 minutos, em que se pede ao utilizador que resolva problemas ou faça atividades. Por agora, espera-se a participação de 350 mil filipinos, mas o intuito é alargar o serviço e, depois de um estudo, fazer propostas para rever os apoios aos emigrantes.

Andrian Liem diz não dispor de dados sobre a situação psicológica e de vida dos trabalhadores não residentes de Macau, mas crê que se debatem com os obstáculos que a mão-de-obra estrangeira enfrenta noutros locais. Enumera os acidentes e lesões de trabalho, dificuldades no acesso aos serviços de saúde e de integração. “Durante e depois da pandemia, surgiram novos problemas como a dificuldade em manter o trabalho, encontrar um novo emprego e voltar ao país.”

Um trabalhador imigrante instável emocionalmente não é bom para ninguém
‬Paul Pun, Caritas de Macau

Sentir na pele

Entre fevereiro e julho, 290 não residentes pediram auxílio à Caritas. Destes, 89 estão desempregados e não podem voltar aos locais de origem; e 31 são grávidas ou mulheres que acabam de dar à luz. Os números estão longe de serem fiéis à realidade. “Há muitos mais a precisar de ajuda”, sublinha o secretário-geral da Caritas. 

Paul Pun acrescenta que, além da depressão, dificuldade em dormir e ansiedade que já os afetava, agora há mais um problema. “Mais de 40 por cento dos pedidos são de ordem financeira, que antes da Covid não era o principal drama”.

A pandemia, acrescenta Nedie Taberdo, só veio agravar a situação de excesso de trabalho e baixos salários a que muitos já estavam sujeitos. Mas há mais. “Uns foram despedidos e obrigados a tirar férias sem vencimento. Outros foram forçados a ficar em casa dos patrões, que entretanto ficaram desempregados, para terem alojamento gratuito, e vivem sem condições – têm de dormir no sofá e pouco comem, em vez de serem despedidos”, relata. 

Pun enfatiza que questões psicológicas são sociais e importantes – sejam elas de locais ou não. “Um trabalhador imigrante instável emocionalmente não é bom para ninguém. Em Macau, a saúde mental não é um problema de maior e portanto a gratuitidade podia ser alargada aos de fora”, vinca.

Os cuidados de saúde em geral são gratuitos ou a baixo custo mas só para residentes, o que impede a maioria dos trabalhadores não residentes de recorrerem aos serviços. Taberdo salienta que a depressão é a realidade de muitos. É nas amizades e na Igreja, afirma, que procuram o auxílio que não encontram na sociedade. 

A pandemia que trouxe aliada uma crise económica mundial afetou Macau, praticamente encerrado ao mundo desde que o vírus da Covid-19 surgiu no início do ano em Wuhan. Paul Pun antecipa que mais não-residentes acabarão por perder o emprego porque não estão no topo das preocupações. “Quero lembrar que também são pessoas”, apela. 

Em finais de julho, os Serviços para os Assuntos Laborais admitiram cancelar quotas às empresas com mão-de-obra importada em funções para as quais existem trabalhadores locais disponíveis e apelou à denúncia.

Questionado sobre a posição do departamento, Paul Pun responde desconhecer o assunto. Entende que os locais sejam a prioridade, mas insiste que os não residentes também merecem atenção. “A preocupação deve ser ajudar, sem olhar a nacionalidades. Estamos a viver circunstâncias especiais.” 

Paul Pun diz que a Caritas gastou mais de cem mil patacas em bens diários e em comida para os emigrantes mas, e porque o dinheiro escasseia, tudo é aproveitado. “Numa destas noites, fomos recolher pão que sobrou a padarias para depois o distribuirmos”.

O PLATAFORMA procurou falar com o Consulado das Filipinas, mas sem sucesso até ao fecho da edição. Dados divulgados pelo organismo mostram que, desde o início da pandemia, apoiou financeiramente perto de 800 filipinos que ficaram desempregados e permanecem na região. Mais de 600 foram repatriados, perto de 400 eram trabalhadores. Já os números do Governo indicam que saíram de Macau mais de 10 mil trabalhadores não residentes, desde janeiro. 

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