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Diálogos com o Imperador

Catarina Brites SoaresCatarina Brites Soares

“Tomás Pereira e o Imperador Kangxi: Um Diálogo entre A China e o Ocidente”, lançado no mês passado, é assinado por Tereza Sena e centra-se no jesuíta que serviu como conselheiro do imperador chinês Kangxi durante 36 anos. Pereira conquistou um lugar de influência na cena diplomática e política da China do séc. XVII e o livro da editora Guerra & Paz descreve as vivências do português como um reflexo desse contexto histórico único. Como sugere a promessa feita no resumo da história: “Este livro irá certamente suscitar a curiosidade e o interesse do leitor pela vida invulgar deste religioso que contribuiu para o diálogo entre o Oriente e o Ocidente, estabelecendo uma relação de proximidade e de diálogo intercultural nunca antes estabelecida”

“À medida que o palanquim descia a enorme escadaria de São Paulo, Tomás não tinha ainda absoluta consciência de que não voltaria a ser o mesmo homem. A sua especialidade em cálculo do calendário soara aos ouvidos do imperador manchu. Muito jovem, mas senhor do mais vasto e lendário império, quase nos antípodas da modesta aldeia do Pedreiro, onde Tomás nascera havia cerca de vinte e seis anos, no distante Portugal da sua infância e juventude. Quisera-o na sua corte e, magnificente e todo-poderoso, enviara dois emissários a Macau, escoltados por quinhentos soldados, para que, com a maior rapidez, levassem à sua presença o hábil Tomás, um padre muito curioso de instrumentos de Matemática e Aritmética”.

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O excerto serve para aguçar a curiosidade sobre o protagonista do livro assinado por Tereza Sena. A sua exceção mereceu-lhe as páginas que ajudam a desvelar mais um pouco sobre a relação dos jesuítas na corte em Pequim e o papel que tiveram no Tribunal das Matemáticas quase 200 anos.

“Tomás Pereira é um dos que está no grupo dos padres da corte, que eram muito poucos. São quatro ou cinco que estão ao serviço do Imperador, seguindo uma estratégia implementada por Matteo Ricci um século antes”, explica a historiadora, que desde 1988 se dedica ao estudo de Macau, e da missionação na China e Sudeste Asiático. As missões no país tinham duas vertentes, acrescenta. Estar junto do imperador para conseguir apaziguar conflitos se surgissem, como movimentos anti-cristãos, uma vez que garantiam uma zona de influência para acalmar tensões. E, por outro lado, cultivar alianças com os Mandarins que vão a Pequim para estarem próximos deles quando assumiam o Governo das diversas zonas do Império. “Fazem a política do guanxi, para assegurar proteção local”, descreve.

ENTRE OS MANDARINS

Sem estatuto na hierarquia oficial chinesa, são considerados cortesãos pelo poder imperial. Tomás Pereira foi um dos que gozou dessa proximidade. Entre os vários serviços que prestou ao Imperador, foi professor de música e ensinou-o a tocar órgão.

“É o primeiro a compor um tratado sobre música ocidental em língua chinesa na China e por isso figura nos anais da própria Dinastia Qing”, assinala a autora, que acrescenta outros campos nos quais o jesuíta se destacou.

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Primeiro, assegura a presidência do Tribunal das Matemáticas durante oito anos, entre 1688 e 1694. “Aqui já há um diálogo porque garante a presença do conhecimento/ciência ocidental numa tarefa importante que era o cálculo do calendário, a passagem de cometas, as cheias, entre outras questões extremamente importantes para um Imperador e prova de bom governo, tendo em conta que a China era um país essencialmente rural”, contextualiza.

Tereza Sena. Créditos: Gonçalo Lobo Pinheiro

A mediação nas negociações do primeiro tratado sino-russo, em 1689, foi outro dos marcos do percurso do jesuíta. O Tratado de Nerchinsk demarcou as fronteiras entre a China e a Rússia, e pôs fim a uma situação de guerra iminente entre os dois impérios. “Foi um garante de pacificação que durou mais de um século”, sublinha a investigadora.

O sucesso resultou no chamado Édito da Tolerância atribuído por Kangxi, em 1692. “Pela primeira vez a religião católica deixava de ser considerada herética. Passa a haver uma tolerância religiosa, não há uma liberdade, mas há uma tolerância”.

“AINDA HÁ UM LONGO CAMINHO A PERCORRER”

A história do padre é singular. Chega para justificar mais um livro sobre ele, mas há outros pontos de interesse. A narrativa histórica, dividida em partes e pensado para o grande público, também toca na relação entre Ocidente/ Oriente e o papel de Macau. “Explica-se um pouco como Macau foi importante na formação e ligação a Pequim através do fornecimento destes missionários e como os jesuítas influíram sobre as questões de Macau”, refere a historiadora.

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O protagonista entra ‘em cena’ a partir do momento que está na capital chinesa, quando já há documentos escritos por si. Até lá, ressalva Sena, trata-se de uma “narrativa plausível”.

“Faço a recriação de um percurso coletivo. A formação enquanto jesuíta, a viagem marítima – a dele, que foi a de muitos outros – até chegar a Pequim. Não temos muitos dados concretos, e por isso parto um de colagem de textos e conhecimento, e construo um ção cronológica. O que me interessa é criar uma narrativa coletiva do que foi a preparação dos missionários e do que era a viagem marítima. Ele era um entre outros”, diz.

A par dos registos que os jesuítas como Tomás Pereira deixaram, há muita história. “Mas que é difícil de construir porque não há fontes”, ressalva.

A historiadora, com mais de 60 títulos publicados, reconhece haver cada vez mais académicos dedicados ao tema e que os trabalhos de cooperação são determinantes porque ajudam a superar obstáculos como a língua. “Falta saber que tipo de laços havia entre as pessoas. As famosas Chapas Cínicas [documentos em chinês de correspondência oficial trocada entre Portugal e China em Macau] são um manancial de informação e aí já podemos ter pessoas que ligam os dois lados. Mas há um grande caminho ainda a percorrer”.

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