Tudo tem um preço

por Filipa Rodrigues
João MeloJoão Melo*

Saber que tudo tem um preço é um conhecimento que advém da maturidade.

Quando um miúdo enfia uma vareta metálica numa tomada eléctrica desconhece o choque até o sofrer, e aí vai aprender o custo da acção. Para mim a saúde é um estado de equilíbrio geral e temporário entre forças em conflito. Exemplo: se por uma emoção negativa acumulada, uma deficiência genética, um ataque exterior, ou a simples incapacidade de regeneração, um órgão passa a contribuir menos para o bem comum, irá sobrecarregar o seu órgão par ou outros que são forçados a compensar, gerando-se o desequilíbrio a que chamamos doença (ou velhice). Quem consome demasiadas bebidas alcoólicas sabe, ou deveria saber, que aflige o fígado, obrigando-o a trabalho extra para processar o veneno, o álcool, de modo a torná-lo assimilável pelo organismo. Certamente já experimentou a ressaca, conhece as consequências portanto concorda com o custo. Se a longo prazo se der a falência do fígado devido ao abuso é difícil alegar desconhecimento; sejamos honestos, esta pessoa escolheu ser inconsciente, logo implicitamente aceitou pagar o preço fosse ele qual fosse.

Há dias Gianni Infantino, o presidente da FIFA insurgiu-se contra os críticos da escolha do Qatar para acolher o Mundial afirmando que “o que está a acontecer é profundamente injusto; depois do que fizemos nos últimos três mil anos, nós, europeus, devíamos pedir desculpa pelos próximos três mil anos antes de começar a dar lições de moral a alguém. Hoje sinto-me qatari, sinto-me árabe, sinto-me africano, sinto-me gay, sinto-me deficiente, sinto-me trabalhador migrante… sinto-me tudo ao mesmo tempo”. Nem vou comentar esta bizarria que deturpa a realidade aos seus interesses, eventualmente o mesmo que os ditos críticos fazem, e acaba por ser tão paternalista quanto incendiária uma vez que mistura uns pozinhos de factos com muitas convicções e emoções exacerbadas. Esqueçam a verborreia, ela está lá para desviar a atenção dos papalvos, o que me interessa é a essência e ela resume-se a isto: Infantino está a justificar o custo da escolha. Pegando na analogia da bebida, ao atribuir a organização ao Qatar alguém antes dele gozou do prazer do álcool (tráfico de influências), agora para manter a face da organização Infantino lida com a cirrose. No fundo diz “ahhh shut up you hypocrites, refilaram antes? Não? Então agora calem-se!” É a lei da compensação, uma mão lava a outra “eu falhei mas tu também falhaste, logo não tens mais moral que eu”. No meio disto tudo surgiu um comentário lúcido de um homem do futebol, o treinador alemão do Liverpool, Jürgen Klopp: “vocês da imprensa na altura não escreveram nenhum artigo que mostrasse que isto podia ser crítico, porém as circunstâncias eram claras, e nós somos os culpados. Não é bom para os jogadores e todos deixámos que isto acontecesse. Quando há 12 anos ficou decidido que o Mundial seria no Qatar ninguém fez nada, agora também não podemos fazer alterações. Atenção, há pessoas maravilhosas lá, nem tudo é mau mas a maneira como as coisas aconteceram não foi correcta, agora é deixar os jogadores jogarem. Todos permitimos que isto acontecesse, vocês mais do que eu, mas todos permitimos. Na altura já estava claro o que ia acontecer, as pessoas diziam ‘é difícil construir estádios no Qatar porque é preciso fazê-lo no verão e estão 50 graus’. Isso não é bom para seres humanos, na verdade é impossível, e ninguém pensou nisso, acho que naquela altura ninguém sequer falou disso”. Klopp assume a sua quota parte da culpa (por sinal, bastante relativa) mostrando ao mesmo tempo ser um homem inteligente e maduro. Diferente atitude tem a FIFA, claro. Mais um sentindo-se obrigado a defender o indefensável, Brian Swanson director de comunicação da FIFA e assumidamente gay afirmou isto: “eu tenho lido muitas críticas da comunidade LGBTQIA+ sobre o Mundial do Qatar. Mas quero dizer aqui, em público, que como um homem gay, me sinto à vontade aqui, sinto-me bem-vindo”. Palavras para quê? É o mesmo princípio que levado ao extremo produziu réus nazis em Nuremberga a justificar atrocidades com “o que é que eu podia fazer senão olhar para o lado? Se não obedecesse seria eu a vítima”…

