“O Governo evita cada vez mais assumir responsabilidade”

por Mei Mei Wong
Inês LeiInês Lei

A nova política de transportes a concretizar até 2030 ainda traz problemas antigos e algumas das alterações suscitam preocupações por parte da população. Uma delas são os moldes em que se desenvolverá a cooperação interdepartamental, que tem sido deficiente, pouco clara, sendo fácil fugir à responsabilidade

Desde o lançamento do Planeamento Geral do Trânsito e Transportes Terrestres de Macau (2021-2030), a grande controvérsia parece ser a criação de um teleférico que ligue a Zona A e Zona B dos Novos Aterros. No entanto, vários questionam se isto será outro “projeto milionário”.

A 24 de maio, Lam Hin San, diretor dos Serviços para os Assuntos de Tráfego (DSAT), disse que o teleférico era ainda um plano em “fase elementar de conceção” e, por isso, contava com as sugestões da população. O Chefe do Executivo, Ho Iat Seng, referiu a 6 de junho que normalmente é necessário uma consulta pública para projetos deste tipo, mas que “se algo não vale a pena, não será feito”.

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Ao contrário dos teleféricos em Chongqing – município localizado no sudoeste da China , é difícil tirar proveito da diferença de elevação entre a Zona A e B dos Novos Aterros, afirma o antigo membro do Conselho do Planeamento Urbanístico (CPU), Lam Iek Chit. “O teleférico de Chongqing foi construído entre as duas pontes de um vale fluvial. Até mesmo no caso do Ngong Ping 360, em Hong Kong, serve para tirar vantagem da diferença de altura do terreno. As Zonas A e B, contudo, são de elevação baixa. Seria preciso uma estrutura alta em ambos os pontos para suportar o teleférico, o que não seria prático”, comenta.

Lam Iek Chit acredita que se for construído, terá de atravessar a Ponte de Amizade, visto que se tem de considerar o tempo necessário para a troca de passageiros e para trocar de direção, bem como os transportes utilizados até chegar ao teleférico. Existe ainda o trânsito vertical: “Para apanhar o teleférico do Jardim da Flora, as pessoas só entram depois de comprar bilhete. Talvez seja possível subir ligeiramente a estação até à altura da Ponte de Amizade, mas não é fácil”.

Para o urbanista Manuel Iok Pui Ferreira, é de valorizar a criatividade, mas esta deve ser apoiada por dados concretos, assim como a análise das autoridades competentes. A seu ver, “ainda não se resolveram os principais problemas e objetivos a curto prazo”. Trata-se, por isso, de priorizar ou não outras questões mais práticas

Manuel Iok Pui Ferreira, urbanista

COOPERAÇÃO INTERDEPARTAMENTAL

Olhando de novo para a “Política de Transportes 2010-2020” publicada há 10 anos atrás, a última página do documento aponta a Direção dos Serviços para os Assuntos de Tráfego como responsável, incluindo ainda a Direção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes, a Direção dos Serviços da Proteção Ambiental, o Gabinete para as Infraestruturas de Transportes (abolido em 2019), o Gabinete para o Desenvolvimento de Infraestruturas (fundido com o Departamento de Obras Públicas e Departamento de Infraestruturas para criar a Direção dos Serviços de Obras Públicas a abril de 2022), a Capitania dos Portos e a Autoridade de Aviação Civil como “Grupo de Trabalho para o Estudo de Trânsito e Transportes de Macau”.

Em contraste, o Planeamento de Transportes 2021-2030 apenas contém o termo “Coordenação interdepartamental” no capítulo 4, em “Fiscalização e revisão”: “com um “grupo de trabalho interdepartamental” (…) promover-se-á, em conjunto, a concretização, a fiscalização e a revisão do planeamento.”

A revisão publicada da Política de Transportes 2010-2020 revela ainda que a maioria das sessões políticas da altura contaram com a presença de representantes interdepartamentais, contudo, nesta sessão de consulta pública apenas esteve presente a DSAT.

