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“A comunidade portuguesa [em Macau] está órfã”

Catarina Domingues

Perante a “necessidade de recentralização do império” chinês e a consequente “precipitação no quadro político” em Macau, o antropólogo Carlos Piteira defende que há reflexões a fazer do ponto de vista da diplomacia lusa. “A comunidade portuguesa [em Macau] está órfã”, diz o investigador do Instituto do Oriente da Universidade de Lisboa em entrevista ao PLATAFORMA, revelando ainda que o “receio das pessoas falarem” contribuiu para que deixasse de escrever opinião para a imprensa portuguesa na região administrativa especial.  

Mais de 20 anos sobre a transferência de soberania, como se inserem os macaenses nesta recém-Macau?  

Carlos Piteira – A temática dos macaenses é interessante, porque ainda sobrevive. Há cerca de dois anos, antes da Covid, celebraram-se aqui os 20 anos da transição da RAEM, com alguma pompa e circunstância. Dinamizámos colóquios, debates, nomeadamente através da Fundação Oriente. Foi publicado recentemente, na revista do Instituto do Oriente, perspetivas sobre o futuro dos macaenses, com várias participações, quer de figuras ligadas a Macau, historiadores, antropólogos, quer das instituições, como a Casa de Macau e a Fundação Casa de Macau. E os prognósticos eram os normais para um período de transição que se esperava que fosse de 50 anos, em que as dinâmicas iriam recolocando os atores em papéis diferenciados. Isso é que era o processo natural. Por isso, quando se aprovou a Declaração Conjunta [luso-chinesa] e a Lei Básica, a lógica era deixar um espaço de 50 anos e que as alterações e as mudanças fossem gradualmente assentando com novos enquadramentos, mas de uma forma tão vagarosa que quase não daríamos pela mudança, à boa maneira oriental. Houve aqui alguma precipitação no quadro político, mais do que no sócio antropológico.  

 
Já vamos a essa precipitação. Diria que existe um distanciamento entre o macaense pré-transição e pós-transição? 

Carlos Piteira – De facto, há algum. Há, para já, uma preocupação em deixar legados. Esta geração ativa de macaenses da pré-transição quase que transportou para si o dever de criar uma nova geração que estivesse alimentada da sequência natural do mundo global. Chamámos quase que um dever a essa composição, em vários setores económicos, políticos, sociais, para que cada vez mais emergisse uma geração de macaenses com outra postura, mas que estivesse ligada a este passado. Atualmente, penso que as coisas talvez se tenham alterado um pouco nas referências que se vai procurando, e aqui podemos dizer que estamos numa fase em que pode haver algumas contradições entre aquilo que é a pretensão de passar uma herança que está ligada a um processo e, se calhar, o surgimento de uma nova comunidade macaense – ou de jovens macaenses – que vão buscar referências mais imediatistas. 

Eu diria que esta diplomacia por parte do governo português manifesta-se numa ausência completa

Carlos Piteira – Tendo em conta que o processo não foi gradual, o que é que se criou? Criou-se quase uma quebra repentina das lógicas. Estamos todos à procura ainda do que é que se está a passar, quer esta geração pré-transição, quer a geração que vai novamente surgir da pós-transição. Há factos novos que, de repente, mudam o xadrez daquilo que é a lógica de pensamento, de interiorização. 

Esses factos novos… 

Carlos Piteira – São estas situações de alteração daquilo que é a malha social, essencialmente em Macau, obviamente. A repercussão faz-se através do núcleo central em Macau, em que a própria sociedade altera substantivamente aquilo que é o modo de vida em Macau. E aqui, se me permite, eu gostaria de inverter um pouco a análise que habitualmente é feita. O que sucedeu foi uma antecipação do que aconteceria daqui a 50 anos. À China competia fazer isto, acelerou o processo, mas o resultado final eventualmente seria sempre este: chamar a si o território, a soberania, a segurança. Tudo isto está a suceder em conformidade com o poder central. Provavelmente daqui a 30 anos o poder central poderia não ser o mesmo.  

 
Não via outro rumo para o poder central?  

Carlos Piteira – É óbvio que há aqui um processo de entronização, o que é às vezes habitual em sociedades mais autocráticas, precisamente porque há uma necessidade de massificar ou unificar em torno do partido – o partido único – aquilo que são os bons resultados da China. Ou seja, alguém tem de merecer esta situação de reconhecimento da China como grande potência. Há uma vontade de entronização em torno de um líder, em torno daquilo que é recuperar…, porque a questão da China, muitas vezes, é a questão ideológica e esta ainda lá está, quer queiramos quer não. Não é só economia. Há ideologia e em torno da ideologia aquilo que são os valores de uma nação, de uma civilização, que nunca desapareceu. Calhou a Xi Jinping, como podia ter calhado ao anterior ou ao sucessor. Eu diria que esta necessidade de recentralização do império ou da potência era quase inevitável. E mais uma vez a questão aqui é se ela é gradual ou repentina.  

