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Uma mão cheia de nada

João MeloJoão Melo*

Passámos anos sem ouvir falar de esquerda e direita até que desde há uns dez a narrativa política se centrou quase em exclusivo nessa questão

Da maneira como é usualmente referida acho a terminologia um reflexo da pouca densidade de pensamento actual, fomentada por redes sociais onde o ritmo de absorção de uma mensagem e a necessidade de definirmos uma posição leva a fixarmo-nos no chavão mais impactante, avaliando-o através dos prosaicos “gosto” ou “não gosto”. Anos de prática neste método ajudaram a criar um espírito de dicotomia onde apenas existe preto ou branco, não há espaço nem tempo para outras matizes, instados que somos a optar por uma das facções. Os protagonistas do teatro político cada vez mais se servem do “ama-me ou odeia-me”, as nossas opiniões resumem-se ao politicamente correcto ou incorrecto, pró-vacinas ou negacionistas, esquerda ou direita, e por aí fora. O ponto de partida está errado, ainda assim usarei estes termos para melhor me fazer entender.

No próximo domingo realizam-se eleições legislativas em Portugal; precisávamos tanto delas como de hemorróidas mas as coisas são o que são, para um governo gravemente ferido, o chumbo do orçamento foi o tiro de misericórdia que findou a agonia. Antes de mais há um dado que pode baralhar todas as previsões, a pandemia que acrescerá abstenção à já expectável. Na última quarta-feira a ministra da Justiça informou que os eleitores infectados e/ou em isolamento poderão sair de casa para exercer o direito de voto. Depois de praticamente dois anos de lavagem cerebral sobre o perigo de contágio bora lá fechar os olhos durante um dia, vai tudo p’á rua, sãos e infectados… É importante votar? Sim, todavia não deixa de ser mais um episódio da comédia negra que tem sido a abordagem política ao covid. A recomendação do governo é que o façam ao fim do dia “o período mais adequado será, provavelmente, a última hora, entre as seis e as sete”. Havia de ser bonito se das 716 mil pessoas infectadas, números de quarta-feira, as habilitadas a votar seguissem o conselho. Não sei como se poderia resolver, o que sei é que quase todas as normas que as autoridades têm sugerido ou determinado são relativas, consequentemente desagrada-me a obrigatoriedade de algumas.

Mal ou bem há dois partidos de poder, PS e PSD. O PS, dito de esquerda, governa inclinado para o centro, o PSD, dito de direita, se ganhar governará inclinado para o centro. É no centro que se joga o jogo do poder. A 14 de Dezembro o Diário de Notícias informava na primeira página que dos 90 diplomas apresentados pelo PS na Assembleia, dois terços passaram com o apoio do PSD, a que muitas vezes se somaram, à vez ou em conjunto, as outras bancadas de direita. O PAN foi o que mais ajudou Costa, o BE e o PCP só viabilizaram 7 propostas. Eis um indício de que estar no governo difere de ser oposição, o sentido de Estado só veste a alguns, e a ideologia geralmente é uma distracção, uma bandeira desfraldada ao sabor dos interesses de cada um. No actual parlamento o espectro político vai do infra-vermelho PCP, passa pelo BE, Livre, PAN, PS, PSD, IL, CDS e acaba no ultra-violeta Chega. Tirando os extremos do espectro que estão sempre aptos a enfrentar o apocalipse, penso que em Novembro mais nenhum estaria preparado para estas eleições. Tendo em conta a provável distorção dos resultados originada pela pandemia a que todos os partidos podem recorrer se a vida lhes correr mal, farei algumas considerações sobre os prováveis resultados, escudando-me igualmente nessa desculpa se falhar.

O PCP tende a perder cada vez mais votos mas continua a deter um poder corporativo invejável. Resistiu ao antigo regime, ao 25 de Novembro de 75, à queda da União Soviética, enfim, resiste à simples lógica, o que lhe confere uma aura mais ou menos religiosa. Os seus dirigentes regem-se por normas um tanto ou quanto monásticas, e nesse particular granjeiam a admiração de todos os sectores. Gozar com eles é como gozar com um padre por acreditar no que acredita, por levar a vida que leva. Sobre o PCP toda a gente sabe há décadas com aquilo que pode e não pode contar, não muda, e isso é a maior razão da sua sobrevivência, se mudasse desfazia-se. Imaginam o Vaticano a ordenar mulheres, aceitar o casamento de sacerdotes, permitir liberdades ao jeito de qualquer outra versão cristã “moderna”? Não só perderia a confiança dos fiéis como desbaratava séculos de práticas enraizadas. Não mudar é o caminho mais óbvio para o PCP ir sobrevivendo. Associamos “imutabilidade” a “coerência”, e porque tudo tem um preço, este tipo de coerência cerceia o crescimento.

