Pandemia agradece aos individualismos

por Guilherme Rego
Catarina Brites SoaresCatarina Brites Soares
Covid-19 desigualdade

A Organização Mundial de Saúde (OMS), profissionais da área e entidades – como a União Africana e Comunidade Médica de Língua Portuguesa – insistem que a pandemia continuará se as vacinas não chegarem a todos. O fosso entre ricos e pobres voltou a evidenciar-se com a crise de saúde pública que se vive desde 2020. Se não for corrigido, a pandemia não será erradicada

Se nos países ricos cerca de 67 por cento da população tem pelo menos uma dose – e parte já recebeu três -, nos mais pobres nem 10 por cento tem a primeira. Os dados são das Nações Unidas. África – incluindo alguns dos países lusófonos – destaca-se pelos piores motivos. Em todos os mapas do site estatístico Our World in Data, destoa dos restantes continentes (ver mapas em anexo).

Mário Maranhão, médico no Brasil, olha para a realidade com preocupação e desânimo. “Se os países de renda mais baixa ou média não receberem vacinação adequada, o vírus demorará a ser erradicado”, releva. Francisco Pavão, da Comunidade Médica de Língua Portuguesa (CMLP), recorre ao exemplo da esfera lusófona para ilustrar as clivagens. Num extremo, Portugal – com uma taxa de vacinação a rondar os 90 por cento; o Brasil e Cabo Verde – com cerca de 70 por cento – face aos outros, no extremo oposto.

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“E aqui falamos sobretudo de dois países de grande dimensão – Angola e Moçambique – que têm menos de 30 por cento da população vacinada. A parcela com as duas doses não chega aos 20. Esta é a realidade de todos os países de baixo e médio rendimentos”, sublinha.

O médico vinca que as discrepâncias comprometem a recuperação mundial da pandemia, e contribuem para o agravar das disparidades e vulnerabilidade das populações desfavorecidas.

“Esta pandemia exigia grandes mecanismos de cooperação e solidariedade, impedindo os nacionalismos de desvirtuarem essa missão global”, defende. A presidente do conselho de administração do Hospital Baptista de Sousa, em Cabo Verde, insiste que a única resposta seria vacinar o globo de forma adequada.

“Todos devem ter acesso às vacinas. Cabo Verde conseguiu, mas o continente [africano] tem uma taxa bastante baixa de vacinação. Temos um exemplo claro na África do Sul, com o aparecimento de uma nova variante numa população com alta taxa de infeção e com baixa taxa de vacinação. O caminho seria acabar com as desigualdades. A ameaça é real e é a nível mundial”, alerta Ana Brito.

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“É UMA VERGONHA MORAL”

No mês passado, a OMS avisava que o continente africano poderá não atingir o objetivo de vacinar 70 por cento da população até meados de 2022. O responsável da União Africana, John Nkengasong, acrescentava outro.

“Tenho receio que possamos estar a caminhar para a Covid-19 se tornar endémica, por causa da lentidão das vacinas”. As dissonâncias são assustadoras, enfatiza Ana Brito. Graças a elas, lembra, continuarão a existir focos de grande disseminação e assim novas mutações. “O medo é que apareça uma estirpe mais virulenta, letal e que agrave toda essa situação económica e social, principalmente nos países de baixa renda”, sensibiliza.

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A primeira meta – 40 por cento da população mundial vacinada até ao fim de 2021 – ficou por cumprir. Dados da OMS mostram que 92 países, de um total de 194, ficaram aquém. “Não é apenas uma vergonha moral, custou vidas e deu ao vírus a oportunidade de circular e sofrer mutações”, condenou o diretor-geral da Organização.

“Este é o momento de superar nacionalismos, e proteger as populações e economias contra as variantes futuras, acabando com a desigualdade global das vacinas”, sublinhou Tedros Ghebreyesus.

Francisco Pavão recorda que em 2020 cerca de 8,2 mil milhões de vacinas já estavam negociadas: 53 por cento compradas por países de alto rendimento; 17 por cento destinadas aos de renda média – como Brasil, México, Argentina e África do Sul; 12 por cento para o programa Covax; e o restante para os países de renda baixa. “Se não fosse assim, estes países não teriam sequer cinco por cento da população vacinada”, considera. Ana Brito pede mais união e que os Estados ricos ajudem os restantes.

“Esta será a melhor forma para acabar ou controlar a pandemia. Não aprendemos nada com a malária ou VIH/ SIDA”, lamenta.

