Fundo soberano para não repetir perdas de 2022

por Gonçalo Lopes
Tony Lai

Macau registou perdas raras nos investimentos da reserva financeira em 2022. Académicos apontam que o Governo já reduziu os riscos e prevêem menor volatibilidade do ambiente económico. Contudo, sugerem a criação de um fundo soberano para aumentar o retorno financeiro

Desde o estabelecimento regime jurídico da reserva financeira da RAEM em 2012, o investimento global da reserva fiscal tem registado lucros ano após ano, sob a gestão da Autoridade Monetária de Macau (AMCM). No entanto, esta tendência notável chegou ao fim no ano passado.

A AMCM anunciou recentemente que os investimentos das reservas fiscais sofreram uma perda de 20.75 mil milhões de patacas (MOP) em 2022, representando uma taxa de rentabilidade negativa de 3,4 por cento.

De acordo com a entidade que serve de banco central da cidade, esta queda deveu-se a uma série de fatores negativos, como riscos geopolíticos, interrupção da cadeia de abastecimento global causada pela pandemia de Covid-19, e aumentos significativos das taxas de juros pelos principais bancos centrais do mundo.

No final de 2020, a reserva financeira da cidade ascendia a MOP557.9 mil milhões, um total dividido entre a reserva básica com MOP185.1 mil milhões e a reserva extraordinária com MOP372.8 mil milhões.

“[No ano passado] ocorreu um acontecimento único em décadas nos mercados financeiros [globais] – tanto os mercados de ações quanto os de títulos registaram perdas significativas ao mesmo tempo”, descreveu a AMCM num comunicado.

José Luís de Sales Marques, economista

Em resposta ao abrandamento dos mercados financeiros globais no ano transato, a AMCM tomou várias medidas de gestão de riscos, entre as quais a afetação de ativos a depósitos em mercados mais seguros e com maior liquidez; a redução de investimentos de maior risco; e o lançamento de um mecanismo de cobertura para ativos de risco e moeda estrangeira.

Estas medidas permitiram que o desempenho global da reserva financeira de Macau “superasse significativamente” o de outros fundos e reservas internacionais no ano passado, apesar das perdas registadas, notou a AMCM.

Em comentários ao PLATAFORMA, o economista José Luís de Sales Marques cita dados da Global SWF – uma plataforma que acompanha fundos soberanos e fundos de pensões públicos em todo o mundo -, que indicam que o valor total de ativos dos fundos soberanos globalmente caiu quase 8 por cento no ano passado.

No entanto, no mesmo período, os ativos de fundos públicos de pensão caíram também quase seis por cento devido às flutuações dos mercados.

“Comparado com outros fundos internacionais, as perdas da reserva financeira de Macau não foram extraordinárias, o que mostra que o Governo de Macau não fez um mau trabalho na gestão das reservas”, indica o também presidente do Instituto de Estudos Europeus de Macau.

“A RAEM adotou um estilo prudente na gestão das nossas reservas, o que resultou em resultados positivos nos últimos anos.”

Segundo a AMCM, os investimentos das reservas financeiras registaram lucros de MOP95.18 mil milhões de 2017 a 2021, com uma média anual de retorno de 3,67 por cento. Em 2019 a taxa de retorno chegou mesmo a 5,6 por cento.

Menos flutuações em 2023

Henry Chun Kwok Lei, professor assistente do Departamento de Finanças e Economia Empresarial da Universidade de Macau, também reconhece o “bom trabalho” do Governo nesta gestão. Contudo, aponta que as atuais condições do mercado global tornam difícil prever o desempenho das reservas financeiras em 2023.

“Embora o impacto da pandemia no mercado seja agora menor, ainda há uma série de incertezas, incluindo a guerra entre a Rússia e a Ucrânia e o ajuste da política monetária dos Estados Unidos. Os aumentos das taxas de juro nos EUA são menores, mas não é certo que essa tendência se mantenha”, diz.

“Tendo em conta todos estes fatores, só posso prever que a flutuação dos mercados em 2023 será menor que em 2022.”

Sales Marques concorda que é difícil prever o desempenho das reservas financeiras. “[Mas] com base na situação das reservas nos últimos anos, acredito que as autoridades saberão como lidar com a situação, [independentemente do que aconteça]”, acrescenta.