Bloco significa uma coligação de elementos políticos mas também uma porção de massa sólida para estruturar, manter edificado. Aqui percebo no Bloco de Esquerda a mesma matriz de resistência do PCP. Representam várias ideias ditas de esquerda, de cariz urbano, e fora das cidades a sua agenda deve soar à população rural tão exótica como a chegada de ETs à Terra. Estão limitados a negociar propostas com um governo do PS ou barricarem-se na sua zona se este não for governo. Daí a estratégia de votar contra o orçamento de Estado: se por um lado não podiam mais dar a mão sob pena de continuarem a ser vampirizados, por outro precisam de se demarcar, embora arriscando-se a um hara kiri. Julgo que as urnas mostrarão que os eleitores os consideram os principais responsáveis pela crise instalada, mas compreendo que na perspectiva do partido a situação atingira o limite, não podiam continuar a sustentar o PS. Jerónimo e Costa são ratos velhos, desapareceram da fotografia do chumbo; sem entender bem como, Catarina Martins ficou com o nado-morto nos braços, expôs-se à queima pública, portanto arderá.

Quanto ao Livre é desnecessária grande elucubração para ter a certeza de que vai desaparecer da Assembleia, e não há muito mais a dizer.

O PAN está condenado a esvaziar-se significativamente. A líder tem carisma, gerando instantânea simpatia ou antipatia, portanto talvez se aguente na Assembleia; não fosse esse motivo e creio que o partido saía de lá. O PAN medrou em circunstâncias não mais existentes, parece que o programa caberia numa secção de ideais a longo prazo dos dois grandes. Ficará uma reserva ideológica, na condição de satélite do PS ou PSD como “Os Verdes” são do PCP. Que sempre foram matéria-prima para memes já se percebera dada a sua peculiar ideologia, porém desconhecia que gerassem tanta antipatia de determinados sectores, o que numa sociedade “falem mal de mim mas falem de mim” pode ser um trunfo para não se eclipsar do Parlamento.    

O PS naturalmente perderá bastante, não só pelo desgaste natural do primeiro ministro como pelos escândalos do governo que, note-se, para mim aconteceriam com qualquer partido no poder, só o estilo de os abordar mudaria em função do género de liderança. O poder corrompe. Em contrapartida ganhará com a concentração de votos à esquerda que preferem uma solução de governo da sua área. Sendo a principal face do executivo Costa torna-se no saco de pancada de todos que no seu lugar fariam assim ou assado. É um político maleável, inteligente e tem escapado ao “depois de mim o caos” o que lhe confere uma réstia de simpatia mas ainda falta uma semana de campanha; veremos se o desespero o conduz à armadilha, eu prevejo que sim. Por outro lado o seu pedido de uma maioria é um delírio, propositado ou não, característico de quem passa muito tempo na cadeira do poder e se vai distanciando da realidade do eleitorado, veja-se o sucedido na câmara de Lisboa.

Por falar em Lisboa, isto serve para todos: na actual conjuntura, difícil, e uma vez que nos reduzimos ao preto e branco, quem é que põe no topo das suas prioridades pessoais, por exemplo, as alterações climáticas? Porque precisa do carro para ir trabalhar e pagar contas, cada trabalhador espera é que o seu veículo vá durando, o gasóleo não suba de preço, e cada patrão espera que o plástico não acabe de vez porque não há outra forma viável de embalar o que produz.

