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Visto de outro ângulo

João MeloJoão Melo*

Histórias imaginárias

“9 E chamou o Senhor Disney a Mickey, e disse-lhe: Onde estás?
10 E ele disse: Ouvi a tua voz soar no jardim, e temi, porque estava nu da cintura para baixo, e escondi-me.
11 E Disney disse: Quem te mostrou que estavas nu da cintura para baixo? Comeste tu da árvore de que te ordenei que não comesses?
12 Então disse Mickey: A Minnie que me deste por companheira, ela me deu da árvore, e comi.
13 E disse o Senhor Disney à Minnie: Por que fizeste isto? E disse a rata: A serpente enganou-me, e eu comi.”

Resumo crítico: o macho é cobarde e não resiste à tentação; mal ou bem a fêmea é pro-activa mas facilmente levada pela língua bífida. Eis a estrutura fundamental de uma tradicional letra de fado.

Só mesmo numa época em que fingíamos não ter trincado o fruto da árvore poderia ter escapado o facto de as personagens principais da Disney andarem nuas da cintura para baixo tal como as das histórias do ursinho Pooh, e o Super Homem de maillot de ballet e cuecas. Se era para lhes dar roupas, porquê deixá-los meio despidos? Por outro lado vivia-se um falso moralismo. A menos que todas as personagens tenham saído de um orfanato, a minha tese é esta: o tio Patinhas namorava a vovó Donalda e tiveram dois filhos, o Donald e o Gansolino. Nenhum foi perfilhado. Devido à idade avançada da vovó o Gansolino padecia de cretinismo tendo sido recambiado para o sítio dela, longe dos olhares da sociedade. Fruto de two night stand com Patacôncio, o maior rival de Patinhas, a vovó teve mais dois filhos, o Peninha e o Gastão. Donald, Peninha e Gastão são efectivamente irmãos de pais diferentes, mas foi-lhes dito que eram primos; pais e mães, nem vestígios. Donald namora com Margarida e tem três sobrinhos; obviamente Huguinho, Zezinho e Luisinho são filhos de Donald e Margarida. Esta também tem três sobrinhas, Lalá, Lelé e Lili que na verdade são suas filhas, o pai é o Gastão; fica explicada a dor de corno entre Donald e Gastão. Passamos para a família murídea e voltamos ao mesmo esquema: Mickey tem dois filhos de Minnie a quem chama sobrinhos, Minnie idem aspas. Sendo um rato, Mickey tem um animal de estimação, Pluto, um cão que anda sobre quatro patas, e o seu melhor amigo é Pateta, um cão que se locomove erecto e fala. Não sei qual dos dois cães saiu mais afortunado. Já os melhores amigos da rata Minnie são a vaca Clarabela e o cavalo Horácio, suspeito que sejam amantes. Pode ser coincidência mas só após existir a relação entre Horácio e Clarabela surgiram várias histórias com póneis mágicos e unicórnios… Hoje não seria necessário esconder todas estas peripécias inter-relacionais, seria simplesmente considerada “uma família moderna”.

O macho dominante. Fred Flintstone tinha olhos com íris e era casado com Wilma que em vez de olhos tinha duas pintas; Barney, o seu melhor amigo, tinha duas pintas em vez de olhos e era casado com Betty que possuía olhos como os de Fred. Cada um dos casais tinha um filho com olhos. Os olhos possuem um gene dominante sobre as pintas ou é legítimo supor que Fred Flintstone seja deveras o pai das duas crianças?

Talvez por ter sido educado num meio urbano sabia em que consistia o João Ratão mas desconhecia o que era a Carochinha. Aliás soube primeiro que uma carocha era uma agarrada ao cavalo antes de saber que também podia ser um insecto.

“A Bela e o Monstro” foi a história que mais me inspirou, transmitia-me a esperança de não morrer solteiro.

Se a história da Gata Borralheira decorresse em Portugal seria fácil ao príncipe descobrir a dona dos sapatos de cristal; era aquela que tinha os pés esfacelados de cortes depois de partir os sapatos a caminhar pela calçada portuguesa.

Papel atirado pela janela: “querido príncipe, escusas de aparecer à minha torre nos próximos 20 anos; o meu pai mandou-me cortar o cabelo à rapazinho. A tua, Rapunzel.”

Por conta dos filtros e ângulos favoráveis o Patinho Feio do passado é agora o cisne do Instagram.

O Homem Aranha nunca teve namorada devido ao temor; se pela troca de fluidos ela ganhasse alguma característica de aranha ele ainda se arriscava a ser comido.

O Príncipe Encantado, Aladino e outras referências do ideal masculino são de facto amantes pífios ao pé do Inspector Gadget.

Esta podia ser do Vilhena… Sempre que o Gepetto saía de casa a mulher fechava-se no quarto com o Pinóquio e ordenava-lhe que mentisse. 

