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Acima da vulgaridade

João MeloJoão Melo*

No século XI e XII a Península Ibérica compunha-se de vários reinos, condados e ducados. Grosso modo Portugal fundou-se em consequência da ambição do filho de uns condes. O território onde nasceu vivia numa confortável relação de forças, ninguém tinha intenção de as modificar, foi a vontade (que se diz mover montanhas) e ousadia de um indivíduo a pôr tudo em alvoroço. Obviamente que não se consegue nada sem apoios, e além do génio militar teve arte para os conseguir. Ficou conhecido como D. Afonso Henriques, o único rei português que transporta o nome do pai (filho de Henrique), talvez para transmitir a legitimidade do sangue azul ao novo reino. D. Afonso Henriques inventou-se e inventou um país, é assim o paradigma do self made king.

A marca “self made” acompanhou os milhões de anónimos que construíram a gesta lusitana pelo mundo fora, geralmente com poucos recursos mas engenho e ambição de serem alguém. Ao mesmo tempo a ligação do povo a uma ideia de identidade distinta lançada por D. Afonso Henriques e desenvolvida pelos sucessivos reinados contribuiu, por exemplo, para o apoio às causas de D. João I, e D. João IV. Na perspectiva de alguns eméritos pensadores espanhóis a separação dos reinos ibéricos em 1640 é considerada a maior desgraça da sua História. No início das civilizações o rei era não só o chefe do povo como também o representante dos deuses. Com o advento do cristianismo no ocidente, sobretudo depois da coroação de Carlos Magno em 800, os poderes separaram-se e os reis partilharam o seu com o poder temporal da Igreja; perdeu-se o carácter deífico do trono todavia manteve-se o simbolismo paternal. Após a Revolução Francesa as monarquias foram sendo questionadas porém só em 1890, por via do ultimato britânico, a monarquia portuguesa achou-se nas vascas da morte. Em 1910 alguns self made men implantaram a República em Lisboa. No resto do país, em especial fora dos centros urbanos, a mudança de regime aconteceu muito ao género de “meus amigos, sempre foi assim só que a partir de agora passa a ser assado”. Uma alteração tão abrupta não permitiu nas primeiras décadas da República que o povo fizesse o luto da monarquia, de um momento para o outro eliminaram-lhe a figura parental que o governara quase 8 séculos. Um presidente é um de entre nós, eleito para mandar em todos; o rei, tal como um pai, não se escolhe, é.

Os eleitos no fundo são iguais a nós, só pensam neles, não se entendem, e à razão de sucessivas crises financeiras, crises de ordem e autoridade chegou ao fim a Primeira República por intermédio do golpe militar de 1926. É neste contexto que emerge a figura de Salazar, um guia à imagem do que ia sucedendo em outros países europeus com regimes autoritários, um “servidor da nação acima dos interesses particulares”. Foi sem dúvida um político inteligente que percebeu os mecanismos psicológicos do povo, e se manteve 36 anos na chefia do governo por se dedicar em exclusivo à causa pública, não ter vícios, ser modesto, enfim, uma espécie de rei/paizinho virtuoso e poupado. Veio a prosperidade do pós-guerra, as pessoas ganharam desafogo económico, iam recebendo notícias do exterior e da liberdade de escolha, foram perdendo a humildade, e o paizinho sendo paulatinamente desafiado, em particular a partir das colónias; o mundo mudava depressa e a sua imagem cinzenta estagnara noutra era. Após a revolução dos cravos quedámo-nos de novo entregues a líderes “plebeus”, imagine-se a surda acrimónia de uma fatia da população que sente falta de “autoridade”… Tirando Marcelo Rebelo de Sousa, um paizinho sui-generis, a personalidade pós 25 de Abril que mais incorporou a pose real foi Mário Soares. Nunca esquecerei o episódio em que seguia num autocarro com a sua corte e foi mandado parar por um soldado da GNR devido a excesso de velocidade; a maçada de a comitiva do rei ser atrasada por um ser insignificante armado de autoridade só porque enverga uma fardazita levou o monarca a desabafar irritado: “-ó senhor guarda, desapareça!”

Serve este extenso preâmbulo para fundamentar a minha opinião de que no fundo ainda nos sentimos órfãos de uma referência real. Na passada semana, ligada ao caso Rendeiro, surgiu nas notícias a menção a um rei que desconhecia, desta feita o rei dos táxis. No verão, associado ao processo a Luís Filipe Vieira falou-se de um rei dos frangos. Há uns anos em outro processo tinha sido o rei da sucata. Parece que quanto mais plebeu, mais necessidade há de se auto-proclamar rei de qualquer coisa, e estando vazio o espaço de um verdadeiro rei, um self made man ambicioso sente-se tentado a ocupá-lo. Na saudosa Feira Popular de Entrecampos havia o rei das farturas, o rei das enguias, e o rei dos electrodomésticos; também já vi o rei dos plásticos, dos panos, do calçado, dos bolos, do bacalhau, dos tapetes, leitões, cachorros, colchões, chaves, penhoras, praias, etc, etc, e eu próprio apresentei um programa chamado “Os reis da música nacional”. Está visto que o principal exemplo advém… do nosso primeiro rei, é ele o modelo por excelência: “se D. Afonso Henriques inventou ser rei, eu também posso!”

O mito da realeza conserva-se vivo em países que já a tiveram ou naqueles que almejariam tê-la. Nos Estados Unidos encontram-se fantasias reais mormente no mundo do espectáculo, tal como no Brasil onde os mais conhecidos são o rei Pelé, ou o rei Roberto Carlos. Há reis de tudo, na Coreia do Norte subsiste uma exótica monarquia comunista. Um dia conheci um tipo que jogava muito bem matraquilhos e tinha aquele problema na fala similar ao de D. Duarte, trocar os “r”s por “g”s; este tipo anunciava ufano ser o “gay dos matgaquilhos”… Também tomei conhecimento de um mais comedido, ao género de Salazar que nunca pretendeu ser rei mas “teve que ser”. Vi uma carrinha comercial de caixa fechada decorada com cores e símbolos de uma empresa; essa empresa designava-se por um nome e apelido, provavelmente do proprietário, e por baixo do nome, que não recordo, tinha escrito: “considerado o rei das limas repicadas”… Para lá da absurda especificação, o rei das limas simples deve ser outro, este não é rei porque lhe deu na real gana e sim porque foi aclamado pelo povo, ele limitou-se a aceitar.

Toda a gente sabe que hoje em dia os reis verdadeiros são figuras decorativas e os falsos são reis de carnaval, contudo causa-me estranheza a humanidade ainda não ter ultrapassado o estádio infanto-juvenil e precisarmos, seja para o que for, de um cânone de autoridade acima da nossa vulgaridade, quer os adoremos, quer sirvam para lhes atirarmos ovos podres. Espero enganar-me mas penso que a recusa em crescermos e amadurecermos como espécie vai levar-nos a breve trecho a repetirmos o caminho percorrido após a I Guerra Mundial, com consequências bem mais devastadoras.

*Músico e embaixador do PLATAFORMA

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