O urbanista destaca a cooperação interdepartamental como o principal problema de Macau, acabando por perder várias oportunidades no que toca ao desenvolvimento de grandes infraestruturas devido à falta de comunicação entre departamentos. O mesmo dá o exemplo da Linha Seac Pai Van do Metro Ligeiro: “O custo elevado da Linha Seac Pai Van não foi feito a pensar nos utentes. As estações cobrem apenas metade de Seac Pai Van e não têm ligação à praça central ou ao Edifício Lok Kuan”, aponta, questionando também se não se deveria envolver o Instituto de Habitação durante o processo de construção para “garantir que se reserva espaço para a ligação pedestre entre as plataformas”.

Ieong Meng U, professor assistente no Departamento de Governação e Administração Pública da Universidade de Macau, afirma que esta cooperação interdepartamental requer que sejam estabelecidos mecanismos de comunicação entre departamentos, ou seja, é necessária uma reforma da administração pública, com duas principais forças impulsionadoras: menos fundos e responsabilização. O docente acredita que um corte nos fundos resultará numa melhor organização das partes envolventes e maior pressão sobre essas entidades em produzir resultados.

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Por essa razão calcula que a cooperação interdepartamental é a principal razão para o fracasso das consultas públicas. “Não existem consequências para os maus resultados”, lamenta, referindo outra situação que lhe causa grande preocupação: “O Governo evita cada vez mais assumir responsabilidade e se não se fizer nada, não haverá nenhuma consequência. Em casos como este, mesmo sem mencionar reforma da administração pública, dificilmente haverá resposta a tarefas fora da rotina, mesmo que sejam da responsabilidade destes departamentos”.

Ieong Meng U, professor assistente no Departamento de Governação e Administração Pública da Universidade de Macau

ESPETRO DA CONSULTA PÚBLICA FOI REDUZIDO

Quando a política de transportes 2010- 2020 foi publicada, o então diretor da DSAT, Wong Wan, liderou vários departamentos em cinco apresentações públicas espalhadas pela cidade, na sua maioria durante o fim de semana. Já no de 2021-2030, todas as sessões públicas têm lugar no edifício da DSAT, na Fortaleza de Dona Maria II, com duas das sessões às 19 horas de uma quinta-feira. Até ao momento, o atual diretor, Lam Hin San, não esteve presente.

O PLATAFORMA esteve presente numa das sessões e questionou o processo. Um representante da DSAT respondeu que a direção valoriza todas as opiniões: “Na verdade, desta vez contamos com diferentes canais. Além da comunicação presencial, na qual participamos várias vezes, temos ainda outros métodos, como canais online e correio eletrónico. Esperamos que a opinião de toda a população seja ouvida e queremos ouvir as vossas sugestões”.

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Na primeira metade da política de transportes 2010-2020, o Governo promoveu a participação do público. A criação do Conselho Consultivo do Trânsito, em 2011, e o lançamento da iniciativa “Amigos do Autocarro” pela DSAT, em 2012, procurava desenvolver uma plataforma de comunicação entre Governo, indústria e utentes. Porém, em 2019, a DSAT anunciou com “imensa pena” a dissolução do programa “Amigos do Autocarro”, devido à redução no número de participantes.

A página Entusiastas de Autocarros e Transportes Públicos de Macau, preocupada com o contexto atual, tem salientado que o problema reside no facto de a direção não procurar saber a vontade da população durante a consulta pública. Relativamente ao comunicado de imprensa do Conselho Consultivo do Trânsito, relativamente aos ajustes nas carreiras dos autocarros e propostas para os transportes, a DSAT apenas informou o Conselho Consultivo do Trânsito depois de tomar as decisões. “Não é uma consulta pública, é um comunicado”, referem os membros da organização, que admitem não ter grande esperança neste novo plano, já que não vêem uma direção clara, o conteúdo no documento é na sua maioria conceptual e, acima de tudo, não dá oportunidades a uma comunicação recíproca. Os entusiastas dão o exemplo de uma rota de autocarros: “Apenas duas companhias de autocarros discutiram e coordenaram a medida com o Governo ao longo dos anos, mas a proposta foi implementada um dia depois de ser formalmente apresentada”, portanto, “nunca existiu espaço para o público partilhar a sua opinião, apoio ou oposição. É uma operação fechada”.

