A Macau pós-transição vista por três macaenses

por Guilherme Rego
Catarina DominguesCatarina Domingues

Viveram momentos de “apreensão”, “incerteza” e de “constante tristeza e receio” no período que antecedeu a transferência de Macau para a China. No território ou no exterior, três macaenses falam ao PLATAFORMA sobre os “momentos delicados” que atravessa a região administrativa especial chinesa. “A comunidade macaense, por natureza, fez sempre diplomacia. Todos os dias está a fazer diplomacia”.

Maria João Ferreira chegou “desgostosa” a Lisboa. Tinha 16 anos, vivia-se o verão de 1966 e a macaense acompanhava os pais numa viagem a Portugal, para gozo da licença graciosa, período de férias prolongado e concedido aos funcionários públicos dos então territórios portugueses a cada quatro anos de trabalho. Maria João lembra-se que aterrou na capital portuguesa a 30 ou 31 de julho desse ano. Daí a uns dias, os pais – a mãe, portuguesa da Guarda, “loura de olhos azuis” e vice-reitora do liceu de Macau, e o pai, professor e advogado macaense, – foram os representantes “da província de Macau na inauguração da Ponte Salazar”. 

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Maria João Ferreira

Nessa década de 60, o ensino superior ainda não tinha arrancado em Macau e a vida da jovem macaense acabou por se fazer em Lisboa. Apenas no último momento da presença portuguesa na região do Sul da China, a macaense voltou a viver no território, por um período de três anos. Trabalhava no Fundo de Pensões, em 1993, quando se despediu, num hospital de Hong Kong, do irmão mais novo do pai, o tio José dos Santos Ferreira, poeta e firme defensor do patuá, por todos conhecido por Adé. 

“O meu tio estava tão entristecido com a ideia da passagem [de administração de Macau para a China] que dizia que não queria viver para ver esse dia chegar”, conta ao PLATAFORMA. 

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Adé morreu de um enfisema pulmonar, em março desse ano. “O Adeus de Macau”, poema redigido dez anos antes da transferência, é prova da “grande mágoa” que sentiu com o momento de transição: “Não queremos que vás/ Nem tu própria quererás ir/Mas quem somos nós/Neste mundo de gente poderosa”. 

Maria João Ferreira não é “radical como o tio Adé” nem “fanática, frenética ou ferranha da portugalidade”, mas admite que não foi capaz de assistir pela televisão à “transmissão do recolher da bandeira”. O maior receio do pós-99, diz, era o “desvanecer” da língua portuguesa. 

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Tristeza “que até desorienta” 

Um par de meses após a partida de Maria João Ferreira para Portugal, o “1,2,3”, movimento popular em contestação da administração portuguesa, inspirado pela Revolução Cultural, chegou a Macau. A presença no território dos guardas vermelhos, exército de jovens que ajudaram Mao Zedong a consolidar o poder durante a Revolução Cultural (1966-1976), levou a família de Rogério Luz, então com 17 anos, a mudar-se para o Brasil. “Um simples exemplo doméstico era do filho da nossa empregada que fazia parte deste grupo revolucionário, o que a obrigava a ter receio com quem falava, temendo consequências que nem os pais eram imunes”, lembra agora o macaense em entrevista ao PLATAFORMA.  

Rogério Luz

A cidade de São Paulo tornou-se casa. Aí, Rogério criou família, património e raízes. Daí, olhou a transição de administração “com uma constante tristeza e receio”, ainda que considerasse “inevitável” – “afinal, Macau era um pedaço do território da China”. 

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“Prevaleceu a sabedoria chinesa na negociação da transição, que durou anos. Algum outro país teria feito isso? Poderia ter havido uma simples ordem a Portugal para abandonar o território sem a manutenção de privilégios à comunidade macaense-portuguesa”, sublinha. 

Após assistir à cerimónia de transferência de soberania em direto na RTP, Rogério começou a debater-se com a questão da preservação da memória de Macau. Foi assim que, nos anos seguintes, criou os blogues “Projecto Memória Macaense” e “Crónicas Macaenses”, para a divulgação de temas relacionados com Macau e a comunidade macaense.  

