Novo e Velho: dificuldades na ascensão de carreira dos trabalhadores de saúde em Macau

por Gonçalo Lopes
Inês Lei e Meimei WongInês Lei e Meimei Wong

“Hospital Kiang Wu ganancioso, Centro Hospitalar Conde de São Januário perigoso”, foi uma frase que no passado marcou a forma como os residentes de Macau viam a qualidade incerta dos serviços de saúde locais. Embora ao longo dos últimos anos estes serviços tenham melhorado, graças a financiamento do Governo, a confiança da população na saúde não pode ser comprada. Mesmo com a implementação de regulamentações administrativas da formação médica este ano, assim como a criação da Academia Médica de Macau em 2019, na área de especialização parece não ter havido grande evolução. Com a transição do sistema antigo para o novo, além dos profissionais de saúde privada com dificuldade em iniciar o seu período de treino especializado, vários trabalhadores na indústria da saúde receiam que os profissionais recém-formados tenham de passar por um longo período de estudo antes de poderem exercer, confessa o presidente da Associação Geral do Sector da Medicina

Outrora, no início de carreira, Macau não possuía qualquer sistema de avaliação e acreditação profissional médica antes do início de carreira para garantir a qualidade dos profissionais e dos seus serviços. Em janeiro de 2022, a Regulamentação do procedimento de especialização médica e formação em enfermagem entrou em vigor e a Academia Médica de Macau, estabelecida em julho de 2019, oferece agora formação e avaliação destes profissionais médicos.

A Academia Médica de Hong Kong foi criada em 1991, tendo sido depois aprovado o Decreto da Academia Médica de Hong Kong (Cap. 419) em 1992 pelo Conselho Legislativo. Em comparação com estes vizinhos, a padronização do sistema de formação médica especializada em Macau começou com um atraso de 30 anos.

Em janeiro deste ano alguns médicos do setor privado afirmaram ao PLATAFORMA que antes da criação deste sistema a formação médica em Macau não era uniforme. Mesmo agora, muitos dos profissionais do setor privado a receberem formação lá fora não possuem qualificações suficientes para se candidatarem ao programa de formação médica especializada, reduzindo a sua oportunidade de ascensão profissional.

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Analisando o regulamento administrativo complementar da Regulamentação do procedimento de especialização médica e formação em enfermagem, sabemos que o processo de aceitação no sistema de formação é da responsabilidade da Academia Médica de Macau. A Academia respondeu em abril que a entrada na formação especializada segundo o novo sistema irá ser determinada por uma avaliação de competência médica compreensiva e aceitação na residência médica. Candidatos que tenham passado a avaliação de competências integradas médicas terão depois de completar uma formação de residência médica numa instituição ou estabelecimento de saúde reconhecido pela Academia.

Contudo, muitos profissionais de saúde em instituições privadas formaram-se fora de Macau e fizeram o seu período de residência na mesma instituição. Nestes casos, a Academia indica que: “de acordo com o Artigo 7º do Regulamento Administrativo n.º 45/2021, podem ser concedidas equivalências de formações frequentadas na RAEM ou no exterior, desde que correspondam às exigências de formação de natureza idêntica, mediante reconhecimento da Academia Médica ou da Comissão de Especialidades de Enfermagem. Os candidatos terão de apresentar a sua candidatura à Academia Médica e passar pelos devidos processos de avaliação e verificação”.

No que diz respeito à formação em clínica geral, segundo o Artigo 9º do Regulamento Administrativo n.º 10/2021, é da responsabilidade das Comissões de Avaliação (na área de medicina, Comissão de Avaliação Médica) deliberar sobre o reconhecimento da equivalência, total ou parcial, do estágio obtido no exterior da Região Administrativa Especial de Macau.

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Em entrevista ao PLATAFORMA, Chan Iek Lap, presidente da Associação Geral do Sector da Medicina e deputado da Assembleia Legislativa, partilhou que o novo sistema garante que o nível de qualificação dos profissionais de saúde é verificado, serve como proteção para o público, sociedade em geral, e restantes profissionais médicos, e prova a capacidade dos mesmos.

