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“Tem de haver uma relação de confiança”

O presidente da Associação de Imprensa em Português e Inglês de Macau (AIPIM) acredita que “uma relação de confiança” com as autoridades permite avanços e maior acesso dos jornalistas estrangeiros, dando exemplos. Recentemente conduzido a um segundo mandato, José Miguel Encarnação defende a atual Lei de Imprensa, estando otimista quanto à continuidade da imprensa de língua estrangeira em Macau, ainda que, talvez, com menor capacidade financeira

Nelson Moura

– Relativamente à comunicação com as autoridades, sente que há vontade de desenvolver os meios de comunicação de língua estrangeira?

José Miguel Encarnação – As duas matérias onde conseguimos avanços foram a revisão da Lei de Segurança do Estado e a emissão dos salvo-condutos. Depois da consulta pública da Lei de Segurança do Estado, comparando a versão que nos foi entregue e a versão final, vimos que nas alterações que sugerimos, houve de facto melhorias. Não digo que tenha sido só devido à AIPIM. Acredito que sejam aspetos também sublinhados por outras associações de comunicação social ou trabalhadores. Outro aspeto foi agora com o salvo-conduto. Já tinhamos realizado consultas com o secretário para a Segurança e com o diretor da Polícia Judiciária. Há muitos anos que andávamos a referir a questão dos vistos para a China. Falámos com o Comissariado para os Negócios Estrangeiros quando foi referido que começariam a dar vistos de cinco anos com múltiplas entradas aos residentes permanentes estrangeiros. De facto, houve uma melhoria nessa altura, ainda que muito leve para os jornalistas que pediram o visto depois disso. Quando o salvo-conduto foi anunciado, contactámos o Gabinete de Ligação, que nos garantiu que abrangia os jornalistas. Não vai haver qualquer discriminação, terão apenas que assinar uma declaração em como não irão exercer nenhuma atividade profissional ao abrigo do salvo-conduto. Mas mesmo assim, se quiserem fazer uma reportagem, poderão submeter um pedido especificamente para aquele caso. São situações que resultam destes anos todos de conversas e de muita, muita persistência. Obviamente que se começarem a haver muitos pedidos de reportagens ou de cobertura de eventos na Grande Baía, acabará por ter de haver uma solução em que poderemos, por exemplo, dentro da província de Cantão, exercer a nossa atividade sem ter que submeter esse pedido. São pequenos passos que vão sendo dados. E tem de haver uma relação de confiança para se conseguir que as coisas avancem. Até porque se o Governo Central quer promover Hengqin e as nove cidades da Grande Baía, tem de facilitar a atividade jornalística nesta zona.

– A imprensa de língua portuguesa pode crescer?

J.M.E. – Primeiro, não há forma de os meios de comunicação locais sobreviverem sem o Estado. Em Macau tivemos uma fase de ouro com a liberalização do jogo, em que se chegou a olhar para o subsídio mais como um complemento do que propriamente uma bóia de salvação. Com a pandemia, isso praticamente desapareceu, e os subsídios foram a bóia. Ainda não chegámos aos níveis de publicidade que tínhamos nessa fase dourada e não sei vão voltar. Penso que não vem mal ao mundo se continuar a haver o subsídio para os meios de comunicação social. Se os critérios são os mais corretos ou não, não sei porque não sou proprietário e só estes podem dizê-lo. Independentemente do subsídio, penso que podia haver mais publicidade institucional. Mas não é o subsídio que condiciona a ação dos jornalistas, é precisamente o seu público. Macau, por ser um meio muito pequeno, é também uma teia tão complexa que as pessoas acabam por se autocondicionar.

Há um novo ciclo político que vem obviamente muito condicionado pelo Governo Central. Macau e Hong Kong, por mais autonomia que tenham, terão sempre áreas onde são balizadas

– Disse que quando começou o primeiro mandato, em 2022, sentiu que a classe jornalística estava em baixo. Como vê hoje o estado do jornalismo de língua estrangeira em Macau?

J.M.E. – Desde que assumi funções, acabei por aprender uma coisa: cada jornalista pensa por si, e ainda bem. Uns fazem uma leitura muito negativa, outros muito positiva, outros mais neutros. Tem muito a ver com o órgão onde cada um trabalha, porque obviamente nem todos são iguais, nem oferecem as mesmas condições. Uns terão umas linhas editoriais com as quais os jornalistas se sentem mais recetivos, outros nem tanto. De um modo geral, arrisco-me a dizer que estamos numa fase em que toda a classe compreendeu que há uma nova dinâmica em Macau. Há um novo ciclo político que vem obviamente muito condicionado pelo Governo Central. Macau e Hong Kong, por mais autonomia que tenham, terão sempre áreas onde são balizadas por Pequim. Não estou nos órgãos de comunicação social diariamente para saber o que se passa, nem conheço a fundo o que são as linhas editoriais de cada meio. Mas no último relatório da União Europeia sobre a RAEM não houve nenhuma referência à liberdade de imprensa ou à liberdade de expressão, que eram dois conceitos que eram sempre inscritos. Faz-me pensar que, aos olhos da União Europeia, a situação melhorou substancialmente. Não há sequer nenhum exemplo em concreto de violação ou de condicionamento. Há apenas duas referências à Associação de Jornalistas, que não é a nossa, em que falam na questão da Lei de Segurança Nacional e da comunicação com as autoridades policiais. No primeiro caso, referem que a lei é pouco explícita em certos artigos e, portanto, dá uma grande margem de interpretação relativamente a uma série de situações que possam ocorrer. No segundo, o facto de a polícia e as autoridades policiais não serem explícitas cada vez que há apreensões ou detenções. Obviamente que há muitos pontos a melhorar. Um deles é o acesso às fontes e uma maior abertura dos visados nas notícias para esclarecerem os jornalistas.