“Todos os dias fazemos diplomacia” 

Miguel de Senna Fernandes chegou a comprar, em meados dos anos 90, uma casa em Portugal, embora nunca lá tenha vivido. Admite ter sentido “alguma apreensão” nos últimos anos que antecederam a transferência do território, pela “incerteza” sobre a manutenção da língua e da nacionalidade portuguesas. Várias razões levaram o advogado a permanecer na RAEM: além de não ser funcionário público – Lisboa reintegrou estes funcionários nos quadros do Estado – Senna Fernandes reconheceu, no período final da presença lusa, uma “espécie de campanha de apaziguamento” entre a comunidade.  “Era interesse da própria China que as coisas se mantivessem. Naquela altura já se desenhava o futuro Chefe do Executivo, Edmund Ho, uma pessoa da confiança da comunidade macaense, lembra o advogado e presidente da Associação dos Macaenses

Miguel de Senna Fernandes

A Declaração Conjunta, assinada em 1987, contempla que, após a transferência de soberania, em 1999, e por um período de 50 anos, sejam mantidos em Macau os direitos, liberdades e garantias vigentes, à semelhança do que foi definido para Hong Kong dois anos antes. Contudo, a aprovação por Pequim de uma lei de Segurança Nacional para a ex-colónia britânica, em resposta a meses de protestos pró-democracia, e o encerramento do jornal Apple Daily têm vindo a revelar uma crescente interferência do Governo Central chinês nos assuntos de Hong Kong. Também em Macau, os média são a face visível de novos tempos. Os jornalistas do canal português da Teledifusão de Macau receberam, em março deste ano, diretivas para seguirem uma linha editorial patriótica. Já no quadro político, candidatos pró-democracia foram impedidos de se candidatar à Assembleia Legislativa local por não serem “fiéis à RAEM”. 

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Para Senna Fernandes, a gradual ingerência da China é expectável: “A autonomia termina em 2049 e isso não quer dizer que só aí mude tudo. Eu esperaria pelo menos dez anos antes da efetiva transição, mas naturalmente as convulsões em Hong Kong aceleraram o processo”. 

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O macaense admite encontrar-se “numa situação de completa expectativa”, embora não equacione sair. “Estamos a atravessar momentos delicados, nós vivemos num contexto em que todo o mundo parece estar contra a China e a China reage de certa forma, e nós – comunidade portuguesa aqui – apanhamos o fogo cruzado. Em Macau, temos de ser inteligentes. A comunidade macaense, por natureza, fez sempre diplomacia. Todos os dias está a fazer diplomacia. Isto não tem nada a ver com a liberdade, é uma questão de estar ou não estar dentro de um certo contexto, porque se não estiver, vamos embora”, declara. 

“Muitas vezes preferimos a discrição” 

Rogério Luz diz que fala aos brasileiros “com certo orgulho” de Macau. Conta-lhes sobre os progressos da cidade onde nasceu e das elevadas receitas do jogo da “Las Vegas do Oriente”. Já quando regressa a Macau, sente “uma tristeza” que “até desorienta”: “Por não encontrar mais aquela terra onde vivia feliz na juventude”. 

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Ao comentar a “situação política e a progressiva interferência do Governo Central no território”, Rogério sublinha uma característica dos macaenses: “Muitas vezes preferimos a discrição, educados pela sabedoria chinesa que faz parte também da cultura do macaense”. 

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Já Maria João Ferreira fala de uma sociedade pouco politizada – “estão todos entretidos com a boda aos pobres dos subsídios e muitos acham bem que o Governo tome conta deles” – apesar de acreditar que, no que diz respeito aos últimos acontecimentos, “muita água vai correr debaixo da ponte”.  

Doutorada pela Universidade de Lisboa com a tese “A gastronomia macaense no turismo cultural de Macau”, a também vogal da direção da Casa de Macau em Lisboa recusa que seja feita tábua rasa do compromisso luso-chinês e acredita que decisões como a entrada do centro histórico de Macau para a lista de património histórico da UNESCO (2005) e a designação do território como Cidade Criativa da Gastronomia da UNESCO (2017)  “dão muita força a uma continuação de Macau”. 

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“E aqui utilizo uma frase de um grande investigador [Gary Ngai], que diz que ‘não preservar a latinidade e o património cultural que Macau herdou poderá dar origem, com o decorrer dos anos, à transformação de Macau em mais uma cidade chinesa ou reduzi-la a um simples apêndice da vizinha Zhuhai’”, diz. 

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Já quando regressa à terra, a macaense nota uma “tensão entre o português e o chinês” no trato diário e um “espírito colonialista” que persiste entre alguns membros da comunidade portuguesa em Macau – “emigraram para Macau para chocalhar a árvore da pataca a ver se pinga, porque, de uma maneira geral, os portugueses fazem uma espécie de ghetto, não se misturam e não aprendem cantonês”. 

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