Ao fim de 20 anos, o Fórum Macau está tomado pela China na faixa e na rota

 
Como olha para o facto de ser repentina?  

Carlos Piteira – Há duas situações a ter em conta. Uma é do ponto de vista global, de se posicionar como potência mundial, com as faixas, as rotas e nomeadamente com o discurso já de quase que também de divulgação daquilo que é o eixo cultural, tecnológico. E esse está a correr naturalmente, não teve rutura, porque é o processo natural. Em relação às RAEs, a precipitação foram os acontecimentos de Hong Kong, ou seja, há aqui um elemento estranho que, de repente, é introduzido por uma minoria do ponto de vista global – e que poderia ser uma maioria do ponto de vista regional – em que as pessoas se sublevam, porque já têm elementos diferenciados de uma classe média chinesa. E talvez por tradição daquilo que é a participação da sociedade civil em Hong Kong, que é muito diferente da de Macau nesse ponto de vista, a população resolve contestar. Repare que houve um período em que o poder local e central foi permitindo, até porque Hong Kong e Macau sempre foram laboratórios interessantes para a China, do ponto de vista de lidar com situações novas. E aquilo foi-se estendendo, até haver alguma perceção de intromissão de forças estrangeiras. Quando começa a haver essa ameaça, a China atua e faz o seu papel.  A lógica de uma intervenção para alterar substantivamente os modos de vida em Hong Kong tem que ser forçada e tem de ser colateralmente deslocada para Macau e que lhe vai permitir depois também quase estender isto a Taiwan. Por isso é que a questão de Taiwan vem novamente ao de cima com mais força.  

 
Em Macau, temos os casos das instruções patrióticas dadas aos jornalistas do canal português da Teledifusão de Macau e da desqualificação dos deputados pró-democracia na corrida às legislativas. 

Carlos Piteira – Esse é o retrato que nós não gostaríamos de ver em Macau num tempo tão curto. Provavelmente estaríamos com essas condições eventualmente com introdução de pequenas medidas que fossem castrando quer a opinião, mas talvez de uma forma mais sábia: em que os valores eram introduzidos e os valores é que alteravam depois a sociedade. Isso era um pouco aquilo que já estava, que era a tentativa de reconfigurar os valores orientais, da China. Agora, a questão que eu coloco do ponto de vista da reflexão é a diplomacia portuguesa.  

Anda coxa?  

Carlos Piteira – Há uma declaração conjunta de 50 anos e isso quer dizer que se um lado tem de fazer coisas, o outro também. O que se estava aqui a pedir é uma diplomacia no sentido de Portugal intervir na sociedade macaense. Devia haver uma estratégia da preservação e manutenção da comunidade portuguesa e dos valores portugueses. Esta é que é a questão central. Provavelmente, hoje, perante esses acontecimentos ou daqui a 50 anos, daria equilíbrio à dupla presença em Macau que é o que lhe dá singularidade, e aqui é que é a grande falha. 

Porquê?  

Carlos Piteira – Macau sempre foi visto em Portugal como algo que seria bom para ir e voltar, ou como a árvore das patacas, ou então para fazermos alguma figura da diplomacia política, ou seja, para ir lá no mês de Junho, dizer que temos muito boas relações e assinar uns tratados.  

O Fórum Macau: os primeiros dez anos exigiam e tinham as portas todas para uma presença forte de Portugal. Ao fim de 20 anos, o Fórum Macau está tomado pela China na faixa e na rota…. E o que é que nós fizemos para que naquela situação mantivéssemos uma estratégia, um legado, uma presença? Pouco ou nada. E estamos a falar naquilo que é a figura mais forte do ponto de vista institucional da possibilidade da presença portuguesa. Eu diria que esta diplomacia por parte do governo português manifesta-se numa ausência completa. Eu não falo em fazer coisas como manter a relação, mas de deixar alicerces. A casa de Portugal nunca teve um subsídio do Governo português. Está viva graças ao Governo da RAEM. 

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Esta falta de estratégia leva a que depois, em alturas em que a comunidade portuguesa se encontre mais vulnerável, o Governo português não intervenha?  

