“A forma como a cultura lusófona está organizada tem de ser profundamente alterada”

por Mei Mei Wong
Catarina Brites SoaresCatarina Brites Soares
cultura lusofonia

Há um ano, os escritores portugueses a viver fora do país Gabriela Ruivo Trindade e Nuno Gomes Garcia lançavam Mapas de Confinamento. O projeto juntou cerca de 110 artistas lusófonos e pretende ser um alerta à importância da Cultura, mas também um ato de intervenção pela forma como é tratada na Lusofonia. Os portugueses Afonso Cruz e Rui Zink, os brasileiros Nara Vidal e Marcela Dantés, os angolanos Ondjaki e Lopito Feijóo, os moçambicanos Hirondina Joshua e Mélio Tinga e o guineense Emílio Tavares Lima são alguns dos que quiseram deixar testemunho

Como é que surgiu a ideia?

– Gabriela Ruivo Trindade- O site foi para o ar em março, mas a ideia surgiu antes. Estávamos no segundo confinamento, outra vez recolhidos em casa. O objetivo primeiro foi o de unir artistas através da língua portuguesa. Desse ponto de vista, creio, este coletivo foi pioneiro.

– Porquê a cultura como elo?

– Nuno Gomes Garcia– Somos escritores. Conhecemos bem as dificuldades. Viver de Literatura é cada vez mais complicado em Portugal, publicar igualmente porque as editoras estão muito viradas para a escrita mais comercial. Depois temos os teatros e cinemas que vivem à custa de subsídios, o que não sendo negativo tem implicações cada vez que os Governos cortam nos apoios porque os artistas não conseguem viver. A construção desta união de mais de cem artistas pretende, entre outros fins, ser um alerta para a importância da cultura.

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– Há outro vínculo, o da língua portuguesa.

– Nuno: Portugal não merece a língua que tem. O Mapas é também um alerta para que se pense a cultura como mais-valia. Economicamente é um país débil, politicamente é um anão e a cultura é talvez o que nos pode dar mais.

– Gabriela: As dificuldades que a cultura geralmente encara, agravaram-se colossalmente na pandemia e por isso quisemos fazer desta iniciativa um ato de protesto. As políticas de apoio culturais são praticamente esmolas e procurámos que o Mapas fosse uma forma de intervenção, até política. Quando estamos isolados é que percebemos a importância da cultura.

– No que se traduziram os Mapas?

– Nuno: A última pandemia foi em 1918 e vemos que a sociedade se modificou de forma radical com a gripe espanhola assim como depois da peste negra. Agora, vai ser igual e quisemos deixar um testemunho. Cada um destes artistas contribuiu com o que experienciou através de um conto, um texto, um quadro, uma fotografia. É um mapa da língua portuguesa que caracteriza e define este momento tão dramático das nossas vidas.

Nuno Gomes Garcia

– Gabriela: Os artistas não tinham necessariamente de falar sobre a pandemia, mas qualquer trabalho feito nesta época acaba por traduzi-la.

– Aquando do lançamento da iniciativa, referiam que poderia ajudar a perceber “de que forma, material e imaterial, objetiva e subjetiva, a pandemia afetou e afeta a criação dos vários artistas envolvidos, e como isso transparece na própria criação”. Passados quase dois anos de contexto pandémico, que conclusões tiram?

– Gabriela: Não fazíamos ideia que conseguiríamos reunir mais de cem artistas. Temos uma variedade imensa de trabalhos. Temos testemunhos de artistas que viveram a doença ainda quando não havia vacina; outros do estado do país como o conto de uma autora moçambicana muito jovem que escreve sobre a realidade da pandemia em guerra civil. Conseguimos reunir um conjunto muito interessante de trabalhos e era isso que queríamos desde o início.

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– Sobre contextos que pouco se tocam.

Nuno: Há uma noção do impacto global da nossa língua, mas conhecemos pouco. Estamos de costas voltadas e ao nível da Literatura isso nota-se. Há um grande desconhecimento de Portugal em relação às culturas lusófonas. Desconhecia que em Moçambique, por exemplo, há uma geração nos seus 30 anos tão fulgurante. O Mapas permitiu mostrar a quem nos segue o que era desconhecido.

– Apesar de se falar o mesmo idioma.

– Nuno – O português é uma língua comum, mas que está cheia de literaturas e de culturas. Temos de compreender de uma vez por todas que a nossa língua é importante. O francês é muito menos falado ao nível de nativos. Temos de aceitar também que o português se está a transformar numa língua do hemisfério sul e que, em meados deste século, o Brasil vai perder peso e que África, sobretudo Angola e Moçambique, vai ter muito mais falantes. É uma língua que se está a transformar e a enriquecer. Nós portugueses somos mais conservadores e pensamos que é nossa, mas não. Temos cerca de 200 milhões de falantes que, em meados do século, serão 500 milhões. Temos de abrir as portas à literatura e às artes africanas e brasileira, e gerar uma comunidade de destino que agora não é devidamente acarinhada pelos vários governos lusófonos, incluindo o de Portugal.

