Um ano de vazio democrático

por Gonçalo Lopes
Inês Lei

Pela primeira vez em 29 anos, a Assembleia Legislativa não conta com o campo pró-democrata nas suas fileiras. Um ano depois da sua exclusão, António Ng e Scott Chiang dizem que a grande mudança é a falta de monitorização e discussão pública. Eilo Yu, analista político, explica que embora esta oposição nunca tenha conseguido contrariar o Governo, aproximava a população das decisões

Há um ano, 23 candidatos distribuídos por 7 listas foram afastados das eleições para a Assembleia Legislativa de Macau pela Comissão de Assuntos Eleitorais. Os argumentos para a decisão foram o desrespeito pela Lei Básica de Macau e falta de lealdade à Região Administrativa Especial de Macau. Entre estes, António Ng, veterano do campo pró-democrata, e Scott Chiang.

Um ano depois, a cidade enfrenta as consequências do pior surto epidémico desde o início da pandemia, alta taxa de desemprego e alterações à Lei do Jogo.

A imagem de Macau é marcada por estações de testes de ácido nucleico e ruas cheias de lojas por alugar. Não obstante, o número de críticas da Assembleia Legislativa ao Governo foi claramente mais baixo do que o ano passado, afirma Eilo Yu, professor associado do Departamento de Governo e Administração Pública da Universidade de Macau. A título de exemplo, destaca a alteração à Lei do Jogo como rara expressão pública das opiniões dos membros da Assembleia. “Parece que poucos deputados da Assembleia Legislativa conseguem refletir sobre o desenvolvimento e expetativas para a indústria do jogo de uma perspetiva do público.”

A nova Assembleia parece dar mais ênfase à cooperação com as

autoridades executivas, mas o seu poder político foi enfraquecido

Eilo Yu, analista político

Perante as restrições epidémicas, “a Assembleia não só aceita todas as propostas do Governo, como nem sequer discute o conteúdo em detalhe”, aponta o politólogo, aludindo à rápida aprovação do uso da reserva fiscal sem um plano específico para a alocação das verbas. “A nova Assembleia parece dar mais ênfase à cooperação com as autoridades executivas, mas o seu poder político foi enfraquecido”, enfatiza.

Ecossistema legislativo: a utilidade do inútil

Antes de 1992, quando António Ng ainda não ocupava um dos lugares da Assembleia, os deputados aproveitavam poucas oportunidades para intervir. A sua presença quebrou esse silêncio e criou um precedente para questões colocadas diretamente ao Governo pelos deputados. Questionado sobre as alterações ao longo do último ano, diz que “a principal mudança está na ausência da discussão pública e monitorização do Governo por parte dos deputados”. Há um ano atrás, Scott Chiang ia substituir António Ng na linha da frente. Hoje, confessa ao PLATAFORMA que nada mudou com a ausência dos pró-democratas, defendendo que a sua exclusão não tornou o trabalho do Governo mais fácil. O mesmo cita o grupo de Hong Kong “Mirror” como exemplo, afirmando que mesmo eliminando a oposição e limitando o espaço de discussão, ainda existe tensão em assuntos comunitários, que irão continuar a exigir esclarecimentos. “Quando se trata de algo com o qual nos importamos, iremos sempre procurar respostas e a verdade”, diz.

Eilo Yu ressalva que a presença pró–democrata na Assembleia não tinha impacto nas políticas governamentais, mas pelo menos diminuía a distância entre o Governo e a população. “Embora os deputados pró-democratas não tenham sido capazes de mudar a posição do Governo, a sua presença contínua na Assembleia fez com que estivessem em melhor posição para o pressionar.

Refletiam a opinião de mais membros da população e exigiam que o Governo explicasse as suas propostas ao detalhe”, salienta. Contudo, “é importante ver que no passado o campo pró-democrático não foi capaz de alterar estas medidas políticas. Um dos maiores exemplos desta incapacidade aconteceu em 2014 com o movimento contra a nova lei de subsídios, mobilizado pela população”, aponta.

