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“Entre os macaenses de Hong Kong cresceu uma fação nacionalista que apoiava Salazar”

Catarina Brites Soares

“A Diáspora Macaense em Hong Kong: Um Século de Deriva Transimperial”, na tradução em português, é assinado por Catherine S. Chan. Historiadora, doutorada pela Universidade de Bristol e professora assistente na Universidade de Macau, debruçou-se sobre as vagas migratórias da comunidade macaense para a antiga colónia britânica. O trabalho permitiu-lhe perceber que a heterogeneidade que a identificava acabou por levar a uma certa cisão e até segregação. As divergências – também consequentes da maior proximidade à cultura britânica ou portuguesa – levaram à criação de distintos grupos. Catherine, que acaba de lançar o livro na Livraria Portuguesa, revela ao PLATAFORMA que quer continuar a estudar os macaenses que se estabeleceram em Hong Kong, agora centrando-se nos que apoiaram a ditadura de Salazar. 

Como surgiu o interesse na comunidade macaense? 

Catherine S.Chan – Este projeto levou quatro a cinco anos a concluir, e começou com a tese de doutoramento. Antes de me dedicar ao estudo dos Macaenses, já tinha interesse na temática relacionada com identidade tendo em conta a minha história. Nasci em Hong Kong, mas cresci em Manila [Filipinas]. Quando voltei a Hong Kong já adolescente, percebi que – ao contrário do que os meus pais sempre me disseram – não era casa. Não falava cantonês e tive de me adaptar à cultura acelerada que caracteriza a cidade. A narrativa dos Macaenses em Hong Kong refletem uma experiência similar. Têm raízes em Macau, alguns foram nascidos e criados em solo estrangeiro, mas acabaram por ter de aprender a adaptar-se a várias culturas e identidades para sobreviver e vingar. 

Diz que “a comunidade macaense é mais complexa do que parece”. Porquê? 

C.S.C – Outros estudos sobre os macaenses em Hong Kong descrevem-nos simplesmente como portugueses ou macaenses, ignorando que uma parte se inglesou pelo facto de viver em território colonial britânico. Alguns deliberadamente, outros porque nasceram em Hong Kong e cresceram numa cidade e cultura diferentes. No livro, identifico diferentes grupos de macaenses de Hong Kong entre 1842, [quando Hong Kong se tornou britânica], até antes da Segunda Guerra Mundial. 

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O que os diferencia? 

C.S.C – Há a primeira geração de migrantes que manteve uma forte ligação a Macau – que podem ser agrupados em função do estatuto social e classe, sendo que os da classe média, como os membros do Club Lusitano, adotaram mais a cultura britânica; os macaenses que nasceram e foram criados em Hong Kong – mais familiarizados com o inglês e que assimilaram várias dimensões da cultura inglesa. Um quarto acabou por se naturalizar cidadão britânico colonial e alguns acabaram a desempenhar funções não oficiais no Conselho Legislativo; e ainda os macaenses que nasceram e cresceram em Macau, e que se mudaram para Hong Kong jovens ou adultos. Estes tendem a identificar-se mais com Macau e a cultura portuguesa do que com a britânica e Hong Kong. Estas diferentes afinidades acabam por se refletir nos distintos grupos sociais que foram criados como o Club Lusitano e a Liga Portuguesa de Hong Kong, a última mais nacionalista na qual a cultura portuguesa tinha primazia. Em finais do século XIX, são vários os artigos publicados em jornais de Hong Kong em língua portuguesa que atacam o Club Lusitano por ser elitista e criar divisões entre os macaenses.  

A segregação pode ser entendida como uma consequência das diferentes ambições coletivas e individuais dos macaenses, o que nos leva à conclusão que a comunidade era diversa e heterogénea 

– Fala de uma certa segregação na comunidade. 

C.S.C – A segregação pode ser entendida como uma consequência das diferentes ambições coletivas e individuais dos macaenses, o que permite concluir que a comunidade era diversa e heterogénea. Os que tinham interesses comuns uniram-se e trabalharam em conjunto para preservar privilégios e lutar por interesses partilhados. Esta postura acabou por causar uma cisão na comunidade.  

Em que difere a comunidade macaense em Macau da de Hong Kong? 

