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A nova Idade do Ferro

João MeloJoão Melo*

Quando surgiu a banda que me tornou mais ou menos conhecido colaram-me o rótulo de “irreverente”.

Há 25 anos em entrevista ao Diário de Notícias o tema veio à baila e mereceu um dos destaques gráficos: “se vivesse numa sociedade menos estúpida eu não era irreverente”. Como nunca me achei tal coisa pretendi esclarecer o meu ponto de vista enquadrando-o no conceito que geralmente se tem de irreverência.

No programa “Comedians in cars getting coffee” produzido de 2012 a 2019, o apresentador Jerry Seinfeld e um convidado humorista andam de carro, param e tomam café entre conversas informais parvas ou profundas. Pese o facto de eu não ser humorista, foi a assistir ao show que descobri pertencer organicamente a este clã, mais do que qualquer outro. Há comediantes actores, apresentadores, escritores, pintores, músicos, só comediantes, com mais ou menos graça, cada um tem a sua perspectiva e um foco diferente na vida, contudo o pensamento crítico é comum a todos. Num episódio de 2015 Bill Maher dizia que o humor agora “é só piadas sobre pilas, bobós e palavrões”, a que Seinfeld respondeu “nem sequer acho porco, acho displicente”. Não caracterizaria melhor o que penso sobre o assunto: é a falta de brio no aperfeiçoamento individual, juntamente com a abundância de meios disponíveis para alardear a displicência que levou à presente javardice colectiva.

O genuíno espírito humorista não é xenófobo, sexista, racista, ou outro “ismo” negativo, só que hoje em dia as convicções estão demasiado arreigadas e a razão distante, logo facilmente se ferem sensibilidades; uma mera palavra pode indignar alguém, às vezes nem se percebendo porquê mesmo após aclarado o motivo. Burrice pura e simples é do que normalmente se trata mas vá-se lá explicar isso a um indignado ciente dos seus direitos? A liberdade de proferir barbaridades, a censura de publicações e comentários assim como a ideologia do politicamente correcto têm vindo a aniquilar a capacidade de pensar e produzir conteúdo crítico, o mundo está uma confusão.

Elon Musk anunciou a intenção de comprar o Twitter pretendendo suavizar a moderação de conteúdos, a União Europeia quer apertá-la e avisou que a empresa pode ter problemas na Europa. Estamos numa encruzilhada em que não sei o que será melhor porque se por princípio a censura é abjecta, também é abjecto o número de energúmenos que vomita lixo tóxico. Um popular utilizador do Twitter que se auto-intitula “Deus” viu em 2019 uma publicação sua pró LGBTQ banida por incitação ao ódio de género após ter escrito “se os gays são um erro, são um erro que cometi centenas de milhões de vezes, o que prova que sou incompetente e não devo ser invocado para nada”.

Chris Rock dizia no programa de Seinfeld que os humoristas “não só argumentam sobre tudo como podem estar nos dois lados”. Infelizmente desde 2015 para cá o humor tornou-se um drama, a coisa piorou bastante, é difícil argumentar sobre o que quer que seja e muito menos estar em dois lados; explicar a subtileza de um pensamento a um moderador ou a um algoritmo é tarefa hercúlea, explicar isso a massas cristalizadas que necessitam de uma definição sobre o lado em que se está é impossível. Pela minha parte contribuo para este debate vivendo longe das redes sociais. Detesto ser censurado e detesto sequer ter conhecimento da sujidade alheia. Ainda assim, a grosseria está em todo o lado, vem ter connosco mesmo que não queiramos, tropeçamos nela a cada notícia, a cada esquina do quotidiano.

Há um indivíduo que vejo frequentemente nos cafés a vociferar palavrões sozinho para o smartphone. Fica a assistir no Youtube a vários conteúdos, de reality shows a futebol, oscilando entre o espanto e a raiva; todas as emoções são exacerbadas e veemente disparadas para o ar. Se está entediado faz uma chamada mostrando interesse no interlocutor para logo falar de si aos berros. Perguntei se é maluco, dizem-me que não. Um dia esfaqueia um tipo e talvez digam nas reportagens que parecia uma pessoa normal, que ninguém esperava este desfecho… Há um mês cheguei ao carro e tinha um pneu em baixo. O homem da loja de pneus sentenciou: “alguém o odeia, o pneu tem três cortes de x-acto”. Desde o ano passado é a quarta vez que lá vou, entre rasgões e pregos. No natal andava às compras e quando me dirigi ao carro estava um em segunda fila a bloquear-me a saída. Esperei, esperei, esperei, apitei, esperei, apitei mais insistentemente, esperei, e ao fim de uns 10 minutos aparece um indivíduo a gritar “caaaaalma, pá!” “Calma?” – retorqui, quase a rir do absurdo. Quiçá achando-se irónico lançou-me um agressivo “feliz natal”. Tirou o carro eu saí, e ao fim de algum tempo a pessoa que estava comigo revelou: “percebi que não ouviste e não te quis contar, mas quando fomos embora ele disse a p*** da tua mãe“. Esta semana um jogador de futebol foi jogar pelo seu novo clube ao estádio do clube que anteriormente representara; no Instagram publicou isto: “tinha noção do ódio que causou a minha mudança e estava preparado para ouvir insultos. Mas, e já pela terceira vez, ouço cânticos a festejar a morte da minha mãe: a p*** da tua mãe Rochinha, antes a tua que a minha”… Chris Rock referiu também no tal programa que as pessoas lhe pedem 5000 dólares como quem pergunta quando passa o próximo autocarro: “meu, tens 5000 dólares? Já ninguém me explica a razão, só me pedem 5000 dólares como quem pergunta as horas”.

Embora “irreverência” tenha uma conotação positiva (falta de reverência, informalidade), em latim significa igualmente desrespeito. É sempre a ignorância aliada à ausência de valores formativos que permitiriam discernir o importante do supérfluo, que leva à displicência, ou seja, ao desleixo, desinteresse, que por sua vez redunda na falta de respeito, primeiro pelo próprio e depois pelos outros. Em séculos passados a ignorância mantinha-se ocupando os povos com trabalho escravo; agora é igual, apenas se multiplicaram as opções para a atingir.

*Músico e embaixador do PLATAFORMA

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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