Diferentes níveis de realidade

por Filipa Rodrigues
João MeloJoão Melo*

Com precisão cronológica terminou o mediático estado de sítio da pandemia para dar lugar à guerra na Ucrânia. Há que manter o rebanho sob pressão…

O estalar do verniz da crise, que de facto existe há anos, recordou-me a teoria dos jogos. A teoria dos jogos é o estudo de modelos matemáticos de interacções estratégicas entre agentes racionais. Aplica-se em múltiplos campos desde as ciências sociais, filosofia, jornalismo, economia, sistemas de computação, até às ciências militares. É um conceito complexo de enunciar aqui, sinteticamente direi que estuda e prevê as estratégias de cada jogador em função de ganhos e perdas, do envolvimento em coligações cooperativas ou não cooperativas. No fundo quero dizer que daqui a um século quando se olhar para esta época se perceberá que nada foi por acaso, a sequência de acontecimentos obedeceu a um padrão matemático. Desconheço quem propôs o jogo, as alegações dos diversos jogadores pouco me comovem. Triste, como sempre, é que quem fica a arder são os peões. Hoje à noite a população ocidental antes de dormir em paz repassará mensagens do género “somos todos ucranianos” enquanto milhões de pessoas que não escolheram nascer naquele sítio ou noutro qualquer serão vítimas de um jogo que a priori não pretendiam jogar.

Os ucranianos suportam os horrores da linha da frente, contudo todos sofreremos porque está em curso uma reformulação da finança mundial. Os preços dos bens aumentarão, empresas falirão, bolsas entrarão em colapso mas são meras etapas de um plano que visa tornar os ricos mais ricos, obter o controlo total do mundo. Nos primeiros dias Putin tratou de lembrar que a Rússia faz parte do sistema económico mundial e nunca faria nada para o prejudicar… Como líder de um país, a recessão económica é para o lado que julgou dormir melhor, afinal produz energia e matérias-primas, tem agricultura, indústria, e a sempre discreta neutralidade da China.

Deixemos o conteúdo especulativo e vejamos o lado mais formal da guerra na Ucrânia que imediatamente reporta para a crise nos Sudetas em 1938: uma minoria germânica reclamava autonomia da Checoslováquia, vindo então Hitler a exigir a sua protecção e posteriormente a anexar a região perante a inacção dos aliados dos checoslovacos. De novo os medos históricos agitam-se, ambos os lados apelidam o inimigo de nazi, a história repete-se: quem está na disposição de combater ao lado da Ucrânia contra a Rússia? Putin sabia-o, a Ucrânia não é membro da NATO daí a ousadia para embarcar numa aventura perigosa. O líder russo não é um imbecil ao jeito de alguns líderes ocidentais, é um tipo inteligente e refinado em todos os sentidos… Nasceu e cresceu no império soviético já de si uma versão mais sangrenta do império russo, ascendendo na estrutura do KGB, e tornando-se depois director do FSB, a secreta russa. Está familiarizado com métodos de informação, manipulação e sabotagem comuns aos serviços de inteligência; munido deste conhecimento específico só Bush pai se lhe comparava. Assim não surpreende o timing de ataques informáticos no ocidente e, coincidência das coincidências, a recente saída de cena de Angela Merkel, uma figura de inegável relevância no contexto mundial. Num dos últimos artigos que escreveu Mário Soares afirmava que Putin desejava uma relação privilegiada com a líder alemã tendo-lhe esta cedido em várias ocasiões e causado alguns embaraços à diplomacia ocidental. Opiniões à parte o facto é que ela terminou o mandato a 8 de Dezembro de 2021 e 21 dias depois começaram as movimentações militares russas ao redor da Ucrânia. Aparentemente a oportunidade para o avanço surgiu no momento da substituição de chanceler na Alemanha, um vazio de poder num momento de transição, ou se quisermos, o fim de uma relação que ia aguentando as tropas nas casernas.

Embora ache que o próprio perfil de jogador do líder russo estará a ser explorado por forças acima dele e, como disse antes, não me comovem os seus argumentos, é curioso analisar a declaração de guerra de Putin. Transparece uma personalidade claramente marcada pelo medo da traição e reforçada pela experiência de agente secreto; detendo tanto poder torna-se normal ir eliminando adversários ao sabor desse medo. As coisas são como são, ninguém tem culpa que se sinta ingénuo, que encare a dinâmica das relações como traições à sua pessoa, características que tendem a indiciar igualmente uma personalidade narcisista. A retórica para justificar a guerra, traições americanas inclusivamente aos seus aliados, traições aos acordos de Minsk, traições da Alemanha nazi, crítica à ingenuidade de líderes soviéticos do passado são extrapolações que camuflam uma paranóia puramente pessoal, e NADA mais que isto: o medo de ser traído. Em linhas gerais assim também se define um ditador.