Matt Groening, criador dos “Simpsons”, disse que eles são amarelos porque quando foi hora de escolher a cor de pele para o desenho ele não queria uma cor convencional. Pior sorte teve a sua versão russa no multiverso, Mat Groenov criador dos “Smirnov” que escolheu o lilás: todos os dias é humilhado e espancado.

Apesar da sua experiência cosmopolita Tin Tin viveu num universo triste e assexuado. As raras mulheres que existiam eram velhas chatas, nunca percebi se Milou seria cão ou cadela e, por falar em cadela, a relação mais próxima do jovem repórter era com um velho bêbedo.

Se a Branca de Neve e os sete anões fosse uma história escrita em 2021 o título seria “Pessoa caucasiana e as Sete pessoas sob a condição de nanismo”.

Lucy, personagem de BD da série Charlie Brown, actualmente com 74 anos e Mônica da “Turma da Mônica” de 67, conhecidas agressoras da sua época, encontram-se a cumprir pena pelo espancamento de Charlie Brown e Cebolinha. Pelos vistos é dos carecas que elas gostam mais. 

Presentemente com 59 anos, Calimero foi acusado de violação nos anos 90 pela mais recente activista do movimento “Me Too”, a abelha Maia. Calimero declara-se inocente, alega que a lenga-lenga popularizada então por jovens que descrevia os pormenores do estupro foram todos inventados, e reafirma ser vítima de uma injustiça. 

Histórias reais

Charles Perrault foi o primeiro a mencionar o Capuchinho Vermelho, em 1697. O conto tinha origem nos Alpes e passava algumas imagens muito diferentes das popularizadas pelos Irmãos Grimm em 1812. O começo é igual, a avozinha está muito doente e a mãe manda a Capuchinho a casa dela, avisando-a para não falar com ninguém. O lobo chega primeiro e aqui a história diverge. O lobo matou a avó, cozinhou-a e guardou o sangue num jarro. Disfarçando-se de avó obrigou a Capuchinho a comê-la, foi para a cama e disse para ela se deitar com ele, despiram-se e aí a Capuchinho percebeu não ser a avó; para fugir da cama inventou que precisava de fazer xixi mas o lobo insistiu que fizesse ali mesmo… Há diferentes versões para o final, numas a Capuchinho conseguiu fugir, noutras também foi comida pelo lobo. Portanto reunidos num simples conto usufruímos de assassinato, canibalismo, assédio sexual e chuva dourada. As raízes culturais da CMTV têm séculos.

No conto de Hänsel e Gretel as crianças são abandonadas pelos pais na floresta e não sei se repararam mas aborda o infanticídio e canibalismo. Na Bela Adormecida, quiçá o conto preferido de Bill Cosby, um beijo não consentido é hoje considerado um crime de agressão sexual.

No próximo dia 9 de Novembro será lançada pela DC Comics a revista que mostra na capa o filho de Super Homem, Jon Kent a beijar na boca um repórter japonês. Jon Kent, o novo Super Homem apresenta-se como “bissexual, preocupado com as alterações climáticas e os refugiados”.

Maurício de Souza é o nome de um autor de BD, criador da famosa “Turma da Mônica” e, vá-se lá entender os fios quânticos que tecem a realidade, é também o nome de um jogador brasileiro de voleibol que relativamente à notícia do novo Super Homem publicou no seu Instagram: “ah, é só um desenho, não é nada demais. Vai nessa que vai ver onde vamos parar”. Onde foi ele parar sabe-se: despedido. Segundo a imprensa brasileira o Minas Ténis Clube foi forçado a despedir o atleta por pressão dos patrocinadores. Posteriormente Maurício afirmou “apenas defendi aquilo em que acredito e dei uma opinião. Obrigado a todos os que pensam como eu. Não estou sozinho nesta luta. O que eu não quero é que seja luta: quero que seja opinião”.

A minha opinião: desde que sejamos adultos de plena consciência e respeito pelo outro, que cada um faça o que quiser, não julgo. O novo Super Homem é claramente um produto comercial destinado a um público identificado por estudos de mercado como apetecível em virtude das suas convicções e preferências. Onde é que vamos parar? Já lá fomos parar há muito tempo. Em que difere o aproveitamento comercial da DC Comics dos Irmãos Grimm? É mais reprovável ser bissexual que abusador, assassino ou canibal? Os nossos maiores medos sempre se exploraram da mesma maneira, o que mudou foi a capacidade económica das massas e a variedade de nichos de mercado. Não partilhando a opinião do atleta, partilho no entanto a preocupação com o direito à opinião, se não existisse podia ter sido despedido na minha primeira crónica aqui. Não importa a ideologia, é incrível como as ditaduras, neste caso da moral dominante ou do politicamente correcto condicionam a vida no século XXI. Em vez de se apostar na formação de seres humanos livres e conscientes exploram-se os seus medos, e o resultado que obtemos no presente é a vitória da forma sobre o conteúdo.

Quando era gaiato julgava que o mundo evoluiria para o nível dos Jetsons, afinal está a regredir para o dos Flintstones.

*Músico e embaixador do PLATAFORMA

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