Receios da Lei da Segurança Nacional

por Gonçalo Lopes
Guilherme Rego

Segundo o Governo, a remissão para as leis subsidiárias da RAEM garantem os direitos e a liberdade expressão dos residentes. A secretária-geral da Associação dos Advogados de Macau entende que as preocupações da população “não têm razão de ser”. Certo é que as dúvidas e receios mantêm-se. O deputado Ron Lam percebe que apesar da lei ser clara e o processo legislativo ter sido dos mais transparentes, “a grande preocupação da sociedade é saber se haverá abusos na futura aplicação da lei”

A aprovação na especialidade da proposta de lei demorou meia hora e não houve contestação. Na declaração de voto, o deputado Ron Lam U Tou disse esperar que o diploma “não ponha em causa a liberdade de expressão”.

Ao PLATAFORMA, diz que os receios da população face à Lei não podem ser atribuídos a uma possível falta de transparência no processo. O deputado refere que a então proposta de lei, “em comparação com muitas outras leis governamentais”, até foi conduzida de forma “muito pormenorizada”.

No entanto, admite falhas na comunicação com o público, sobretudo por questões de “mentalidade”. Não fugindo à culpa, refere que a Assembleia não conseguiu equilibrar a proteção da segurança nacional e as preocupações das pessoas.

“O Governo fez muito mais em todo o exercício legislativo (…) mas será que o esforço adicional foi suficiente para responder às preocupações? Penso que há muito espaço para melhorias neste domínio”, acrescenta.

Para o deputado, a lei é necessária, “para se adequar com a de Hong Kong e do interior da China”, além de ter um objetivo claro: “Aqueles que têm a intenção de violar a Lei, não se atreverão a fazê-lo”.

Na minha opinião, estas preocupações não têm razão de ser. Na verdade, quando foi feita a Lei da defesa da segurança do Estado, havia vozes a expressar preocupações semelhantes. E o tempo acabou por demonstrar quão infundadas elas eram

Oriana Inácio Pun, secretária-geral da direção da Associação dos Advogados de Macau

Contudo, ressalva que quem não tem essa intenção ou dolo “não deve ser apanhado pela Lei inadvertidamente”.

Ao nosso jornal, o deputado insiste que a educação do público continua a ser de extrema importância, “especialmente no que diz respeito à definição dos termos”.

“Era necessário que atingisse o mesmo nível de defesa das respetivas leis da China e da Região Administrativa Especial de Hong Kong”, reforça Calvin Chui, sócio do escritório de advogados Rato, Ling, Lei & Cortés. O jurista acrescenta que a implementação desta lei em Hong Kong “aperfeiçoou e desenvolveu a política ‘Um País, Dois Sistemas’”.

Leis subsidiárias protegem princípios da RAEM

O Governo diz que a lei tinha de ser alterada por ainda não conseguir desempenhar “um papel orientador e incentivador nas tarefas da RAEM relativas à defesa da segurança nacional”.

Calvin Chui concorda. “Visa-se que esta se torne uma lei básica, principal e essencial no sistema jurídico da defesa da segurança do Estado na RAEM”.

Quando a proposta de lei foi entregue à Comissão Permanente, esta solicitou ao proponente que esclarecesse como se iria materializar a garantia dos legítimos direitos e interesses dos residentes e outras pessoas no âmbito da proposta de lei.

Nessa altura, o Governo respondeu que as alterações foram feitas com base em dois grandes princípios: “respeitar a tradição e “garantir os direitos humanos”.

Não é a ‘criminalização por palavras’ que constitui a grande preocupação da sociedade, mas sim saber se vai haver abusos na futura aplicação da lei

Ron Lam, membro da Assembleia Legislativa de Macau

Na defesa dessa posição, o proponente disse que “a maior parte do sistema processual penal (…) foi criado com recurso à remissão para outras leis existentes”.

Por outro lado, menciona, por exemplo, que para a criação do crime de “instigação ou apoio á sedição”, “além do estrito cumprimento da lei penal de Macau”, tudo será feito de acordo com “a teoria legislativa, os antecedentes legislativos, os modelos legislativos e a técnica legística, procurando-se concretizar um equilíbrio entre repressão dos crimes e garantia da liberdade de expressão dos residentes”.

Esta prática é legitimada pelo Art. 14.º da Lei, “Aplicação Subsidiária”, que estabelece que “em tudo o que não estiver especialmente regulado na presente lei, são subsidiariamente aplicáveis, nomeadamente, as disposições do Código Penal, do Código de Processo Penal, do Código do Procedimento Administrativo, do Código de Processo Administrativo Contencioso e da Lei n.º 10/2022”.

Foi algo inclusive assegurado ao presidente da Associação de Imprensa em Português e Inglês de Macau (AIPIM), José Miguel Encarnação, quando se reuniu com o Secretário para a Segurança, Wong Sio Chak. “Foi-nos garantido que haveria remissão para a moldura penal já existente em Macau. No nosso caso (jornalistas), o Secretário para a Segurança garantiu-nos que a lei também remete para a Lei de Imprensa de Macau.” Por isso, reitera: “A nossa grande preocupação é que a Lei de Imprensa se mantenha inalterada.”