A principal mudança está na ausência da discussão pública e monitorização do Governo por parte dos deputados

António Ng, veterano do campo pró-democrata

Centro é o novo extremo da assembleia

Scott Chiang afirma que no passado existiram vários membros da Assembleia que tanto questionavam como apoiavam o Governo. “Num diálogo entre vários membros da sociedade (Assembleia Legislativa), durante um ano sem a participação de democratas, os do centro automaticamente ocuparam esta vaga política”.

“O centro, em tempos apoiado por ambos os lados, agora parece ser o extremo da Assembleia.” Scott Chiang alerta que se estes deputados centristas se começam a destacar muito da harmonia política, poderão enfrentar mais pressões e desafios do que nunca.

Eilo Yu explica que o incidente das desqualificações não fez qualquer diferença na atitude do Governo. No entanto, o politólogo diz, no entanto, que o surto de junho fez com que a comunidade criticasse os deputados por não defenderem as necessidades da população. Os deputados do centro fizeram discursos no sentido de apoiar a opinião pública, mas não resultaram em mudanças concretas nas medidas adotadas pelo Governo. “O surto epidémico pode rebentar a bolha do centro”, reflete.

Haverá saída para democratas fora do palco político?

Sam, nascido nos anos 80, admite nunca ter desenvolvido grande empatia para com os democratas, mas não acredita que a sua exclusão foi correta. Com a desqualificação e a pandemia de Covid-19, sentiu-se desencorajado pela atitude do Governo. “Sinto que o meu voto foi desperdiçado. Nunca consegui encontrar alguém que me representasse, mas agora ainda menos, já nem presto atenção às notícias locais”, confessa.

Depois das eleições, Scott Chiang regressou a casa, dedicando a maioria do seu tempo às duas filhas. Segundo o contexto atual, acredita que será difícil promover qualquer tipo de proposta ou temática social, independentemente do deputado eleito. Por essa razão, considera que os eleitores não conseguem escolher quem os represente na Assembleia Legislativa. Porém, tal não apaga por completo a pegada ideológica: “Mesmo sem esta representação na Assembleia, a população garante a defesa dos seus interesses em vários aspetos da vida diária. Os condóminos em Macau são ainda uma pequena representação desta democracia”.

Eilo Yu diz que na eventualidade de a população mostrar descontentamento com as ações do Governo, o movimento pró-democrata ainda pode exercer pressão sobre as autoridades através de participação cívica.

É necessário restituir a confiança no Governo. A supervisão da Assembleia Legislativa é benéfica tanto para o Governo como para Macau

Scott Chiang, candidato desqualificado

Assembleia Chiang

O Governo fez algumas decisões excecionais durante a pandemia. Scott Chiang descreve o financiamento e combate epidémico como pouco transparente e sem qualquer trabalho de supervisão. “Cabe à Assembleia controlar estes números, mas até agora não assistimos a qualquer monitorização. Essa é a função da Assembleia Legislativa.”

Scott Chiang pinta um comunidade que enfrenta um futuro incerto, com um Governo perdido, assim como a sua população. Em tempos de instabilidade, acredita que as necessidades da população devem ser a prioridade. “Durante uma recessão económica, existem muitas pessoas em circunstâncias desfavorecidas e que precisam de ser ajudadas. Numa altura em que o clima social é mais incerto do que nunca, devemos salientar que todas as pessoas precisam de apoio, mas temos visto muito poucos esforços dos deputados neste sentido.”

O candidato desqualificado defende que, do ponto de vista dos deputados e da Assembleia, “para a cidade se reconstruir numa altura em que a comunidade não tem motivação, é necessário restituir a confiança no Governo. Como tal, a supervisão da Assembleia Legislativa é benéfica tanto para o Governo como para Macau”.

Sinto que o meu voto foi desperdiçado. Nunca consegui encontrar alguém que me representasse

Sam, residente local nascido nos anos 80

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