Chinês tradicional tão importante como o português

Pais de alunos denunciam em carta aberta o abandono do chinês tradicional nas escolas, a favor do simplificado. O Gabinete de Educação e Juventude desmente, mas a presidente da Associação de Dialecto Yue de Macau, Tong Choi Lan, confirma o avanço do chinês simplificado dentro e fora do ensino. A propósito, lembra que, para além de pilares da identidade local, o cantonês e o português são atração turística e cultural, pelo que devem ser preservados 

por Gonçalo Lopes
Nelson Moura

desencadeou a polémica sobre o uso de caracteres simplificados em Macau. Na disciplina de língua chinesa, nos currículos do 1.º ano do ensino básico, a decisão de alterar materiais didáticos para chinês simplificado, levou a uma carta aberta de protesto enviada às autoridades por parte de pais dos estudantes.

Na missiva dirigida à Direcção dos Serviços de Educação e de Desenvolvimento da Juventude (DSEDJ), os pais manifestam preocupação pelo abandono do chinês tradicional, o mais usado em Macau, em favor dos caracteres oficiais em uso no Interior da China. Os encarregados de educação exprimem o receio de que seja difícil as crianças voltarem a escrever chinês tradicional no futuro, e declaram-se contra o declínio do ensino do chinês tradicional. “Os caracteres tradicionais são parte importante da cultura de Macau. Como cidadãos de Macau, temos a responsabilidade de salvaguardar a herança do chinês tradicional”, lê-se na carta aberta a que o PLATAFORMA teve acesso.

Em resposta aos pais, o Sagrado Coração de Jesus garantiu que o chinês tradicional continua a representar uma grande parte do currículo escolar, sendo usado em manuais didáticos em algumas disciplinas, bem como em todos os livros de exercícios. No entanto, defende a escola, a mudança para materiais escolares produzidos no Interior da China deve-se a “mudanças da sociedade”, e a uma maior aproximação dos exames públicos locais para o modelo do Continente. A verdade é que a instituição acabaria depois por recuar na sua decisão inicial.

Uso dos dois estilos

Os caracteres simplificados são utilizados predominantemente na China continental, Malásia e Singapura, sendo os caracteres tradicionais maioritariamente utilizados em Taiwan, Hong Kong e Macau, bem como em muitas das comunidades chinesas fora do Sudeste Asiático.

Cerca de 5 por cento das escolas locais no ano letivo de 2023/2024 usam materiais em chinês simplificado

O PLATAFORMA perguntou à DSEDJ quantas escolas locais utilizam atualmente materiais escolares em chinês simplificado, tentando ainda esclarecer se essa percentagem se vem alterando nos últimos anos. A resposta enviada a este jornal esclarece que, nas escolas de ensino regular, onde o chinês é a língua curricular, recorre-se também manuais escolares de língua chinesa publicados pela Imprensa de Educação do Povo; ou seja, em chinês simplificado. Utilização, essa, que, segundo dados oficiais, passou de dois por cento no ano letivo de 2018/2019, para cerca de cinco por cento, em 2023/2024. Neste último ano letivo, contavam-se 76 escolas em Macau, incluindo oito públicas e 68 privadas. A Imprensa de Educação do Povo é uma editora especializada diretamente sob a alçada do Ministério da Educação da República Popular da China.

“As escolas vão selecionar uma diversidade de materiais didáticos para apoiar o ensino, e a aprendizagem do chinês, com base nas necessidades de aprendizagem e nos requisitos de orientação para a educação futura dos alunos, em vez de utilizarem apenas um único manual como ferramenta de ensino”, esclarece a DSEDJ. “Isto permitirá que o trabalho de ensino não só cumpra os requisitos do quadro curricular e das competências básicas, mas também que satisfaça, simultaneamente, a aprendizagem e os estudos adicionais dos alunos.”
Numa resposta anterior, o departamento de educação não superior tinha sublinhado que, “no ensino do chinês, é necessário contemplar uma formação diversificada”, de modo que os caracteres de chinês tradicional e os de padrão nacional – chinês simplificado – consigam ser usados ao mesmo tempo.

Conveniência dos turistas

A Lei Básica de Macau determina o português e o chinês como as línguas oficiais da RAEM. No entanto, a definição legal de chinês não especifica se esta se refere a cantonês ou ao mandarim, sem nenhuma imposição obrigatória do uso de caracteres tradicionais. Segundo os censos de 2021, cerca de 81 por cento dos 663.782 residentes na RAEM responderam ser fluentes em cantonês; menos 2.3 pontos percentuais que no censo anterior, em 2011.

“Existe uma tendência para o aumento do uso do chinês simplificado no ensino em Macau, em detrimento do chinês tradicional, principalmente com a promoção do conceito da Grande Baía e da integração regional, por parte do Governo Central”, diz ao PLATAFORMA Tong Choi Lan, linguista e presidente da Associação de Dialecto Yue de Macau. “Isto é muitas vezes fundamentado com argumentos económicos; nomeadamente, com o argumento de que uma maior habituação ao chinês simplificado e ao mandarim permite a alunos locais maior facilidade em trabalhar no Interior da China”, conclui. A professora associada de linguística na Faculdade de Línguas e Tradução da Universidade Politécnica de Macau considera importante que a DSEDJ realce ser essencial que os alunos locais “ganhem proficiência nos dois estilos”; e não apenas em um deles, em detrimento do outro. “Não creio que uma substituição do chinês tradicional pelo simplificado seja algo que as autoridades locais queiram; mas acho que muitos diretores de escolas locais têm a ideia que é isto que as autoridades querem”, lamenta.

Muitos turistas que vêm cá são também atraídos pela cultura única de Macau, o que inclui o uso de português e chinês tradicional
Tong Choi Lan, Presidente da Associação de Dialecto Yue de Macau

A representante da associação reconhece um maior uso de chinês simplificado, quer no ambiente de negócios, quer na promoção ou nos letreiros, como parte do esforço para comunicar com turistas do Continente, que compõem a maioria dos visitantes na cidade. E lança o alerta: “Lembro-me que, antes da transferência, a Lei especificava claramente que letreiros e nomes de lojas tinham que estar em português e chinês tradicional. Contudo, nos últimos três anos, cada vez vejo mais negócios que apenas usam o chinês simplificado”.

Na opinião de Tong Choi Lan, isto vai contra os propósitos das autoridades centrais, no sentido da promoção da língua portuguesa; mas também contra a própria estratégia de afirmação da cidade enquanto destino turístico internacional. A propósito, aponta o exemplo Governo de Hong Kong, bastante cioso e rigoroso na manutenção do chinês tradicional e do inglês na cidade; seja na promoção do comércio, seja na sinalética pública. “Sim, isto é mais cómodo para os turistas do Interior, mas muitos dos que cá vêm são também atraídos pela cultura única de Macau; o que inclui o uso de português e do chinês tradicional”, argumenta. “Se um dia andarmos nas ruas e só existir chinês simplificado, vamos sentir que já não é Macau. E se Macau já não for Macau, porque haverão os turistas de cá vir? Principalmente se o Governo local quer mesmo atrair mais turistas internacionais”.

Pode também interessar

Contate-nos

Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

Newsletter

Subscreva a Newsletter Plataforma para se manter a par de tudo!