C.S.C – As diferenças não são uma conclusão da investigação, mas aspetos que os próprios macaenses reconhecem. Atendendo ao desenvolvimento de Macau e Hong Kong durante o período colonial, os que estavam na última sentiam-se mais cosmopolitas como comprova o conflito que surgiu na sequência de um evento em homenagem a Camões em 1880, que descambou numa discussão entre os membros do Club Lusitano e os macaenses residentes em Macau. O Club organizou um evento para assinalar os 300 anos da morte do poeta reproduzindo uma iniciativa similar que os Republicanos tinham realizado em Lisboa. Durante o evento, os membros do Club defenderam o Darwinismo, e procuraram convencer os macaenses de que Ciência e o Catolicismo não eram contraditórios. O sucedido provocou um contra-ataque da comunidade e autoridades eclesiásticas em Macau, que se insurgiram contra as alegações do Club Lusitano por meio de sermões nas missas, artigos jornalísticos e panfletos. O Club Lusitano também celebrava as festas britânicas e tocava o hino britânico “God Save the Queen”. Outro aspeto sintomático de como assimilaram as diferentes culturas. Isto é obviamente para ser interpretado como provas relevantes de que a classe média macaense tinha um sentimento de lealdade para com o Governo colonial inglês enquanto viveu em solo britânico. Obviamente que tal não significa que possamos traçar uma linha evidente entre os grupos. Os macaenses em Hong Kong continuaram a ser católicos devotos e alguns eram membros ativos tanto no Club Lusitano como na Liga Portuguesa de Hong Kong nos anos 30. 

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Também refere que a comunidade macaense em Hong Kong acabou por encontrar uma liberdade que não tinha em Macau, onde era controlada. 

C.S.C – Em Macau, o macaense comum estava mais limitado do que controlado. A imprensa era censurada, havia um grupo de oligarcas macaenses que protegia os seus privilégios políticos e económicos através da influência no Leal Senado, e existia um problema de dificuldade de acesso a formação aquando da primeira vaga migratória de macaenses para Hong Kong, em 1840. Em Hong Kong, por sua vez, os macaenses encontraram mais liberdade, não necessariamente porque o Governo britânico era mais liberal – os jornais em língua chinesa e inglesa, por exemplo, eram censurados -, mas porque o Executivo não prestava atenção ou restringia as iniciativas dos macaenses por se tratar de uma comunidade marginal e pequena. Na região vizinha, encontraram oportunidades de formação para os filhos, garantidas primeiro por missionários e depois pelo próprio Governo; e a imprensa em português proliferou entre 1840 e 1860 tendo em conta que os editores, cansados da censura em Macau, encontraram em Hong Kong um novo paraíso para desenvolverem o setor.  

Tem reforçado a ideia de várias filiações políticas, culturais e cívicas. Como eram conciliáveis? 

C.S.C – Os macaenses identificavam-se com mais do que uma identidade, preservaram características da nação portuguesa e adotaram outras da cultura britânica para se estabelecerem em Hong Kong. Podemos recuperar o exemplo do Club Lusitano, que assinalava datas importantes da História de Portugal com eventos que serviam para se aproximarem de altos cargos do Governo colonial britânico. Alguns macaenses, como JP Braga, foram homenageados por ambos os sistemas português e inglês.  

De que forma a história da diáspora reflete a de Macau, Hong Kong e também de Portugal e do Reino Unido? 

C.S.C – Mais do que refletir parte das histórias de Macau, Hong Kong e Portugal mostra a ligação entre os territórios e os impérios britânico e português. Por um lado, os macaenses em Hong Kong mantiveram a ligação a Macau – de onde por vezes provinham os fundos para a realização de atividades culturais relacionadas com a língua e nação portuguesas. Por outro, foi também em Hong Kong que desenvolveram uma nova identidade inglesa o que, para alguns, funcionou como trampolim. Foi assim que vários conseguiram prosseguir os estudos no Reino Unido e, como é o caso da família de Manuel Pereira, transitar da esfera do império português para a do império britânico. Foi através de Hong Kong que esta família passou de comerciantes em Macau a aristocratas no Reino Unido no espaço de um século.  

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Pretende continuar a investigar a comunidade? 

C.S.C – Creio que sim. Quero entender melhor a ligação entre os macaenses de Hong Kong durante o Governo de Salazar. Será interessante perceber como o nacionalismo lusitano emergiu e se desenvolveu em território britânico.  

O que descobriu até agora? 

C.S.C – Entre os macaenses em Hong Kong cresceu uma fação pró-nacionalista que acabou por se traduzir no apoio ao regime de Salazar. A Liga Portuguesa de Hong Kong promoveu o patriotismo na comunidade usando como veículo o jornal que tinha, La Comunidad, que publicava com frequência fotos e outros conteúdos dedicados a Salazar. A comunidade também financiava atos para glorificar a história de Portugal e a grandiosidade do regime salazarista. Numa carta que encontrei na Torre do Tombo em Lisboa, um grupo de macaenses, liderado pelo presidente da Liga Portuguesa de Hong Kong nos anos 1930, pedia ao Governo português que permitisse que lutassem do lado de Portugal na guerra. 

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