Os direitos humanos são uma bandeira do ocidente, bonita por sinal, mas quando se atravessa à frente de outra bandeira desse ocidente, o capitalismo, geralmente amocha. Já vimos que tudo tem um preço, e pelo preço certo a bandeira dos direitos humanos enrola-se na gaveta ou no mínimo não se agita. A bandeira que na decisão deste Mundial há 12 anos se encontrava arrumada desfralda-se agora. É por haver mais consciência? Sim mas não sejamos ingénuos: da maneira como os governos das grandes potências ocidentais a esfregam na cara dos inimigos, a bandeira dos direitos humanos tem servido para exercer pressão; juntamente com a “democracia” são as únicas vantagens morais que o ocidente possui já que no concerto das nações as convicções representadas pelas religiões têm todas iguais direitos. Por isso os direitos humanos são tão importantes para as potências ocidentais, são a sua arma ética, mais poderosa que qualquer outra do inimigo.

Entretanto a bola já rola nos estádios e logo a abrir o Qatar estabeleceu uma nova marca: nunca um país anfitrião perdera o jogo de abertura. Não será propriamente uma novidade, parafraseando Klopp “estava claro o que ia acontecer”. E o que aconteceu? Bem, o que aconteceu foi que o miúdo não tem jeitinho nenhum para o futebol contudo o pai rico comprou a escola só para o treinador o pôr a jogar. Não significa que alguma vez vá jogar bem, significa que se os outros quiserem jogar futebol têm de levar com o puto. E olhem que as coisas já estão melhorzinhas… Eis a história: Mundial de 1982, jogo entre Kuwait e França, aos 87 minutos a França aumenta o score para 4-1. Os jogadores do Kuwait rodearam o árbitro soviético queixando-se de um alegado fora-de-jogo. Quando tudo parecia uma típica situação de discórdia, o insólito aconteceu. Inconformado com a decisão do juiz o sheik do Kuwait mandou os seus jogadores saírem de campo, desceu até ao relvado acompanhado de dezenas de militares kuwaitianos alegando que os seus jogadores ouviram um apito e que por isso pararam de pressionar, pelo que o golo deveria ser anulado. Após todo o espalhafato e confusão gerada por um golo perfeitamente legal, mesmo tendo em conta a decisão inicial, o árbitro decidiu anular o golo por temer pela sua vida. Comunicada a decisão o sheik e respectiva comitiva voltaram para a tribuna e o jogo recomeçou com os franceses atónitos e sem reacção perante o sucedido. Respeitinho é muito bonito, carago! Quem organiza o Mundial dispensa a fase de apuramento e depois na fase de grupos é cabeça de série. O Qatar é uma das selecções mais fracas do ranking, não disputou um único jogo a sério, nunca esteve anteriormente em nenhum Mundial e, eu sei que este meio é fértil em chavões tais como “no futebol tudo é possível”, mas não há sinais de que alguma vez seja possível estar noutro Mundial… a não ser que o compre. Já em termos desportivos a Selecção do Qatar está a pagar o preço da ambição dos seus dirigentes. Meu, não há milagres, querem estar presentes numa competição de elite com uma equipa apenas quatro lugares acima da do Burkina Faso no ranking da FIFA, arriscam-se a resultados confrangedores, e só não é uma vergonha porque em inúmeros aspectos deste Mundial ninguém parece tê-la.

*Músico e embaixador do PLATAFORMA

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