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O maior escândalo da modernidade

Paulo RegoPaulo Rego*

Não surpreende; apenas confirma uma tendência que vem de longe – nem por isso menos chocante.

Segundo dados divulgados esta semana no Fórum Davos pela agência não-governamental Oxfam, na última década, 1 por cento da população mundial acumulou cerca de 50 por cento da riqueza mundial. Deixando os outros 99 a dividir o que sobra.

É absolutamente urgente uma consciência social e política que inverta este escândalo. Mas o que está a acontecer revela o pior : desde 2020, 1 por cento dos 8 biliões de pessoas no planeta passou a arrecadar 63 por cento de toda a riqueza produzida.

Diria Zeca Afonso, ícone das canções revolucionárias em Portugal: “Eles comem tudo e não deixam nada”.

Muitos fatores contribuem para o poder da oligarquia planetária: o saber histórico das elites, o acesso aos altos cargos dirigentes; a influência nos círculos de decisão… e um absoluto cinismo de quem tem tudo, fechando os olhos a quem nada tem. Assim, não há sistema político com mínimo de crédito. Independentemente das ideologias ou personalidades em presença, estamos todos juntos nisto. É óbvio que os países mais desenvolvidos apresentam uma distribuição do PIB per capita menos dramática.

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Ainda assim, também aí o fosso entre ricos e pobres continua a crescer. Cruzando dados do Banco Mundial com organizações como a Oxfam, percebe-se que, nos últimos três anos, as brutais injeções financeiras na economia real; primeiro para combater os efeitos da crise pandémica, depois pelos constrangimentos da guerra na Ucrânia, mais uma vez as elites puseram a mão na massa e no recheio do bolo, deixando as migalhas para toda a outra gente.

Primeiro, porque são eles que arrebatam os envelopes financeiros estatais e o crédito ao investimento; depois, porque a fuga aos impostos é uma realidade oficial e permitida.

A evidência de que Elon Musk, guru da Tesla, beneficia de uma carga fiscal inferior à de um agricultor africano, é a prova cabal de uma ética inexistente na governação mundial. Perante isto, a Oxfam defende uma sobretaxa fiscal para os multimilionários. Só por si, dizem, tiraria da pobreza cerca de 2 biliões de pessoas.

Democracias liberais, ou iliberais; ditaduras de esquerda, ou de direita; imperialismos, populismos, e o que mais houver… estão todos na estatística – e todos estão em causa. Porque se o problema não está nem na produção do PIB, mas sim na distribuição per capita, mais cedo ou mais tarde a bomba relógio vai explodir.

Sempre houve elites; sempre foram muito importantes; e sempre abusaram…

Contudo, era suposto que a globalização, o multiculturalismo, o conhecimento e a revolução tecnológica invertessem esta realidade. Mas os números mostram precisamente o contrário.

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Do ponto de vista político, às elites políticas e económicas convém ganharem consciência de que é assim que começam as revoluções. A imagem é muito nítida: num bairro de lata qualquer, suspendo em morros de lixo, os mais pobres olham lá para baixo para condomínios privados, carros de luxo e segurança ostensiva. E pensam que um dia talvez arrisquem descer o morro e tomar conta – pela violência – daquilo que a minoria acumula.

Do ponto de vista ético, Peter Singer, filósofo americano que em 2020 esteve na Web Summit, confronta-nos com o dilema ético da criança a morrer afogada: “Suponhamos que me apercebo de que uma criança caiu a um lago e está em risco de se afogar”.

Alguém duvida que eu devia entrar no lago e tirar de lá a criança? Isso implicaria ficar com a roupa cheia de lama entre outros inconvenientes; no entanto, em comparação com a morte evitável da criança, isso é insignificante.

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Um princípio plausível que apoiaria o juízo de que devo tirar a criança do lago é o seguinte: se estiver nas nossas mãos evitar que aconteça um grande mal, sem com isso sacrificarmos nada de importância moral comparável, devemos fazê-lo”.

Há milhões e milhões de crianças afogadas na pobreza.

Afinal, quem tem coragem de meter as mãos na lama?

*Diretor-Geral do PLATAFORMA

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