– Falou de áreas que estão balizadas. Existem linhas vermelhas?

J.M.E. – É preciso compreender qual é a linha editorial que rege cada meio de comunicação. É preciso também compreender que o jornalista, na maior parte das vezes, é um funcionário; não tem um estatuto diferente de outro trabalhador. Há uma linha editorial e, portanto, os próprios meios de comunicação social balizam. Há dois ou três anos diziam que as linhas editoriais iam ficar todas iguais e que já nem fazia sentido haver tantos jornais em Macau, mas isso não aconteceu. Nota-se isso relativamente ao Governo, com jornais que vão por uma linha editorial mais assertiva, digamos, e outros mais complacentes ou condescendentes. Tem muito a ver com a sensibilidade de quem está à frente dos jornais. Estes órgãos têm públicos diferentes e isso acaba por ditar a sua linha editorial.

Há dois ou três anos diziam que as linhas editoriais iam ficar todas iguais e que já nem fazia sentido haver tantos jornais em Macau, mas isso não aconteceu

– Há uma necessidade de o Governo ter uma comunicação mais eficaz?

J.M.E. – Os filtros em Macau são por vezes tão grandes que não se estabelece essa relação de confiança. O jornalista trabalha no dia, precisa que a notícia saia. Se não há notícia, perde tempo e relevância. Muitas vezes, a pressão de dar a notícia faz com que o jornalista trabalhe sobre o material que tem e não com toda a informação que devia ter. O contacto devia ser rápido. Quando o jornalista inquire uma entidade pública de manhã, devia ter resposta em 24 horas. Acho que é um período mais do que aceitável. Não pode esperar três ou quatro dias, ou uma semana para dar a notícia.

– A Lei de Imprensa está em vigor desde 1990. Deve ser revista?

J.M.E. – A Lei de Imprensa foi extremamente bem feita. Foi redigida tendo como base a lei de imprensa portuguesa, e o que eram as leis de imprensa noutras jurisdições, incluindo na China. Está tão bem feita que está em vigor até agora. E apesar de ser uma matéria sensível e havendo sempre um pouco a tendência do Governo de Macau localizar tudo o que são leis que regulam matérias sensíveis, tendo em conta o contexto da República Popular da China, não houve vontade de efetivar qualquer revisão. Seria difícil para o legislador reformar a lei sem estragar.

– Voltando à AIPIM, quais são os objetivos para este segundo mandato?

J.M.E. – Quando recebemos a AIPIM da anterior direção, ficámos bastante surpreendidos pela positiva, uma vez que encontrámos uma associação muito organizada, com mecanismos muito bem implementados. Foi fácil de continuar o trabalho que estava a ser feito. Contudo, percebemos que a classe estava desmotivada. Havia uma grande tristeza no que era o exercício da atividade. Por essa razão, decidimos olhar para todos os profissionais de comunicação social de igual forma, fossem ou não associados. Tínhamos aqui duas hipóteses: ou continuávamos só a resolver os problemas internos, ou abríamos cada vez mais, integrando-nos no que é a sociedade. Isso permitiu que os jornalistas também, de certa forma, se integrassem mais na sociedade e percebessem melhor as especificidades de Macau; o porquê de certos condicionalismos e como os contornar. Houve saídas de associados, mas também houve entradas. Temos praticamente o mesmo número de associados que tínhamos quando recebemos a associação. Portanto, consolidámos, reforçámos a comunicação da associação não só a nível interno, como a nível externo com o Governo e com as entidades que representam outros poderes, nomeadamente o Governo Central, através do Gabinete de Ligação e o Comissariado dos Negócios Estrangeiros. E depois partimos para outra fase, que é a da cooperação. Sempre dissemos que queríamos ser uma associação cooperante e não apenas crítica ou de oposição.

Quando o jornalista inquire uma entidade pública de manhã, devia haver resposta em 24 horas

– Em termos de agenda, que atividades estão planeadas?

J.M.E. – Vamos continuar a promover este diálogo com as associações de comunicação social e outras, com o Governo de Macau e representantes do Governo Central. Depois queremos continuar com aquilo que temos feito, com palestras sobre os mais variados temas. Ações de formação foram uma pecha no último mandato. Só conseguimos fazer uma já no final, porque ainda apanhámos resquícios da Covid-19, saíram muitos jornalistas de Macau e era difícil trazer pessoas de fora. Mas agora, para este segundo mandato, temos já uma série de iniciativas pensadas na área da formação. Estamos também a preparar uma candidatura para organizarmos em Macau a conferência de 2025 da International Media Management Academic Association (IMMAA). Terá sempre que ter uma universidade associada e, neste caso, será, em princípio, a Universidade São José, com apoios do Governo de Macau e também das associações ou entidades privadas que queiram associar-se ao evento.

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