O dilema dos profissionais do setor privado

O novo sistema veio preencher uma falha no setor médico. Contudo, este parece ser um maior obstáculo para o setor privado em comparação com o antigo processo.

A Academia Médica afirma que a entrada no novo sistema de formação médica depende de um comprovativo de habilitação académica frequentada a tempo inteiro e de cédula de acreditação mediante a realização de um estágio ou formação equivalente devidamente reconhecida nos termos da Lei n.º 18/2020.

Segundo Chan Iek Lap, o primeiro passo para o processo de especialização é a entrada para uma instituição médica e agora finalmente existe uma entidade como a Academia Médica que possibilita que tanto profissionais do setor privado como público se candidatem a formação especializada.

“No entanto, sinceramente, se for de facto organizado um processo de avaliação, 10 por cento dos profissionais do setor privado não serão aprovados. Isto deve-se ao facto de os profissionais do setor privado não estarem ativos na prática de medicina especializada, especialmente recém-formados e profissionais de clínica geral por mais de 10 anos, já pouco familiarizados com as especialidades, mesmo com estudo será difícil de acompanharem as atuais teorias, entrevistas e exames”. Por isso salienta que apesar dos profissionais do setor privado procurarem avançar na carreira, “poderão ter de abandonar atividade e dedicar-se ao estudo durante seis anos”.

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Já para profissionais de clínica geral em instituições privadas, caso queiram seguir a formação especializada, precisarão de se inscrever num programa MT por um ano (formação de residência médica), que servirá como bilhete de entrada na especialização.

Nunca trabalhámos num hospital depois da universidade, quanto mais iniciar a formação especializada

Dr. Cheong Chi Hong, médico no setor privado

O Dr. Cheong Chi Hong trabalha numa clínica e possui uma perspetiva diferente em relação a este sistema. “Nunca trabalhámos num hospital depois da universidade, quanto mais iniciar a formação especializada”.

O mesmo acredita que segundo o novo sistema as gerações mais antigas de profissionais, já a exercerem há vários anos, possuem mais barreiras para entrar neste programa de formação especializada, muitos têm de tomar conta das suas famílias e continuar a manter um rendimento estável devido às despesas do agregado.

“Agora é praticamente impossível, temos de passar primeiro por um programa MT (formação de residência médica), de livre acesso a todos, claro, mas para tal temos de abdicar da nossa ocupação, passar um ano no Centro Hospitalar Conde de São Januário e depois receber uma qualificação equivalente”.

O Dr. Cheong sugere que sejam oferecidos diferentes requisitos à candidatura de profissionais de clínica geral segundo o sistema antigo, em vez desta restrição geral que obriga a completar o processo de residência médica.

Desfasamento temporal cria escassez de profissionais especializados

É preciso passar por um longo processo para ser médico e são depois precisos no mínimo 12 anos para concluir uma especialidade. De acordo com dados da Direção dos Serviços de Estatística e Censos, as instituições médicas de especialidade registaram 1,96 milhões de doentes em 2021, mais 12,6 por cento do que em 2020. Nesse mesmo ano os hospitais de Macau contaram com 536 médicos de especialidade.

Segundo o “Relatório de Estudo de planeamento do desenvolvimento e procura de recursos humanos na área de saúde de Macau”, solicitado pelos Serviços de Saúde e realizado pela Escola de Saúde Pública e Assistência Básica da Universidade Chinesa de Hong Kong em 2019, 61 por cento dos médicos em Macau estão entre os 35 e 54 anos de idade. “Ao longo dos próximos 15 anos, o número de reformados entre estes profissionais deixará um impacto claro na saúde de Macau”. Ou seja, haverá uma escassez de profissionais de saúde.