Em Portugal é raro alguém ganhar pela força das ideias, e habitual pelo enfraquecimento dos adversários. Apesar de todas as vicissitudes internas Rui Rio manteve-se à frente do PSD, um resistente da velha cepa nortenha que aumentará o número de deputados, podendo até ser o mais votado. Não se prevendo haver maioria de nenhum partido, ser o mais votado estabelecerá a pedra de toque para definir a orientação “ideológica” do próximo governo. Mas também pode não ser, dependendo da maioria à esquerda ou à direita bem como dos seus arranjos. Se o PS for o mais votado e não houver maioria à direita, o que duvido, governará sozinho em minoria; a pública clivagem à esquerda veio para ficar e nem PCP ou BE pretendem aproximar-se de um PS que os devora. Se o PSD for o mais votado desenham-se dois cenários: ou Rio governa sozinho em minoria ou numa coligação, sendo que esta não deverá abarcar uma maioria já que nenhum partido quer consigo aquele que irá ocupar um considerável número de cadeiras, o Chega.

Quer vença o PS ou o PSD, para ambos significará uma vitória de Pirro; ganha mais o PSD que liberta um bloqueio psicológico.

Apesar de o PSD representar o buraco negro aspirador de votos à direita, nomeadamente do CDS, julgo que a Iniciativa Liberal escapará à sucção. As suas propostas são as do PSD se não sofresse as contingências de ser governo e só necessitasse de captar votos urbanos. O IL agrada a eleitores de nível socio-económico elevado, descola da ideia de uma direita rural que se pega a todos os partidos desse lado do espectro, e a despeito de apelar mais à razão do que ao sentimento também tem os seus chavões; detestam, por exemplo, a palavra “Estado”. São virados para a tecnocracia, vendo a gestão do país como uma empresa. Realizável ou não em Portugal, um tema para outra altura, fica a ideia de que seguem o modelo da Holanda, uma espécie de país/empresa.

Em Março de 2018 Assunção Cristas assumiu no congresso do CDS pretender ser primeira ministra de Portugal. Na noite das legislativas de 2019, perante a redução de 18 para 5 deputados do seu partido assumiu a hecatombe “com humildade democrática”. Recordo novamente que quando os grandes referenciais das duas áreas políticas estão fortes, os pequenos dessas áreas esvaziam-se. Durante as campanhas eleitorais os principais adversários são os das mesmas famílias ideológicas, e nunca o CDS tinha obtido tão maus resultados como no tempo das maiorias absolutas de Cavaco Silva. O novo líder, Francisco Rodrigues dos Santos, “atreve-se a dizer que o CDS vai ser a grande surpresa das eleições”. Muito alto sonha este partido. Veremos se a grande surpresa é eleger ainda menos deputados… Na área da direita, para mim será o único a sangrar para os concorrentes.

O Chega é um caso singular. Agora atrevo-me eu a afirmar ser o único a ir beber a todas as zonas de influência partidárias, pouco ao PCP e ainda menos ao BE. Isto acontece porque não é um partido propriamente com ideologia. Conheço pessoas de variadas áreas políticas que manifestam vontade de votar nele, mesmo as que defendiam princípios não ligados a este partido. Ao reduzido interesse em “pegadas carbónicas” ou “corredores verdes” corresponde uma elevada disposição para ouvir quem promete baixar combustíveis, reduzir para metade os odiosos cargos políticos, acabar com a “pouca vergonha” dos escândalos e corrupção, “abanar o sistema”, e demais chavões de tablóide. Como? Não se sabe porque o seu programa tem a extensão e profundidade de uma publicação no Facebook, é curto e grosso, baseado na pouca atenção que dedicamos a leituras. Contudo a neurociência prova que as palavras não nos afectam somente a um nível psicológico, têm um impacto significativo no devir das nossas vidas. Talvez seja por isso que os enormes cartazes de André Ventura espalhados por todo o lado apresentem em letras pequeninas a frase “candidato a primeiro ministro”. Não será no imediato mas calma, vai-se inculcando a noção e um dia soará normal. Sabem muito… Ao pé deles os cartazes da concorrência parecem de listas para associações de estudantes. Importante agora é aumentar a participação dentro do “sistema” que combatem, o que certamente sucederá, e sem surpresa creio poderem tornar-se na terceira força política nacional. Malgrado desconhecer de onde vem o aparentemente robusto financiamento de um partido tão pequeno, espero por fim conhecer outras caras que não a do líder e perceber como cumprirão o que prometem, sendo previsível que se não cumprirem atribuirão a culpa à falta de deputados, pedindo mais para a próxima…

*Músico e embaixador do PLATAFORMA

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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