Início Cabo Verde Aniceto Gomes, 40 anos a construir instrumentos em Cabo Verde e diz que não sabe tocar

Aniceto Gomes, 40 anos a construir instrumentos em Cabo Verde e diz que não sabe tocar

Aniceto Gomes começou a aprender a construir instrumentos musicais de corda com 16 anos, no ateliê do mestre Baptista, e nunca mais parou, tornando-se num dos principais artesões cabo-verdianos, mas, humildemente, diz que não sabe tocar.

Foi no bairro de Monte Sossego, o mais populoso da ilha de São Vicente, que Aniceto Gomes montou o seu ateliê há 24 anos, mas a história na confeção de instrumentos musicais de corda (viola, violão e cavaquinho) remonta a 16 anos antes, na escola do mestre Baptista, que reunia outros jovens para aprender esta arte.

“Entrei lá para aprender, como todas as crianças, sem pensar no que viria a ser hoje, um artista de renome. Foi uma surpresa para mim”, disse o ‘luthier’ profissional, de 56 anos, que nasceu em São Tomé e Príncipe, onde os pais se conheceram – ele, já falecido, moçambicano, e ela cabo-verdiana.

O artesão já perdeu a conta dos instrumentos construídos até hoje e das exposições em que participou, tanto dentro como fora do país, mas um dia quer expor as suas criações em São Tomé e Príncipe, onde nunca foi desde a ida, ainda criança, para Cabo Verde.

Em Monte Sossego, o ateliê já é muito mais do que isso, é praticamente um museu, onde expõe orgulhosamente cartazes, recortes de jornais e revistas, violas e cavaquinhos e fotos de artistas que já visitaram o espaço ou que já tocaram os instrumentos, destacando-se Gipsy Kings ou Jorge Aragão.

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“Os músicos cabo-verdianos de topo praticamente todos têm os meus instrumentos. É um motivo de grande satisfação, sinto-me muito motivado por ter feito alguma coisa”, salientou Aniceto Gomes, em entrevista à agência Lusa, em mais um dia de trabalho, numa rotina que se repete há 40 anos.

Um dos instrumentos que tem tido mais sucesso e evolução no país é o cavaquinho, de origem portuguesa, mas Cabo Verde já tem o seu modelo próprio, que, à parte do violão, é o principal ‘tocador’ da morna, género musical cabo-verdiano elevado a património imaterial da Humanidade em dezembro de 2019.

“Sentimo-nos muito gratos porque fazemos parte disso, no nosso violão e no nosso cavaquinho, que é o instrumento principal na morna”, orgulhou-se o artesão, enfatizando a evolução do cavaquinho, sobretudo desde os anos 1970, para ser tocado em França, Brasil, Países Baixos e noutras partes do mundo.

“O cavaquinho é o nosso símbolo”, prosseguiu o mestre, que considera que cada instrumento que produz todos os dias é como se fosse um filho.

Antes, o instrumento era tocado apenas em bares e nas ruas, mas hoje sobe em todos os palcos nacionais e internacionais.

O artesão garante que é capaz de reconhecer o som de um instrumento que saiu do seu atelier.

“Sinto algo diferente, porque vejo que faço parte do espetáculo, do artista que está a tocar o meu instrumento, ainda por cima quando é um artista de renome. É gratificante para um construtor ver os seus filhos serem publicados e subirem aos palcos”, orgulhou-se o ‘luthier’ (profissional que constrói e conserta instrumentos musicais de forma artesanal), que em 2020 foi uma das 68 personalidades e agrupamentos galardoados pelo Governo cabo-verdiano com a medalha de mérito cultural do Segundo Grau, um tributo ao “saber fazer artesanal”.

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Baú, Vozinha ou Djony do Cavaco são três dos muitos músicos cabo-verdianos que tocam os instrumentos “paridos” por Aniceto Gomes, e que são também os principais críticos e/ou incentivadores para a continuação desta arte.

“Falo muito com os artistas, nas noites, fazem parte da minha evolução na construção dos instrumentos”, assumiu, explicando que pelo facto de não ser músico precisa desse ‘feedback’ e exigência dos tocadores, que o leva a modificar muitos padrões nos instrumentos.

Com 40 anos a construir violas, vilões e cavaquinhos, o ‘luthier’ disse que ainda tentou aprender a tocar, enquanto faz um ensaio, mas mostra-se humildade e diz que sabe apenas “ranhar” alguma coisa.

“Não, não. Não sei tocar, mas preparo e afino um instrumento, para ficar à altura de um músico”, respondeu, explicando que se aprendesse a tocar poderia desviar-se da construção, pelo que prefere agora apreciar o dedilhar dos bons tocadores.

Com exposições feitas, por exemplo, em França, Portugal, Canárias ou Senegal, Aniceto Gomes conta com ajuda de três jovens, já formados, tal como o filho, que neste momento está a prestar serviço militar, mas diz que é difícil cativar mais gente para esta arte.

“Poderíamos ter trazido muito mais jovens para fazer este trabalho, mas neste momento não está fácil para os jovens se aproximarem de uma oficina, porque vêm para aprender e a primeira coisa que pensam é em ganhar dinheiro, o que é complicado. Não consegues ensinar ninguém ainda para pagares. Pelo contrário, ele que deveria pagar”, entendeu, garantindo, porém, que esta arte não está em risco.

“A arte é uma coisa difícil e nunca foi para muita gente, ficam nas formações aqueles que realmente gostam e que têm aptidão para isso”, mostrou, dizendo que alguns dos jovens que trabalham na sua oficina já podem abrir o seu próprio ateliê, mas alertou que é preciso alguma segurança e ter um nome no mercado para poder sobreviver desta e de outras artes.

Neste momento, o artesão não pensa mudar de local da oficina, num prédio onde também mora com a família, mas tem planos para abrir uma loja de instrumentos musicais no cento da cidade do Mindelo.

Quanto aos preços, são variáveis, sendo que o cavaquinho usado pelos artistas de renome que pode chegar aos 100 mil escudos (906 euros), enquanto os normais são vendidos entre 20 e 40 mil escudos (181 e 362 euros).

No caso do violão, disse que a maior parte dos artistas de renome usa este instrumento vindo do estrangeiro, embora ultimamente têm constatado que os artesãos cabo-verdianos são capazes de construir e com boa qualidade.

E aproveitou para deixar um apelo às entidades públicas de Cabo Verde, para darem mais atenção aos artistas para poderem dar continuidade a artes do tipo.

“Se as entidades não estiverem de mãos dadas, dificilmente vamos encontrar muitos jovens formados nesta área”, pediu Aniceto Gomes, apontando limitações e burocracia, sobretudo na importação de matérias-primas e nas viagens.

“São tudo coisas de que as entidades governamentais têm que abrir mão a favor dos nossos artistas, pelo menos os que já chegaram nalgum nível, para os outros poderem ter força em dar continuidade porque arte em Cabo Verde é uma mais-valia”, prosseguiu, congratulando-se com a criação do cartão do artesão por parte do Ministério da Cultura.

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