Foi-nos garantido que haveria remissão para a moldura penal já existente em Macau. No nosso caso (jornalistas), o Secretário para a Segurança garantiu-nos que a lei remete também para a Lei de Imprensa de Macau

José Miguel Encarnação, presidente da
Associação de Imprensa em Português e Inglês
de Macau (AIPIM)

Entre a lei e a sua aplicação

A alteração à Lei de segurança do Estado tem preocupado a população e as associações. Há receios de que a liberdade de expressão ou de associação sejam comprometidas pela nova lei, mas também da sua aplicação, sobretudo se for utilizada em prol de uma atitude severamente patriótica.

A Associação dos Jornalistas de Macau afirmou que “trabalhar como jornalista em Macau será uma profissão de alto risco”.

Um dos artigos que suscita dúvidas à AJM é o artigo 3.º – A da lei, que regula a instigação ou apoio a rebelião. “No futuro, o crime de incitamento abrangerá: expressar opiniões políticas diversas, discutir o possível desenvolvimento do sistema político de Macau, questionar ou criticar a aplicabilidade e as normas de execução da lei de salvaguarda da segurança nacional, e criticar as políticas ou funcionários? Qual é a fronteira entre a conduta criminosa e não criminosa nestas situações?”, interrogou a associação num parecer levado à comissão da AL que analisou o diploma.

Era necessário que atingisse o mesmo nível de defesa das respetivas leis da China e da Região Administrativa Especial de Hong Kong

Calvin Chui, sócio do escritório de advocacia
Rato, Ling, Lei & Cortés

Em causa está também o facto de os crimes de secessão (Art. 2.º) e subversão contra o poder político (Art. 3.º) poderem agora ser praticados por “qualquer meio ilícito” e não apenas por “meios violentos”, como antes estabelecia. Assim, acresce o espetro das ações ilícitas que podem ser consideradas crime.

À comissão, o proponente justificou a alteração do termo já que o “modelo deste crime mostra uma tendência não violenta”.

Também respondeu à comissão que não há uma definição legal do conceito “meios ilícitos” porque estes “continuarão sempre a alterar-se consoante o evoluir das épocas”.

Na Lei n.º 2/2009, o Art.7.º tinha a seguinte redação: “Estabelecimento de ligações por organizações ou associações políticas de Macau com organizações ou associações políticas estrangeiras para a prática de actos contra a segurança do Estado”. Agora, passa a ser “Estabelecimento de ligações com organizações, associações ou indivíduos de fora da RAEM para a prática de actos contra a segurança do Estado” (Art. 5.º-A). Ou seja, retirou-se as palavras “políticas” e “estrangeiras”. “Ao retirar as palavras efetivamente adequa-se o seu âmbito de aplicação. As disposições antigas não conseguiam dar resposta eficaz e sancionar os indivíduos ou organizações que estabeleçam a ligação com organizações ou associações externas não políticas e planeiem atividades contra a segurança do Estado e da RAEM”, explica Chui.

“Falando francamente, penso que o público em geral está muito longe do que está em causa. Sei que as pessoas estão preocupadas com a possibilidade de a liberdade de expressão ser posta em causa. Na minha opinião, todo o quadro da Lei de Segurança Nacional está certamente mais regulamentado do que antes, e os seus procedimentos criaram efetivamente novas infrações. Mas, de facto, o verdadeiro ponto de partida para a criminalização é a violação da lei penal correspondente e não simplesmente a criminalização pelo discurso”, atenta Ron Lam.

“O crime é mais rigoroso, por agora referir ‘qualquer meio ilícito’ e não ‘meios violentos’, mas quando discutimos os pormenores, a apresentação também sublinhou que só quando o direito penal existente é violado é que haverá condenação”, diz, acrescentando que “só se alguém ajudar direta e abertamente a cometer um crime previsto no Art. 3.º-A é que será considerado como ‘incitamento à rebelião’”.

Mesmo assim, compreende o que realmente preocupa as associações e os residentes. “Não é a ‘criminalização por palavras’ que constitui a grande preocupação da comunidade, mas sim saber se vai haver abusos na futura aplicação da lei.”

Durante os trabalhos da comissão e até mesmo nas sessões da Assembleia Legislativa, Wong Sio Chak reiterou que tem de haver dolo para que seja considerado crime aos olhos da Lei de Segurança Nacional. “Se não houver dolo não é crime”, respondeu a um caso prático colocado por Ron Lam no âmbito da “Violação de segredo de Estado” (Art.5.º).

Também no crime de secessão o Governo deu a entender à comissão que tem de haver dolo por parte do agente.

A secretária-geral da direção da Associação dos Advogados de Macau, Oriana Inácio Pun, defende que não há motivos para a população ter medo da nova lei.

“Na minha opinião, estas preocupações não têm razão de ser. Na verdade, quando foi feita a Lei da defesa da segurança do Estado, havia vozes a expressar preocupações semelhantes. E o tempo acabou por demonstrar quão infundadas elas eram: ao fim de mais de 10 anos em vigor, felizmente, esta Lei não teve nenhuma aplicação, e durante todos estes anos, os residentes de Macau continuaram a viver sem qualquer restrição dos seus direitos, liberdades e garantias.”

“Conforme já explicitado no documento de consulta relativo à revisão desta Lei, os crimes de secessão, subversão e sedição encontram-se previstos em vários países, em termos semelhantes”, assegura Pun.

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