Com a construção do Complexo de Cuidados de Saúde das Ilhas, a procura por estes profissionais irá continuar a crescer. Em fevereiro deste ano, os Serviços de Saúde estimaram que o Complexo de Cuidados de Saúde das Ilhas seja completado entre outubro e novembro deste ano e inicie atividade no quarto trimestre de 2023. Depois da sua abertura, o número de camas em hospitais públicos será aproximadamente o dobro do atual.

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Chan Iek Lap afirma que o primeiro grupo de cerca de 700 profissionais a formarem-se em junho e julho deste ano, incluindo medicina tradicional chinesa, medicina ocidental, dentistas, terapeutas, farmacêuticos e nutricionistas, terão de passar por um processo de avaliação profissional. A indústria médica está por isso receosa com o longo processo de estágio e avaliação que estes profissionais precisam de completar.

“Estimo que só depois do Ano Novo Chinês é que serão anunciados os resultados da avaliação. Só depois os profissionais com um resultado positivo começarão a preparar-se para o período de estágio. As autoridades reguladoras afirmam que estes estagiários serão colocados primeiro em hospitais privados e depois em hospitais públicos. Temo que todo este processo esteja longe de estar terminado em abril ou maio do próximo ano, o que significa que as suas cédulas de acreditação só serão emitidas a abril de 2024, quando o período de estágio for completado. Depois teremos de esperar pela autorização da agência oficial de aprovação de licenças, que poderá demorar até ao fim de junho de 2024, na melhor das hipóteses”. O médico salienta por isso que estudantes de medicina a formarem-se em junho de 2022 não irão possuir licença de atividade ou poder exercer até ao fim de junho de 2024.

Se existem profissionais em Macau que valorizam este rigor e jovens motivados para seguir o processo de formação especializada, qual a probabilidade de profissionais com formação fora, ou um profissional do setor privado com bases médicas, mas pouco familiarizado com certas áreas, serem aceites no processo de formação e especialização?

Chan Iek Lap, deputado da Assembleia Legislativa

Por sua vez, o deputado Leong Sun Iok levanta também algumas questões em relação ao período de estágio e avaliação das 15 diferentes especialidades destes profissionais. Leong Pui San, secretária-geral do Conselho para os Assuntos Médicos, afirma que a avaliação destes profissionais médicos tem organização prevista para outubro ou novembro deste ano.

Valorizar os atuais profissionais de saúde locais

“Do ponto de vista dos médicos, se existem profissionais em Macau que valorizam este rigor e jovens motivados para seguirem o processo de formação especializada, qual a probabilidade de profissionais com formação fora, ou um profissional do setor privado com bases médicas, mas pouco familiarizado com certas áreas, serem aceites no processo de formação e especialização?”, questiona.

Chan Iek Lap acrescenta que “muitas vezes os médicos nem aprendem tudo nos seus 6 anos de formação especializada, após estes seis anos é que poderemos ultrapassar o requisito de especialidade e continuar então a ganhar experiência clínica e a interiorizar o conteúdo aprendido durante as aulas teóricas”.

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O deputado acredita ainda que profissionais com qualificações equivalentes, sobretudo especializados, devem ser avaliados com alguma descrição. “Concordo que devemos garantir a qualidade da avaliação dos nossos profissionais de saúde, com evolução constante, contudo, para profissionais com experiência de atividade e de avaliações semelhantes, já especializados, dispostos a voltar a Macau, devem ser adotadas novas normas o mais rápido possível que ajudem a absorver estes talentos, em vez de empurrá-los para fora”.

Por outro lado, o membro da Assembleia Legislativa afirma que as autoridades devem também ser mais flexíveis na sua avaliação destes profissionais qualificados. “Na eventualidade de discrepâncias em manuais, horas de formação ou disciplinas, será possível reconhecer a equivalência destes profissionais e compensar estas diferenças posteriormente? Em vez de negarmos a estes talentos a sua oportunidade de se candidatarem a avaliação profissional por estas discrepâncias ou falta de horas de estudo”.

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