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Anões e touradas

João MeloJoão Melo*

Apesar das críticas do ministro da Cultura que considerou o evento “atentatório da dignidade humana”, realizou-se há uma semana na Benedita o espectáculo “tourada cómica de variedades taurinas” que inclui a participação de um grupo espanhol de anões toureiros

Ponto prévio: detesto touradas, por mim isso já não existia, mas calma lá, li bem? Anões toureiros? Teve graça. Continuando. Segundo a notícia, esta “tourada cómica” é um espectáculo onde “se lidam bezerros de dois e três anos sem qualquer uso de ferros” e onde Jimmy Muñoz, um dos anões toureiros garante que “as pessoas não se riem de nós como se fosse uma humilhação mas sim pela paródia e pelo número que fazemos para diverti-las”. 

Na adolescência passei tempo na paródia a divertir os meus colegas, várias vezes fui expulso das aulas de matemática, faltou-me talvez apreender alguma matéria e por isso me custe atingir certos problemas; porém assim à primeira vista a soma de bovinos com anões parece-me uma daquelas equações em que menos com menos dá mais. Vejamos: sim, o espectáculo deve ser um arremedo medieval mas por mais que se escondam da nossa vista os anões existem, também têm que ganhar o sustento, estes gostam de touradas e divertem-se no processo. “Não, não vou fazer nada, só queria dizer que acho esse espectáculo degradante”. O sr ministro tem algum programa para reeducar anões toureiros ou o povo inculto que comprou o espectáculo? Tem alguma ferramenta legal para impedir o “atentado à dignidade humana”? Não? Então é só um ego pedante a botar faladura, que acha que os anões deviam ser “normais” e estes são freaks explorados em circos itinerantes; melhor faria em manter o ofício de comentador congelado até largar o ministério, deixando estes artistas ganhar a vida deles em paz, afinal nem numa produção da Branca de Neve conseguiriam trabalho porque essa produção simplesmente não existe, hoje em dia só a ideia seria arrasada pela polícia dos novos costumes. Em vez de embirrar com a utilização de seres inscientes (os bezerros) que não pediram para participar, vai embirrar com os anões? Pois eu acho que embirra com eles por serem espanhóis, terem gostos foleiros, serem orgulhosos do que são; pode ser também um preconceito meu mas não estou a ver anões portugueses a fazer isto, e se houvesse não estou a ver que ele tivesse a afoiteza de denunciar o espectáculo nos mesmos termos. Entre a felicitação a um coreógrafo de nomeada e o pesar pela morte da Paula Rego o sr ministro almejaria não ter de incluir na sua esfera de competências gente e gostos que considera grotescos mas a natureza do ministério não necessariamente o salvaguarda de sujar as mãos, no fim de contas Portugal ainda é um imenso “pimbalhal”. Tal como outros que o antecederam constato que este ministro da Cultura corporiza aquele estereótipo do engenheiro mecânico português que trabalha de fato e gravata com as mãos arranjadas em manicures enquanto os colegas alemães e ingleses andam de fato-macaco e enfiam as mãos no óleo.  

Na verdade eu não assistiria a este espectáculo, não acho graça à condição de nanismo como não acho graça a outras condições que as pessoas não escolhem ou controlam; para mim a piada esgota-se na ideia de misturar anões com bezerros (ahahah, pronto), no som e imagem dos títulos, e só teria sentido avançar se fosse desenhada pelo Seth McFarlane ou encenada pelos Monty Python. Ponho as mãos no óleo, perdão, no fogo, em como nessa situação qualquer ministro da Cultura diria que anões toureiros era genial, e acima de tudo é com isto que embirro, não com o ministro fulano A ou B: embirro com a mentalidade de que os mesmos disparates possam ser aplaudidos ou apupados, consoante o politicamente correcto, a aprovação ou reprovação da intelligentsia cultural. Este modo de pensar é perigoso, no caso do humor torna-se no seu principal inimigo, gosta de limitezinhos, os dele, e acha que a sua razão nem se discute de tão óbvia. Já o Herman era uma figura consagrada quando no período cavaquista lhe censuraram um sketch que não era mais que um disparate sem importância nenhuma. Não interessa a cor política, desde sempre alguém se ofendeu com algo e imagino o batalhão de advogados que actualmente as produções de humor recrutarão para prevenir o ferimento de sensibilidades e consequentes processos judiciais. Chegámos àquele ponto, diria de terror para o pensamento livre e o livre arbítrio, em que não é necessária muita censura, os próprios tratam disso. Por gosto ou necessidade, não me interessa, o Jimmy Muñoz e os seus companheiros estão conscientes do que representam e têm a coragem de viver à conta de uma condição que não controlam numa época que lhes é manifestamente hostil, o mais provável é receberem até a reprovação da maioria das pessoas que possuem igual condição, e só por isso “vivam os anões toureiros”, um espectáculo que espero nunca verg. 

Anões com touradas é um cocktail que nunca experimentei, mas os ingredientes separados já. Um dia tive a possibilidade de produzir um espectáculo para a minha banda no pátio principal do CCB com recursos extraordinários. Foi um evento único, um sucesso de charneira que juntou milhares de pessoas e talvez qualquer dia me alongue sobre ele. Uma das ideias para coreografar um tema envolvia um anão a entrar em palco através de uma rampa ao volante de um BMW Isetta, um microcarro dos anos 50 conhecido como o “ovo”. Vamos ser honestos, não contratei o anão porque precisava de um Brad Pitt, digamos que a razão tinha a ver com a sua estatura física. Acabaria por não se concretizar porque na semana anterior ele ligou-me a dizer que aguardava há meses uma oportunidade que surgiu de repente: na véspera do espectáculo seria operado… às varizes. Segui com o plano B até porque o “ovo” estava complicado de conseguir. 

Quanto às touradas mantenho a minha incompreensão de se obter divertimento e adrenalina recorrendo à bestialidade não obstante ter feito espectáculos integrados em festas que as incluíam. Uma grande parte dessas festas aconteceram nos Açores e um dia um promotor que também não apreciava o género tentava explicar-me o fascínio que os eventos taurinos provocam na população. Contou-me que um indivíduo abastado chegou a pagar (julgo que uns mil euros, não recordo a quantia exacta) à comissão de festas local para que a manada de touros em direcção à praça tivesse obrigatoriamente que ser levada a atravessar o piso térreo da sua moradia. Ao passar por ali previsivelmente a turba descontrolada partiu tudo o que encontrou pela frente, sofás, mesas, móveis, cristaleira, televisão, adicionando ao pagamento à comissão de festas um prejuízo material elevado. Instado a explicar o porquê de tal capricho sabendo-se as consequências o indivíduo respondeu com um singelo “consolei-me”…

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