“Macau têm na iou-sa coraçám”

Elisabela Larrea, oitava geração de macaenses e investigadora sobre a cultura, colaborou recentemente com o Instituto Internacional de Macau (IIM) na publicação de “Unchinho di Língu Maquista - Cartões de Estudo do Patuá”, um livro com 60 ‘flashcards’ para aprender a língua local. A autora acredita que o que se transformou numa “língua de atuação” está a regressar ao seio familiar. “A geração mais velha pode nem sempre usar, mas também quer reavivar a sua própria língua”

por Gonçalo Lopes
Carol Law

– O que é que a motiva a publicar os ‘flashcards’?

Elisabela Larrea – Quando estava a pesquisar sobre o tema, verifiquei que muitos livros sobre a cultura macaense e o Patuá eram maioritariamente escritos em português. Comecei a pensar em como promover mais a língua. As pessoas podem pensar que é uma língua que pertence apenas à comunidade macaense, mas na verdade é uma língua de Macau. Como local, penso que todos nós podemos também aprender sobre a cultura macaense, tal como eu posso aprender sobre a cultura chinesa de Macau, enquanto macaense. Espero também que as pessoas não sintam que o Patuá está muito longe delas. Na última década, têm dito que existem apenas 50 falantes de Patuá no mundo, mas será que este número ainda está correto? Queria chamar a atenção para esta língua, por isso é que fiz o meu primeiro ‘flashcard’. Nessa altura, a minha mentalidade não era “ensinar”. Falando francamente, sempre achei que não era uma linguista, nem uma especialista em Patuá – de todo -, mas senti que podia fazer a minha parte. Na altura, publiquei-o na minha página de Facebook como um passatempo, mas nunca pensei que fosse chamar a atenção. Gostaria de expressar o meu especial agradecimento a António Monteiro do IIM. O Instituto sempre se empenhou na preservação e publicação de livros sobre a história e a cultura de Macau. Há um ano atrás, o António sugeriu a publicação de ‘flashcards’, o que aceitei de imediato.

– Como se relaciona o Patuá com as línguas crioulas de outros lugares?

E.L. – Durante a época dos Descobrimentos, os portugueses viajaram para muitos sítios, e alguns escolheram estabelecer-se neles. Estes casamentos inter-étnicos resultaram na formação de línguas crioulas com o seu próprio vocabulário e gramática. Muitas pessoas que estudam o Patuá referem que a língua macaense está muito relacionada com a língua cristã (Kristang) – língua crioula de Malaca -, e que muitas das palavras são muito semelhantes. Quando fui a Singapura para um intercâmbio cultural, em 2017, foi possível usar o Patuá simples para conversar com outra pessoa que falava em Kristang simples. Tanto quanto sei, Cabo Verde também tem a sua própria língua crioula, mas o Kristang é o mais próximo do Patuá.

Este livro é um “isco” para as pessoas discutirem e entenderem.

– Pessoas de fora também lhe perguntam sobre o Patuá?

E.L. – Antes da epidemia, um estudante de linguística em Shenzhen enviou-me um e-mail, a dizer que tinha usado aqueles ‘flashcards’ e frases de exemplo para aprender a escrever Patuá. Acho que isso é muito bom, porque quem está realmente interessado vai fazer estudos aprofundados quando tiver a informação à mão. Também há pessoas do Japão, Brasil, Singapura, Malásia, etc., e também há pessoas de Hong Kong. Alguns destes e-mails são de macaenses, mas não são apenas macaenses, são pessoas interessadas na língua, e há também portugueses. Uma pessoa da província de Hunan disse-me uma vez que gostava da cultura macaense e que queria saber mais sobre ela. No passado, provavelmente devido ao ambiente linguístico, os macaenses costumavam usar o português para explicar a sua cultura e, mesmo que quisessem usar o chinês, talvez não conseguissem encontrar o vocabulário certo. No entanto, hoje em dia, há mais pessoas com competências diferentes para interpretar o Patuá de novas formas, e pode ver-se que há pessoas interessadas e curiosas.

Nos últimos anos, sinto que o Patuá passou gradualmente de uma linguagem de atuação para uma linguagem de família.

– Atualmente, o Patuá parece ter maior presença nas artes, como a literatura, as letras, o teatro…

E.L. – Eu também já escrevi um artigo antes, defendendo a ideia de que o Patuá passou de uma língua familiar para uma língua de atuação, mas, na verdade, há diferentes fases. Quando iniciei a minha investigação, sugeri que se tinha tornado uma língua de atuação – não apenas em palco, mas também de representação da sua identidade cultural. No entanto, nos últimos anos, sinto que o Patuá passou gradualmente de uma linguagem de atuação para uma linguagem de família. Por exemplo, uso o Patuá para conversas simples com um amigo meu, porque precisamos de o praticar, e assim a língua passa da representação para o quotidiano. É claro que é improvável que a língua volte à sua antiga popularidade. Mas embora a geração da minha mãe não falasse Patuá, à medida que mais pessoas se interessam pela língua, por vezes também me pergunta: ‘Esta é a forma correta de dizer isto?’ Ela sabe muitas palavras em Patuá; a geração mais velha pode nem sempre usar, mas também quer reavivar a sua própria língua.

– O vocabulário e a gramática do Patuá estão sempre a evoluir?

E.L. – A língua evolui, e o cantonês também; há 100 anos, não havia televisão e, quando apareceu, tivemos de criar novas palavras para representar a televisão. Quando as criamos, fazemos referência às convenções da língua macaense. Por exemplo, coração é “coraçám”, e quando se trata de televisão, usamos uma convenção semelhante para criar uma nova palavra. Como o Patuá é uma língua de família, muitas coisas podem girar em torno da vida familiar, e quando temos de falar de algo muito vago e filosófico, podemos ter de criar algumas palavras, mas tentamos dar o nosso melhor para seguir o hábito do Patuá. Podemos pedir emprestadas palavras da língua portuguesa, e depois mudá-las de acordo com o hábito do Patuá. Penso que o teatro motiva a criação de palavras, porque precisa de fazer coisas modernas, por isso tem de criar algumas palavras. Portanto, se se pretende fazer um estudo linguístico e social sobre o Patuá, o Adé, escritor, é muito importante. A segunda etapa pode ser o impacto do teatro Patuá na língua, mas isso tem de ser estudado em profundidade.

A geração mais velha pode nem sempre usar, mas também quer reavivar a sua própria língua.

– Que resultados espera obter com a publicação dos ‘flashcards’?

E.L. – Espero que as pessoas se interessem por conhecer a língua, e espero também que os mais velhos, que conhecem o Patuá, possam pegar no livro e ensinar aos seus descendentes. Espero que possam criticar quando virem algo errado, porque se o fizerem, podem explicar e contar mais histórias. Acho que este livro é um “isco” para as pessoas discutirem e entenderem.

– Se tivesses que escolher uma frase que melhor representasse o Patuá…

E.L. – “Macau têm na iou-sa coraçám”, que significa “Macau está no meu coração”. Penso que representa as pessoas que gostam de Macau e não apenas os macaenses.

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