Divertira-se com a acusação de manipulação das eleições americanas que colocaram um mentecapto no poder, divertira-se a dividir a Europa no referendo do Brexit em que o meio digital foi comprovadamente intoxicado por milhares de bots provenientes da Rússia, influenciando o resultado, e agora alega que se viu obrigado a defender… atacando. É muito interessante esta afirmação porque me parece encerrar vários níveis de verdade, não da maneira como a ouvimos nem talvez da maneira como ele a proferiu mas porque à luz da teoria dos jogos revela o que o se inclinaria a fazer. E porque acho eu haver aqui verdades? É avaliar as consequências: criou um novo estado de guerra após a guerra ao covid, logo o rebanho continua de calcanhares mordidos, a moribunda NATO ganhou justificação para se reforçar, e enquanto ele for presidente a Rússia receberá a hostilidade da generalidade das nações. A menos que seja traído e envenenado por alguém próximo, situações para as quais deve estar em alerta permanente, aumentará o seu poder na mesma proporção do isolamento, mantendo-se no cargo por largos anos. Agora a população russa tem motivo para se agregar em torno da lógica do líder, “nós contra eles”, afinal já todos estamos doutrinados no “like/dislike” implementado pela redes sociais. Nos idos de 60 o KGB realizara experiências psicológicas fascinantes nas quais descobriram que se formos bombardeados ininterruptamente com mensagens de medo, em menos de dois meses provocam-nos lavagem cerebral tal que nos levam a acreditar em falsas mensagens, ao ponto de não importar a quantidade de mensagens verdadeiras contrárias, nada nos fará mudar de opinião. Atacar a Ucrânia comportava um custo elevado porém demasiado tentador… Creio que para lá do impulso para esta aventura Putin terá realmente considerado todas as consequências pessoais e assim a declaração de que fora obrigado a defender-se mistura o gozo da hipocrisia a um lamento pessoal. O lamento contém vários estratos que vão da submissão a um desígnio superior até à consciência de que a sua vida nunca mais terá descanso. Portanto os medos particulares de Putin espalharam um novo medo pelo mundo…

Apesar da sugestão de que os Estados Unidos (e NATO) são a razão objectiva da sua acrimónia, ela dirige-se de facto aos europeus, quanto mais não seja pela subserviência em relação aos americanos. Repete-se outro padrão, a relação de amor/ódio com a Alemanha, agora a cabeça da Europa e ariete do ocidente. Não vou muito atrás no tempo onde há vários exemplos, o mais recente sucedeu na guerra da ex Jugoslávia onde misturados com pretextos religiosos e étnicos se assistiu a um jogo de manipulação destas duas potências sobre os peões em guerra. Na altura a Rússia “perdeu”, agora busca a vingança.

Tudo gira à volta dos problemas pessoais de um indivíduo com poder para criar eventos imprevistos, eis a guerra da Ucrânia formalmente resumida. A invocação de questões étnicas ou nacionalistas é antiga, e apesar das tentativas de alguns explorarem estes temas, regra geral os portugueses não entendem porque têm uma sólida unidade nacional e construíram nações tão grandes como o Brasil, ao contrário da Espanha, uma amálgama forçada de reinos ainda hoje conflituantes, que viu o seu império americano estilhaçar-se num mosaico de nacionalidades. Dito de maneira tosca a área do centro/leste europeu é um pouco o exemplo da Espanha. A própria Checoslováquia que se formou em 1918, resistiu aos nazis em 1938, preferiu dividir-se em 1992. Acresce que a Ucrânia herdou grande parte do arsenal nuclear soviético, é o celeiro da Europa, possui importância geopolítica e geoestratégica ímpar, só batida pela da Turquia que por acaso assumiu no sábado papel de protagonista; tenho para mim que se algum dia a Turquia estiver no centro de um grande conflito é capaz de ser um sinal do fim destes tempos. Ontem Putin colocou as forças de dissuasão nuclear em alerta máximo. Posso não ser especialista nos assuntos que aqui disserto mas como compositor de música pop aprendi que quando um tema já não tem mais nada para dar sobe de tom; a analogia mostra que do ponto de vista formal a invasão dá sinais de impasse para a Rússia. Se parar agora é humilhante, logo até que ponto estará disposta a continuar, a desgastar a paciência num refrão em cycle ou a subir até à estridência?

Voltando ao conteúdo. Uma enorme fatia dos orçamentos dos Estados (o nosso dinheiro) foi usado para pagar um resgate à indústria farmacêutica, a partir de agora será à indústria de armamento; investir na educação e valorização do ser humano ’tá quieto, convém continuarmos burros, a pagar para dar o corpo, o sangue, a vida, perseguindo a cenoura que nos colocam à frente. A Finança não sai minimamente beliscada, antes reforçada: o cerco aos bancos russos permite aplicar filtros mais apertados às fortunas geradas fora do seu controlo, o “legal”, e cuja origem é maioritariamente russa; doravante os bimbos têm ainda mais dificuldade em introduzi-las no sistema mas claro, na rede continuam a passar os eleitos, e não são nomes que conheçamos ou estejam na “lista”. Em contrapartida a guerra sugere-me ser um teste para outro plano tal como a pandemia o fora. Todos estamos a ser examinados nas nossas reacções, todos somos agentes da experiência incluindo os líderes. Este é o primeiro conflito na Europa escrutinado em directo pelas redes sociais, vivemos numa era que proporciona desafios cada vez mais complexos e perigosos. Em pleno século XXI espanta-me a facilidade com que nos arrastam para certos jogos, não obstante o conhecimento histórico e tecnologia disponível. Ao contrário do que aprendemos nos likes e dislikes a realidade não é bidimensional, possui muitas camadas e leituras, e numa delas vejo Putin a ser levado à prestação de um serviço.

Neste momento estão em órbita na Estação Espacial quatro americanos, três chineses, dois russos e um alemão a conviver civilizadamente, na Ucrânia os desfiles de carnaval fazem-se com carros blindados, e não creio que este corso (tanto no sentido de desfile como de pirataria) seja o pior, é apenas mais um ensaio daquilo que no futuro nos disporá efectivamente a viver na Idade da Pedra.

*Músico e embaixador do PLATAFORMA

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