Contrabando aumenta em tempos de crise

por Gonçalo Lopes
Viviana Chan

Tem sido um problema constante em Macau, especialmente para quem habita perto das Portas do Cerco. Com a chegada da pandemia, o contrabando tem proliferado e em 2021 até quadruplicou. Ron Lam, membro da Assembleia Legislativa, explica que ao longo dos últimos 20 anos não foi dada grande importância ao comércio paralelo e que agora se colhem os frutos. Numa altura em que a recessão económica retira oportunidades de emprego aos jovens, o contrabando acolhe-os

Desde o primeiro surto em 2020 que a questão do contrabando em Macau tem-se tornado tema popular entre a população, além do vírus e recessão económica.

Comércio paralelo torna-se fonte de rendimento para classes mais baixas

Em entrevista ao PLATAFORMA, Ron Lam U Tou, membro da Assembleia Legislativa, explica que devido ao facto de tanto Hong Kong como Macau serem portos francos, os diferentes regimes de tarifas impostos nestas regiões e na China Interior resultaram numa disparidade de preços em certos produtos, fenómeno especialmente evidente em Macau. “Em Macau conseguimos ver que uma distância a pé de oito a 10 minutos (até Zhuhai) resulta em preços diferentes para o mesmo produto, esta disparidade naturalmente cria procura entre o comércio paralelo.”

Devido à pandemia, há cerca de dois anos e meio que o funcionamento regular do controlo aduaneiro entre Hong Kong e o continente tem sido afetado, levando a que Macau, de forma indireta, por manter um controlo aduaneiro relativamente normal, se transformasse num canal ótimo para contrabando. O deputado menciona que esta diferença de preço incentiva um fluxo enorme de mercadorias, “muitas pessoas trazem pequenas quantidades de produtos para venda de vez em quanto, por isso são difíceis de controlar.”

Ron Lam U Tou diz em tom de graça: “Desde que ando no ensino primário que me lembro de se falar no combate ao comércio paralelo em Macau, mas infelizmente apenas recentemente é que o governo parece levar o problema a sério.” O deputado comenta que tal pode ser demonstrado pelo facto de as autoridades não divulgarem informação sobre o número destes comerciantes e quantidade de bens apreendidos antes de 2020, pois não olhavam para o contrabando com seriedade antes da pandemia. “Não podemos negar que o comércio paralelo se tem transformado numa fonte de rendimento para classes mais baixas, apesar de estar presente em Macau ao longo dos 20 anos desde a transferência de soberania.”

De acordo com as observações do deputado, o desemprego é um obstáculo gigantesco para a cidade com a atual pressão da recessão económica. Neste contexto social, cada vez mais jovens em Macau juntam-se a esta atividade. “Devido ao desemprego, quando recebemos visitas no gabinete dos deputados à procura de ajuda, vários mencionam ter vendido cigarros na fronteira para conseguir algum rendimento extra enquanto desempregados.”

Crescente comércio paralelo por residentes de Macau

Embora geralmente assuma-se que os maiores participantes neste tipo de comércio sejam trabalhadores de fora que viajam regularmente entre Zhuhai e Macau, segundo os serviços alfandegários da cidade, houve apenas uma diferença de 13 entre o número de residentes locais e residentes estrangeiros envolvidos em contrabando no ano de 2020 (Fig. 2). 189 eram estrangeiros, 202 residentes de Macau e 244 residentes da China Interior. Contudo, não existe nenhuma análise estatística sobre se a maioria destes comerciantes possuem ou não visto de visita a familiares.

O número de residentes de Macau a cometer contrabando tem crescido ao longo dos últimos anos. Em 2021 foram detidos 592 residentes de Macau, 639 residentes da China Interior e 2014 residentes estrangeiros, um crescimento múltiplo em relação ao ano anterior. Já este ano, entre os comerciantes detidos até ao mês de junho, 676 eram residentes estrangeiros, 509 residentes de Macau e 267 residentes do continente.

Mais de 100 milhões de bens apreendidos nos últimos anos

De acordo com os dados disponibilizados pelos Serviços de Alfândega ao PLATAFORMA, apenas a partir de 2020 é que começou a ser classificado formalmente o número de comerciantes detidos. Segundo a informação partilhada, foram contabilizados um total de 651 pessoas envolvidas em comércio paralelo em 2020, número que quadruplicou em 2021 para 3 311 pessoas. Até dia 30 de junho foram detidos 1534 comerciantes, mais do dobro do número registado em 2020.

Com um maior número de casos de contrabando, o valor de bens apreendidos também cresceu. Em 2020 estes bens representaram um total de 82 milhões de patacas. Já em 2021 este total foi de 127 milhões de patacas, ou seja, um crescimento anual de 55 por cento. Todavia, apenas no primeiro semestre deste ano foram apreendidos um total de 122 milhões em produtos, número semelhante ao total do ano passado.

Os serviços alfandegários de Macau explicam que no passado este comércio seguia um modo de operação único, principalmente com álcool, produtos lácteos e outros bens essenciais a serem vendidos. A sua maioria são vendas feitas a dinheiro, onde os bens depois de adquiridos são transportados para vários pontos de recolha no continente onde são revendidos com lucro. Os Serviços de Alfândega de Macau afirmam: “Ao longo dos últimos anos as atividades de comércio paralelo têm aumentado, levando também a um crescimento no número de lojas de contrabando, principalmente com bens de elevado valor, como por exemplo, produtos de beleza, produtos de couro, consolas, videojogos, produtos eletrónicos e produtos secos (como haliote, barbatana de tubarão e ninho de andorinha).” Os Serviços de Alfândega afirmam que irão indiciar quaisquer cidadãos envolvidos nesta atividade segundo a “Lei do Comércio Externo”. Depois da ofensa e julgamento serem confirmados, os bens apreendidos serão devolvidos à RAEM.

