“O legado que deixa é algo que eu e muitos outros artistas temos o dever de valorizar e conservar”

por Gonçalo Lopes
Catarina Brites Soares

Se lhe for feita justiça, Frank Lei ficará na história de Macau, diz quem o conheceu a si e ao seu trabalho. Além de ser um dos poucos com uma carreira consistente de dedicação à arte na cidade, é-lhe reconhecida a singularidade por ter aberto caminho a outros artistas: pela sua visão, pela docência – foi professor da Escola Superior de Artes do então Instituto Politécnico de Macau; e por ter fundado espaços como a Comuna da Pedra, a ‘Old Ladies House Art Space’ e o Armazém do Boi. O fotógrafo morreu de doença prolongada. Tinha 59 anos, muitos dedicados à Cultura

“Frank era um artista desde logo porque não parava de criar”, diz Alice Kuok, presidente da AFA – Art for All Society. “Além da fotografia e da escrita, desde 2004 que desenhava de forma consistente. Deixou muito trabalho que, estou certa, um dia será exposto.”

Bianca Lei afirma que o também jornalista era um artista comprometido e sério. “Era um apaixonado pela Arte e dedicou-se inteiramente a ela. Nunca pôs em causa a carreira artística por nenhum motivo externo, e nunca desistiu das ideias e conceitos que tinha.”

“A sua perceção e interpretação é o que faz dele um artista único em Macau”, acrescenta Jenny Mok, à frente da associação de teatro e dança Comuna da Pedra.

Foi em Pequim que o artista nasceu, em dezembro de 1962. Dez anos depois, instalou-se em Macau, onde se afirmou.

Formou-se primeiro em Jornalismo, nos anos 80, pela Universidade de Jinan, na China; depois em Cinema e Audiovisual na Sorbonne, e em Fotografia, na Escola Nacional Superior de Artes Decorativas (ENSAD), em Paris. Após oito anos em França, volta à região em 1994, onde começa a dar aulas e fez um mestrado em Literatura Chinesa.

A poesia que levava dentro

Amiga, além de parceira de projetos como o Armazém do Boi, Bianca Lei diz que a fotografia do artista espelha a sensibilidade poética que o caracterizava. “O olhar delicado que tinha é visível na forma como retrata pessoas e contextos. “Através da câmara fotográfica conseguia compor uma imagem contemplativa com o tempo, espaço e luz perfeitos. As suas fotos transportam–nos para um estado de tranquilidade”, sublinha.

“As suas fotografias são a realidade filtrada por esse olhar gentil e poético que tinha”, reitera Alice Kuok. “Mas acho que gosto ainda mais dos desenhos que fazia, tão livres de constrangimentos, reveladores do homem de intenções puras e honestas que era”, fundamenta. “Os seus desenhos eram cheios e simples. É evidente que não procurava de forma deliberada o que se designa de composição perfeita ou agradável. É fácil perceber qual eram os verdadeiros pensamentos e estado de espírito que o atravessam no
momento em que desenhou”, enfatiza Bianca Lei.

Jenny Mok insiste que Frank Lei era um fotógrafo de uma sensibilidade particular, e elogia a forma genuína como retratava os temas que trabalhava.

Já Kuok sublinha que se Lei usava a fotografia para entender o mundo, o desenho servia para se perceber a ele. “A fotografia era um reflexo da visão delicada e sonhadora que tinha da realidade, era poesia. Os desenhos eram a via para explorar o mundo interior e sentimentos.

Pode dizer-se que era bastante experimental, sobretudo no que ao desenho diz respeito.”

Abri caminho

Além das qualidades que lhe encontram como artista, Jenny Mok, Bianca Lei e Alice Kuok sublinham que foi relevante para Macau por mais motivos. “Foi um pioneiro. Criou vários espaços artísticos na cidade e a noção de grupo, a consciência de como os artistas podem juntar-se e trabalhar juntos. Não era um ‘organizador’ per se, mas a energia
benevolente e altruísta que tinha foram fundamentais para que surgisse esse sentimento de coletividade e sentido de pertença”, detalha Kuok.

A Comuna da Pedra, em 1996, a ’Old Ladies House Art Space’, em 2001, e o Armazém do Boi, em 2003, realça, foram um impulso para que outros espaços artísticos começassem a aparecer. “Hoje, Macau está cheio de associações artísticas que foram, de certo modo, uma consequência das iniciativas que teve e dos espaços que fundou”, reforça.

Mok não chegou a conviver muito com Frank Lei, mas sim com a irmã que assumiu as rédeas do grupo de teatro na segunda geração. “Contudo, estou-lhe muito agradecida pelas bases que deixou e por ter fundado este espaço. O que fez foi crucial e determinante para o desenvolvimento de jovens artistas”, garante. “Se não tivesse criado a Comuna da Pedra, não estaria em contacto com a arte como estou e definitivamente não estaria a fazer o que faço.”

O mentor

Além das entidades que impulsionou, Bianca Lei acrescenta que Frank Lei introduziu em Macau conceitos e ideias originais sobre arte contemporânea, e que foi uma figura crucial que iniciou uma nova era no âmbito da arte experimental em Macau.“Foi um mentor. Alimentou muito as gerações que lhe sucederam, guiando e encorajando novos artistas a arriscarem”, frisa a professora do Centro de Estudos das Culturas Sino-Ocidentais da Universidade Politécnica.

Alice Kuok é um desses casos. “Foi meu professor de fotografia quando comecei. Ao longo dos anos, aprendi muito com ele não somente sobre fotografia mas também pela forma como encarava a arte e como a aplicava na sociedade.”

Frank Lei conta com várias exposições colectivas e individuais. As mostras “City Sight” no Museu de Arte de Macau, em 2006, e “Sleeping City: Macau”, na galeria AGFA, no Fringe Club de Hong Kong, em 1998, são algumas das que merecem destaque.

Lá fora deu cartas ainda em França, Cuba e Portugal. Sobre a “Porto, City from eyes”, apresentada ao público na Creative Macau, em 2009, escrevia: “Se as fotos captadas na rotina do dia-a-dia são criações artísticas, então estas criações são uma espécie de busca pela paz interior, pelos valores, uma busca pelo impulso, e pelo potencial em tocar o
coração.”

O artista também fotografou a Cuba de Fidel Castro, em 1992; e venceu o prémio do “Concurso Internacional de Fotografia de Rua”, em 1991, organizado pelo Museu Europeu da Fotografia, em França.

Também publicou “Seeing While Walking”, em 2005, uma monografia com cerca de 100 páginas que reúne trabalhos do fotógrafo entre 1994 e 2004.

É no entanto a generosidade e determinação do artista que mais marcaram Alice Kuok. “A forma de ser e a sua vida foram uma inspiração. O legado que deixa é algo que eu e muitos outros artistas temos o dever de valorizar e conservar.

Estou profundamente agradecida por tê–lo na minha vida.”

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