UNS COM TANTO, OUTROS COM TÃO POUCO

Só 20 dos 54 países africanos vacinaram completamente pelo menos 10 por cento da população. Dez ainda não atingiram os dois por cento. No mundo lusófono, Cabo Verde é das poucas exceções com mais de metade da população vacinada. Segundo os dados da Direção Nacional da Saúde, cerca de 84 por cento tem uma dose, 70,8 recebeu as duas, e perto de 47 por cento dos indivíduos dos 12 aos 18 estão vacinados com a primeira.

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O país recebeu ajuda dos programas de vacinação da OMS, como o Covax, e de países como Portugal, França, Países Baixos, Eslovénia, China, Luxemburgo, Hungria e os Estados Unidos da América. “Infelizmente a vacinação foi iniciada após os países do primeiro mundo. O ideal numa pandemia seria que todos começassem o combate ao mesmo tempo para um maior controle do vírus”, critica Ana Brito.

À semelhança de Cabo Verde, Mário Maranhão diz que o Brasil também aderiu às vacinas, apesar do negacionismo do Presidente e do Ministério da Saúde brasileiros.

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“Cerca de 75 por cento da população recebeu a primeira dose; perto de 65 por cento a segunda e 15 por cento a dose de reforço”, referia aquando da entrevista no início de janeiro. Apesar da campanha de vacinação contra a Covid-19 ser considerada a maior e mais rápida da história, ficou também marcada pela desigualdade.

Um estudo da Fundação Mo Ibrahim, publicado no início de dezembro, referia que, até 29 de novembro de 2021, 238 milhões de pessoas em 60 países tinham recebido uma dose de reforço – mais de seis vezes superior ao número total de pessoas que receberam a primeira em países de baixo rendimento. Os autores reiteravam que é remota a possibilidade de se ultrapassar a pandemia se não se conseguir vacinar 70 por cento da população africana até ao final deste ano. Pavão partilha o pessimismo e insiste na urgência de combater o que designa de ‘nacionalismo das vacinas’, por um lado, e apostar ‘na diplomacia’ por outro.

“A maioria dos países desenvolvidos, como Israel e os Estados Unidos, conseguiram arrecadar uma grande percentagem de vacinas. Em vez de as disponibilizarem e de partilharem as receitas, capturaram-nas e a única preocupação é a de inocular a sua população. Israel já está a vacinar pela quarta vez. Muitos países, como Angola e Moçambique, não têm sequer 30 por cento da população vacinada e são países com milhões de habitantes”, sublinha.

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Graças a isso aconteceu o que a ciência previa, mas a população já não esperava: o surgimento de uma nova variante. O desfecho pode repetir-se enquanto se mantiverem as assimetrias. Para as combater, salienta o médico, é essencial a aposta na ‘diplomacia das vacinas’, ainda que reconheça que é usada por certas potências com outros fins.

“A pandemia também permitiu perceber a importância geoestratégica e geopolítica dos países na distribuição das vacinas. Por exemplo, o caso de Portugal com os Países de Língua Portuguesa; mas também o ‘aproveitamento’ da China e da Rússia que introduziram vacinas em países de baixo e média renda, onde política e estrategicamente têm muitos interesses”.

No continente africano – que tem o Ruanda, a África do Sul e o Senegal como porta-vozes – cresce o apelo a que se libertem as patentes, e ganha força a ideia de que é premente a construção de fábricas de vacinas e medicamentos para impedir os obstáculos à distribuição. “De outra forma não vamos conseguir ultrapassar esta enorme dificuldade de chegar a todos em todas as partes. A capacitação desses países trará imensas vantagens”, afirma Francisco Pavão.

Mapas do Our World in Data:

COVID-19: países a caminho de terem 70% da sua população com vacinação completa em meados de 2022. Projeções baseadas na informação da cobertura vacinal e no número de pessoas com vacinação completa nos últimos 14 dias. NOTA: Considera-se com vacinação completa as pessoas que tenham recebido todas as doses estabelecidas pelo protocolo inicial. Excluem-se os países que não reportaram
qualquer informação há mais de 30 dias. A meta de 70% a atingir em meados de 2022 foi estabelecida pela OMS
COVID-19: países com 40% da sua população vacinada com pelo menos uma dose no final de 2021. NOTA: Excluem-se os países que não reportaram qualquer informação há mais de 30 dias.
A meta global de 40% foi estabelecida em agosto de 2021 pelas Organização das Naçãoes Unidas, Organização Mundial da Saúde, Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional e Organização Mundial do Comércio
COVID-19: doses administradas por cada 100 pessoas, janeiro 2022. Todas as doses, incluindo as de reforço, foram contadas individualmente. Como a mesma pessoa pode ter recebido maisque uma dose, o número de doses por 100 pessoas poderá ser superior a 100

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