NOVAS ROTAS SÓ PARA NOVAS ÁREAS

Na compilação de opiniões da política de trânsito 2010-2020 foram incluídas opiniões de residentes que salientavam não existir paragem de autocarro em frente à Habitação Social do Fai Chi Kei, muito pouco conveniente para os idosos que querem ir ao Centro Hospitalar Conde de São Januário. De momento existem paragens adicionais no Edifício Fai Fu, assim como uma rota H2 que faz a ligação direta ao Centro Hospitalar Conde de São Januário, mas a frequência do serviço é de 25 a 30 minutos, além de não funcionar durante o fim-de-semana ou feriados.

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De acordo com os Entusiastas de Autocarros, ao longo dos anos as rotas têm vindo a ser constantemente alteradas, e o número de carreiras a ser redirecionadas (como as rotas 19 e H3), em vez de se fazer ajustes às ruas para que os autocarros possam passar. “As únicas rotas que foram adicionadas ao longo dos últimos 10 anos foram a do 101X e 102X, da Grande Baía, a 51,52,55,56 e 59 em Seac Pai Van, mais as rotas principais 3AX e 5AX, que entretanto foram suspensas depois das cheias no terminal com o tufão Hato. Todas as novas rotas foram criadas devido ao desenvolvimento de novas zonas urbanas ou fatores metereológicos”. Os membros criticam que as rotas antigas tenham permanecido inalterados ao longo da última década, com apenas algumas reparações e alterações, como o aumento da dimensão dos veículos, ignorando as rotas sobrepostas que existem, assim como a definição ilógica das paragens. “Por exemplo, na proximidade do Posto Fronteiriço de Qingmao, a atual estação Qingmao/Subestação Canal dos Patos do 8A está a 300 metros de distância do posto, com uma zona de 200 metros para embarque de passageiros, então por que razão é que existe uma paragem fora desta zona?” Também questionam se há forma de justificar a existência de uma estação debaixo da passagem superior para peões do Posto Fronteiriço Qingmao e outra em frente ao Edifício do Bairro da Ilha Verde, nem a 200 metros de distância.

Os Entusiastas afirmam que o planeamento destas paragens de autocarro é caótica. Nos últimos anos têm sido criados terminais de autocarros em zonas de habitação social ou perto de agências governamentais, como o Edifício do Lago, Chun Su Mei, The Riviera e Povoação de Mong-Há. No futuro serão ainda criadas várias na Central Termoelétrica, na Zona A de Novos Aterros Urbanos e na Rotunda da Concórdia. “Contudo esta distribuição de paragens de autocarros não faz sentido. Ou estão muito distantes, ou estão umas quantas numa só rua (como é o caso da Central Termoelétrica, do Pearl Horizon e do Terminal Mong Há), criando uma situação em que vários terminais possuem rotas sem passageiros, construídas só por construir.”

VIAGENS VERDES

A política do trânsito 2010-2020 mencionava ser preciso “incentivar com meios tecnológicos a utilização de veículos amigos do ambiente. Determinar os padrões de emissões de gases; acelerar a introdução de construções complementares e medidas para os veículos amigos do ambiente; estudar as soluções de incentivo e subsídios para substituição por veículos amigos do ambiente, estimulando a poupança de energia e redução das emissões de gases.”

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Atualmente, e ao longo da última década, a popularidade dos veículos elétricos tem vindo a crescer, mas ainda falta muito para concretizar os objetivos estabelecido a médio prazo na política de 2010-2020. Manuel Ferreira questiona se essas devem sequer continuar em funcionamento para a promoção de veículos elétricos. “Embora cada vez mais pessoas comprem veículos elétricos, os edifícios mais antigos não têm instalações para os mesmos. Quando um proprietário quiser instalar o suporte necessário para esses veículos, terá de passar por um longo e complicado processo, incluindo direito de propriedade e código civil, bem como uma reunião com os proprietários do edifício.” O urbanista enaltece que é necessário atualizar o quadro legal para promover a indústria e transportes verdes. Volta-se assim ao problema da coordenação interdepartamental: “Porque é que as bombas de gasolina não instalam pontos de carregamento [para veículos elétricos]? Por motivos de segurança devido à presença de combustíveis fósseis? Estas questões ainda não foram devidamente explicadas à população.”

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