Alvo de critica pública

No final do mês de fevereiro foi registado um caso assintomático de Covid-19 em Tanzhou, Zhongshan. De acordo com a investigação epidemiológica, a infetada tinha feito cinco visitas a Zhuhai e Macau em apenas um dia, passando sempre pela mesma loja no Porto de Gongbei. As autoridades decretaram que a pessoa estava envolvida em atividades fora do seu estatuto, e que viajava entre os dois locais múltiplas vezes devido a contrabando. A Polícia de Segurança Pública decidiu proibir a entrada da cidadã em Macau durante o período de um ano, comprometendo-se a implementar ações idênticas sobre casos semelhantes.

Este caso voltou a transformar o comércio paralelo num assunto debatido tanto pelas autoridades como pela comunidade, com vários residentes da China Interior portadores de visto de visita a familiares e trabalhadores do continente que viajam entre Zhuhai e Macau diariamente a tornarem-se “alvo” do combate a esta prática.

De acordo com o Artigo 10º da “Lei de prevenção, controlo e tratamento de doenças transmissíveis”, desde dia 14 de março os Serviços de Saúde de Macau exigem a portadores de vistos de visita a familiares com três ou mais entradas pelas Portas do Cerco ou Posto Fronteiriço de Qingmao um teste de ácido nucleico autofinanciado, com entrada bloqueada até os resultados do mesmo estarem disponíveis. Os cidadãos sinalizados para este controlo adicional serão direcionados a um local de teste específico, onde irão aguardar os resultados para entrada na fronteira, processo que poderá demorar até 12 horas. Caso o indivíduo se recuse a ser testado, poderá ser-lhe negada a entrada.

Existe ainda um grupo de Facebook para cidadãos preocupados com esta atividade criminosa. Criado em março de 2021, o “Grupo de Preocupados com o Comércio Paralelo (Macau)” já acumulou mais de 1000 membros. Partilham ocasionalmente atividades suspeitas de contrabando na rede social, informações que tornam públicas na esperança de que as autoridades façam a sua devida investigação.

Os Serviços de Alfândega de Macau afirmam que têm melhorado os seus mecanismos de partilha de informação com a Polícia de Segurança Pública, assim como a sua cooperação com as autoridades do continente para possuir maior conhecimento sobre as atividades destes comerciantes. Os serviços aduaneiros estão ainda a examinar com maior cuidado os passageiros e veículos que passam pela fronteira. Para além do combate a estes grupos organizados, são organizadas investigações em conjunto com a Polícia de Segurança Pública e outros órgãos oficiais para descobrir os pontos de distribuição de contrabando.

Uso de tecnologia no combate ao comércio paralelo

De acordo com a informação oferecida pelos Serviços de Alfândega ao Plataforma, já foi desenvolvido um “sistema de assistência de filtragem de turistas” aplicável ao controlo de fronteira com o continente, em atividade desde maio. A Alfândega salienta que não existe nenhum “alvo” durante este controlo, o “sistema de assistência de filtragem de turistas” foi criado para auxiliar os oficiais aduaneiros na identificação de cidadãos de risco de forma mais eficiente. “Os oficiais aduaneiros transportam indivíduos considerados “de risco” para uma área de triagem onde os mesmos, assim como as suas respetivas bagagens, são rastreados através de um mecanismo não intrusivo. Equipamentos utilizados incluem sensores de segurança com radiação terahertz, sistemas raio-X ou TAC tanto a bagagens como produtos.”

Sendo Macau uma cidade turística, os seus visitantes irão inevitavelmente fazer compras e gastar dinheiro, por isso é importante saber reconhecer as diferenças entre os hábitos de consumo de residentes locais ou turistas e os do comércio paralelo. Os Serviços de Alfandega esclarecem: “Através da recolha de informação de vários contrabandistas e análise ao tipo de produtos encontrados em lojas de contrabando, deverá ser avaliado se existe alguma ligação entre os bens transportados pelos passageiros e esta atividade. No que diz respeito à imposição da lei nos portos, a Alfândega faz uso de grandes bases de dados e de métodos de previsão de risco automáticos, que possibilitam que indivíduos considerados de “baixo risco” atravessem a fronteira de forma rápida e direcionem os recursos disponíveis para os visitantes de “alto risco”. Este sistema irá possibilitar um controlo fronteiriço mais eficiente sem criar inconveniência aos restantes cidadãos.”

Ron Lam U Tou afirma que o que os Serviços de Alfândega fazem é recolher informação sobre os passageiros. O processo de controlo para cidadãos que atravessam a fronteira regularmente já é cada vez mais difícil, e em conjunto com a possível suspensão da autorização provisória de permanência (conhecida como “cartão azul”) de trabalhadores estrangeiros que tirem proveito deste comércio paralelo, o poder dissuasor do controlo parece ser suficiente.

De acordo com a informação disponibilizada pela Polícia de Segurança Pública, entre janeiro e fevereiro deste ano já tinham sido detidos 8 trabalhadores estrangeiros por atividade de contrabando, cujos cartões azuis foram revogados. Em março foram também identificados 40 cidadãos da China Interior portadores de visto de visita a familiares e 9 trabalhadores não-residentes cuja entrada na fronteira foi negada devido a atividade de contrabando.

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