Carlos Piteira – Não intervém. Quando falava há pouco da questão dos macaenses, se o Governo português não auxilia a comunidade portuguesa, o que é que o macaense pode esperar do Governo português? Eu diria que a questão central aqui é até a presença portuguesa, ou seja, a questão central que se coloca em Macau é preservar ou não preservar a manutenção, mas não é dos símbolos, porque esses apagam-se e ficam na memória. 

Eu quase que vejo que o pouco que se vai mantendo é pelo interesse da China, que vai mantendo alguns traços de singularidade, porque isso potencia

Perante as novas circunstâncias políticas, em que posição está o macaense ou a comunidade portuguesa? 

Carlos Piteira – A comunidade portuguesa está órfã. O acompanhamento destas situações em Macau é quase nulo. As pessoas nem refletem sobre esta questão, sobre a continuidade, limitam-se a aceitar que as coisas estão a mudar.  

Eu quase que vejo que o pouco que se vai mantendo é pelo interesse da China, que vai mantendo alguns traços de singularidade, porque isso potencia. Agora, seria interessante ter havido em paralelo uma diplomacia, uma estratégia. Ao fim destes 20 anos, com as novas condições da globalização, a oferta de emprego, as questões tecnológicas, Portugal devia ter enviado em massa jovens portugueses. Com crises económicas, devia ter feito quase que uma campanha no sentido de convidar as pessoas a emigrarem não para os Estados Unidos ou Inglaterra, mas para Macau. Ainda por cima temos aqui instituições como a Delegação Económica e Comercial de Macau, a Fundação Oriente, a Fundação Jorge Álvares, e institutos de investigação, o Instituto do Oriente, [Universidade de] Aveiro, [Universidade de] Coimbra, o Instituto Confúcio, tudo isto uma teia de possibilidades para lançar de uma forma minimamente pensada uma estratégia de invasão, no bom sentido.  

 
E abertura do Governo de Macau?  

Carlos Piteira – Eu diria que era apanhar o Governo de Macau de surpresa. As estratégias também são isto: fazer de surpresa. E eu via esse movimento com algum interesse. E houve. Ao longo destes 20 anos temos um conjunto de movimentos: de empreendedores na imprensa, advogados, algumas empresas tecnológicas, de construção e engenharia. Agora, isto era exponenciado para 10. Nesta altura o que é que Portugal pode fazer para salvaguardar meia dúzia de pessoas que lá estão?   

“A precipitação dos acontecimentos recentes” – escreveu assim num jornal português – levou a que deixasse de escrever opinião para a imprensa portuguesa de Macau. Mais um efeito colateral?  

Carlos Piteira – Eu posicionei-me a tentar dar retratos sobre a dinâmica da transição e os retratos eram bonitos. Eu tinha coisas interessantes para tirar fotografias escritas. Atualmente, com esta alteração, as paisagens que eu procurava na minha escrita desapareceram, porque eu deixei de ter o elemento ambiguidade, de mistura, de haver coisas que eram e não eram, a tal beleza que Macau tinha na minha perspetiva. Deixei de ter matéria-prima. Por outro lado, noto o receio das pessoas falarem comigo, nomeadamente de alguma comunidade chinesa, que era com quem também tinha algum contacto e também da própria comunidade macaense que também recuou um pouco. 

 
Nota uma imprensa portuguesa mais condicionada?  

Carlos Piteira – Sim. Não faço uma análise de conteúdo, mas vou lendo. Noto que não esta desaparecida, mas os temas deixaram de ser interessantes. Para quem cá está, esta é que era a ponte. Muitas vezes, acompanhávamos as notícias de Macau tendo em conta que nos interessávamos sobre esses assuntos sobre a vida dos portugueses, sobre as próprias eleições, e tudo isto se perdeu. Até nas eleições, para além da tal negação dos deputados, deram-se os resultados e ninguém fez análise.  

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Falava há pouco das instituições em Portugal. Ao nível dos estudos da China, como anda o país em relação aos parceiros europeus? 

Carlos Piteira – Diria que há aqui duas amplitudes ao nível da reflexão e da investigação. Uma está completamente absorvida pela rota e pela faixa. O tema dominante é ver o que é que é a rota e a faixa, ver o que está por trás dessa estratégia. 

Prevalece a questão económica.