A AMCM prevê um abrandamento do crescimento económico mundial em 2023; inflação galopante; esforços contínuos dos bancos centrais para apertar a sua própria política monetária; e riscos geopolíticos.

Todos estes fatores devem influenciar fortemente os preços dos ativos financeiros globais, colocando desafios no planeamento dos investimentos de reservas e fundos financeiros, alertou a autoridade monetária.

“Neste cenário de mercado complexo e volátil, vamos continuar a alocar uma proporção maior das reservas em ativos de baixo risco. Vamos também acompanhar de perto a situação mais recente da economia global e dos mercados financeiros, e realizar ações prudentes e ajustes dinâmicos para procurar um equilíbrio entre risco e retornos”, observou o banco central de facto da cidade.

“Isso ajudará a atingir a meta de manter e aumentar o valor patrimonial das reservas fiscais a médio e longo prazo.”

Controvérsias abundantes

Nos últimos anos, tem-se sugerido ao Governo de Macau que utilize parte das suas reservas fiscais para constituir um fundo soberano dedicado à cidade, à semelhança do Temasek – fundo soberano de Singapura -, que permita investimentos em produtos e projetos fora do mercado financeiro.

Mais especificamente, foi proposto que este fundo investisse em projetos de infraestrutura regional, investimentos comerciais, imobiliários, e start-ups.

A anterior administração da RAEM — liderada por Fernando Chui Sai On —propôs em 2019 transferir MOP60 mil milhões das reservas para estabelecer uma entidade designada como Sociedade Gestora do Fundo para o Investimento e Desenvolvimento de Macau, S.A., com o propósito de gerir e utilizar a reserva financeira de uma forma mais eficaz e com retornos mais elevados.

No entanto, a proposta gerou protestos da população, com vários setores societais a questionar os motivos desta proposta.

Henry Chun Kwok Lei, professor assistente do Departamento de Finanças e Economia Empresarial da Universidade de Macau

Como o anterior Chefe do Executivo já estava de saída, foram feitas acusações de que este fundo seria usado para conluio de poder e benefícios próprios dos funcionários cessantes.

A administração de Chui acabou por retirar a proposta no final do mesmo ano, justificando que as autoridades fariam uma consulta pública sobre o assunto para chegar a um consenso.

Empossado no final de 2019, o novo Chefe do Executivo, Ho Iat Seng, não realizou até agora qualquer consulta sobre um possível fundo soberano de Macau. No ano passado, comentou apenas que as autoridades continuam a estudar esta proposta. Na mesma altura, avisou que vários fundos soberanos internacionais de renome registaram perdas graves nos últimos tempos devido às oscilações dos mercados financeiros, sublinhando que o Governo de Macau deve avaliar com prudência a viabilidade de um fundo público.

Enriquecimento dos métodos de investimento

Os dois académicos consultados pelo PLATAFORMA, Lei e Sales Marques, concordam que neste momento muitas incertezas pairam sobre o mercado financeiro, mas ambos consideram que Macau precisa de criar um fundo soberano para enriquecer os canais de investimento das suas reservas fiscais.

“Acho que o Governo deveria acelerar os seus estudos sobre esse assunto”, diz Lei.

“A criação de um fundo soberano permite mais flexibilidade nos investimentos das suas reservas, incluindo projetos de infraestruturas regionais, onde pode ter maior retorno, enquanto apoia o desenvolvimento regional.”

Em 2018, os governos de Macau e Guangdong estabeleceram o Fundo de Desenvolvimento da Cooperação Guangdong-Macau.

Macau contribuiu com 20 mil milhões de renminbis (RMB) das suas reservas fiscais, enquanto Guangdong ficou responsável por investir em projetos de infraestruturas na Área da Grande Baía.

De acordo com os termos do fundo de cooperação, Macau tem direito a um rendimento garantido de pelo menos 3,5 por cento da sua contribuição de capital, e a uma quota adicional quando as receitas dos projetos ultrapassarem um determinado montante.

Foi reportado que no final de 2020, Macau tinha já recebido um retorno garantido de RMB400 milhões.

Para Sales Marques, este é um bom exemplo de uma utilização mais eficiente das reservas fiscais.

“[No entanto], um retorno garantido de 3,5 por cento não é realmente alto dada a inflação, taxas de câmbio e de juros”, salienta. “A longo prazo, Macau precisa de estudar a criação do seu próprio fundo soberano”, remata.

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