– As regiões da Ásia como Macau estão representadas no Mapas?

– Nuno: Tentamos, mas nunca conseguimos. Por exemplo, em Moçambique existem perto de 20 línguas nacionais, mas há um esforço para preservar o português como língua de união. Sabe-se exatamente o lugar da língua. Noutras zonas da Ásia, não conseguimos mapear a situação do português, chegar às pessoas e obter respostas.

– A secundarização da cultura é um problema só português ou lusófono?

– Nuno: Parece-me um problema da Lusofonia. A cultura é vista como supérflua. A economia, o dinheiro e o lucro são o centro das nossas vidas em detrimento da cultura, que é esquecida porque não o gera. O que notei nas sociedades africanas lusófonas é que são muito jovens, ao contrário da europeia, e que há algo a efervescer.

– O que deve ser feito para reverter o papel cultural?

– Nuno: O paradigma da elite política tem de mudar. Da parte de alguns países há um investimento maciço em traduções que permitem aos outros povos perceberem como um português, no nosso caso, vê e sente o mundo mesmo que não fale especificamente de Portugal. Em Portugal e restantes países lusófonos temos de perceber que investir na cultura, nos nossos artistas é uma forma de nos potenciar. Agora fala-se muito de soft power e a cultura pode ser isso. É quase extraordinário como a língua portuguesa – que é a quarta mais falada no mundo – tem dificuldades em afirmar-se nas Nações Unidas. Denota muito a falta de investimento na língua e na cultura.

Gabriela Ruivo Trindade
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– Gabriela – É essencialmente um problema político que tem de ser olhado de forma transversal. Como na cultura, também há falta de investimento na educação e saúde. É um problema estrutural da sociedade capitalista.

– A pandemia veio agudizar a situação.

– Nuno: Em França, com a pandemia, houve um aumento drástico na venda de livros. Em Portugal e no Brasil aconteceu o contrário. Mais uma vez, fica claro o problema estrutural de ausência de investimento na cultura e na educação. Não há hábitos de leitura porque nunca houve uma promoção séria da mesma. Não se admite que em França, onde o salário mínimo é o dobro do português, os livros sejam mais baratos. Temos tantos exemplos de sucesso na política cultural, não faz sentido que a Lusofonia não a tenha. A forma como a cultura lusófona está organizada tem de ser profundamente alterada.

– Além do livro, há outras ideias que resultaram do Mapas?

– Nuno: Este projeto nasceu num tempo de confinamento, mas também numa altura em que tudo se desmaterializa, incluindo a cultura. Claro que beneficiamos desse fenómeno, mas volvido um ano queremos materializá-lo e é por isso que daqui a um mês vamos publicar um livro só de contos de 62 escritores.

– Gabriela: Além deste livro – que vai reunir apenas os trabalhos em prosa -, queremos publicar outro com os de poesia. Também gostávamos de publicar uma edição com os trabalhos fotográficos, e de organizar exposições com as fotografias e ilustrações.

– Vão continuar com a iniciativa quando a pandemia findar?

– Gabriela: O processo de tradução ainda está em curso e a ambição é conseguir traduzir todos os trabalhos. Também temos uma parceria com o Dias Úteis Podcast que todas as quintas lê um trabalho nosso, e temos uma Revista Virtual.

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– Nuno: O objetivo é abrir ao mundo português, mas não ficarmos prisioneiros dele. Ao traduzirmos para francês e inglês, que são as línguas que temos mais facilidades, queremos que esta visão dos luso-falantes sobre a pandemia e os nossos tempos chegue além e às pessoas que não falam português.

– Gostavam de ver os Mapas traduzidos para chinês? Procuram parcerias nesse sentido?

– Nuno: Sim, esse é um dos nossos objetivos. Estamos à procura de uma parceria com uma universidade chinesa nos mesmos moldes daquelas que estabelecemos com a universidade de Oxford e a universidade Jean Monnet. Temos esse objetivo não apenas porque a língua portuguesa está ligada à China através de Macau, existe essa História comum, é um facto, mas, principalmente, porque a língua chinesa é a língua mais falada no mundo e a sua importância fora da China tem aumentado substancialmente. Hoje, existem milhares de liceus europeus onde o chinês é ensinado, algo que há vinte anos não acontecia. Por outro lado, sabemos que o ensino da língua portuguesa suscita um crescente interesse na China. Se os escritores e os poetas do Mapas do Confinamento tiverem a oportunidade de verem os seus trabalhos traduzidos para chinês seria um avanço muito positivo na relação entre os dois idiomas.

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