Carlos Piteira – Sim, muito a questão económica. Depois fazem-se tratados e teses sobre isso. Toda a gente se pronuncia, ora pelo fascínio, ora pela análise mais crítica, que é menor. Agora há a vertente política da questão do partido e da questão de Xi Jinping, mas em todas elas eu diria que são sempre vistas de uma matriz demasiadamente ocidental. Falta-lhes aquilo que é o mergulho na China para perceber também que esta lógica tem a ver com uma lógica civilizacional. Aquilo são heranças do Confúcio, dos mandarinatos, do império. Está-se à espera que a China se democratize de um dia para o outro, que o próprio oriente modifique aquilo que é a sua matriz civilizacional para ser ocidental? Não. E a investigação tem andado muito por essa linha.

Como contrariar isso?

Carlos Piteira – O mergulho civilizacional obriga a que uma boa parte da investigação passe pelo terreno. Não acontece. Hoje em dia, a investigação é muito do clique. Reunir informação não é difícil. Basta a informação disponível, muita dela são estudos que repetem estudos e não é uma informação fiável do ponto de vista de uma vivência ou de uma sensação.

Do ponto de vista da investigação, temos aqui alguma coisa. O Instituto do Oriente tem também essa vocação, tem uma linha sobre a China, mas mais do ponto de vista antropológico do que propriamente das relações internacionais, porque uma boa parte dos investigadores na linha da China, tirando um caso ou outro, são antropólogos. Tem mais a ver com o modo de pensar dos chineses, as migrações, ou seja, são estudos mais centrados na população. Talvez seja isto que tem feito falta na investigação: preocuparmo-nos menos com os tratados, com os acordos, com a imprensa e tentar perceber o modo de pensar dos chineses. Se calhar Macau era um sítio interessantíssimo para se fazer isso.

Começamos a ver o estudo de Macau a ser feito noutras geografias, como é o caso da Universidade de St. Andrews, na Escócia, a lecionar Culturas do Delta do Rio das Pérolas.

Carlos Piteira – Não existe nada disso [aqui].

Que é feito da Macaulogia?

Carlos Piteira – A Macaulogia foi uma experiência que eu participei e que desapareceu, aliás, com mérito para a Fundação Macau – lá está mais uma coisa que vem da China. A Macaulogia era uma tentativa de equiparação à Sinologia. Teve os seus méritos e teve os seus deméritos. O mérito foi que acabou por aglutinar um conjunto de investigadores chineses e depois alguns italianos, franceses. E isso o que é que fez? Fez com que se rescrevesse a história de Macau. Se calhar, muita gente cá ainda não percebeu que a história de Macau está a ser rescrita por investigadores chineses que é a vertente da Macaulogia. Talvez a maior parte dos investigadores continue a ler Macau só do ponto de vista daquilo que nós escrevemos, quando os chineses já têm e eu tive cerca de cinco anos [a trabalhar nessa área] em paralelo e apercebi-me que a história é outra.

Que versão é a mais fiel? 

Carlos Piteira – Estamos hoje a redescobrir factos. Porquê? porque o acesso é outro e as fontes são outras, não é? Mas a história é isto.

Desenterra-se.

Carlos Piteira – Desenterra-se. A evolução da espécie humana, quantas teorias… Aquela velha cronologia do Neandertal, à medida que há uma descoberta de um fóssil, lá vem um elemento novo. É a mesma coisa com Macau, há elementos novos. Eu diria que a história de Macau está novamente a ser reconfigurada. Porquê? Porque há gente chinesa, com acesso a outras fontes, e que tem hipótese, não digo de alterar, mas de complementar. Depois, lá está, a história é ideológica.

Aliás, estão a ser lançados manuais escolares em Macau com o objetivo de reforçar o patriotismo e o sentimento de pertença nacional.

Carlos Piteira – A história, para além da componente dos fatos, tem a componente ideológica, ou seja, a nação constrói-se sobre a história, e as nacionalidades sobre a história e sobre os valores da história. A partir da altura que existe uma história, compete ao poder político apropriar-se e fazer uso dela. Mas isso também nós fazemos cá: [definir] quais são os valores, os heróis, os mitos e transmiti-los na via educativa. Mas essa é a vertente oficial da história. A que eu falo é uma vertente mais académica, de investigação, de abertura e essa, lá está, esse movimento da Macaulogia acho que foi um movimento interessantíssimo, onde nós – portugueses – poderíamos ter feito mais. Poderíamos ter alinhado mais nessa situação e não alinhámos. E ela desaparece por vontade da RAEM. Agora, o espólio está lá. O que é que eles fizeram? Fizeram um acumular de trabalhos, essencialmente de autores chineses, que é tido como oficial. Porquê? Porque há aqui alguma forma do próprio regime ou da RAEM se apropriar de algo que não é a versão dos historiadores portugueses, que não era aquela que lhes interessava.

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