A banalidade do mal

por Filipa Rodrigues
João MeloJoão Melo*

Há 7,8 mil milhões de humanos na Terra, a cada minuto nascem mais 180. A indústria de alimentos para animais de estimação que só na Europa e Estados Unidos factura 55 milhares de milhões de euros calcula existirem 500 milhões de cães e 600 milhões de gatos no mundo. Apesar desta multidão, da companhia do barulho e da presença das luzes que suavizam o medo do escuro, sentimo-nos tão sós como desde o alvor dos tempos. Basta observar a interacção entre pessoas que partilham uma mesa para verificar que através do smartphone estão ali e algures, com todos e com ninguém. Possuímos um potencial transformador mas sentimo-nos vazios por dentro, somos os receptáculos perfeitos para nos tornarmos instrumentos de quem saiba ligar os botões certos, manipulando a informação e as emoções. Desincentiva-se o juízo crítico, criam-se convicções, distribuem-se tarefas, complica-se o sistema de forma a manter-nos ocupados. Não é de hoje, este era o modus operandi do Império Romano em relação ao povo. Simultaneamente penduram uma cenoura à nossa frente para nos focarmos num objectivo que nunca alcançaremos, como por exemplo a imunidade de grupo. Não é de agora, as religiões e ideologias sempre funcionaram desta maneira. Parece que somos incapazes de pensar por nós próprios, de descobrir Deus ou propósitos elevados sem intermediários. Aliás nota-se que quanto mais pessoas há mais se assemelham umas às outras, não porque nasçam iguais mas porque a pressão para se tornarem iguais é maior. Está assim praticamente concluído o processo de nos transformarmos num exército de robots emocionais.

Para lá de eventualmente se tratar de uma guerra de poder pelo controlo da informação, o apagão da passada semana das redes sociais do grupo Zuckerberg (que lhe causou um prejuízo de mais de 5 mil milhões de euros) é uma das últimas chances de meditarmos sobre a dependência. Quem vive dessas redes para contactos ou negócios perdeu na devida escala do seu investimento. A vida é por definição insegura e tendemos a acreditar em quem nos promete segurança, por medo agarramo-nos a tudo, logo somos explorados, levados a pisar a fronteira da dignidade. Um exemplo? Após o 11 de Setembro as autoridades alfandegárias têm legitimidade para nos tirar os sapatos, o cinto, todos os bens que levamos nos bolsos, e 20 anos depois a esta simbólica figura de criminosos acrescentou-se o andar de máscara e o estigma da pestilência, somos obrigados a exibir o “selo” sanitário. Despidos, apalpados, humilhados, picados, o limite para as próximas acções intrusivas a somar às vigentes é a imaginação… Como nos entregamos completamente fornecendo dados pessoais e liberdade em troca do serviço, sentimo-nos atraiçoados quando o acordo é quebrado, mas perdoamos logo que ele se repõe; síndrome de Estocolmo? Migrar para redes alternativas confirma que o apagão serve igualmente para manter a dependência, só muda quem lucra. No sistema financeiro tudo funciona no pressuposto da confiança: os bancos emprestam dinheiro sabendo que se vai pagando, mais importante que pagar tudo de uma vez, assim o devedor permanece acorrentado a uma renda. De onde vem esse dinheiro? Às vezes nem existe, existe é a confiança de que ao tirá-lo de algum lado ele será reposto. O irónico é que quando existe vem da exploração dos meios de produção, ou seja de nós próprios, endividamo-nos em cadeia da base ao topo da pirâmide. E quem está no topo? Cá de baixo não se vê, o que vemos são os que falam a partir de degraus acima dos nossos, e frequentemente nem esses sabem quem está num lugar superior como desconhecem os seus propósitos. Ao limitarem-se a surfar a onda, os que conhecemos navegam na direcção que esta imprime, no fundo não são livres como nenhum de nós é; alguns têm a ilusão de o serem, e mais abaixo todos temos a ilusão de que os de cima são livres, ah o que faríamos com esses milhões, quantos não comprariam imediatamente a carta de alforria do campo de concentração…

Têm acontecido múltiplos apagões nos últimos tempos. Por dificuldades nas fábricas ou outros interesses a produção mundial de chips que se concentra principalmente em Taiwan, Coreia do Sul, Japão e China originou um apagão na produção de automóveis, computadores e inúmeros produtos que são afectados em cascata. A falta de mão d’obra barata motivada pelo Brexit conduziu a um apagão na distribuição de combustíveis na Grã Bretanha. Em Portugal a falta de médicos especialistas nos hospitais públicos já obrigou ao apagão de diversas unidades. A escassez de matérias-primas ameaça apagões em outras áreas da actividade económica nomeadamente o sector agro-alimentar e o têxtil. A insuficiente produção de gás natural em função das necessidades prenuncia um apagão no próximo inverno com nefastas consequências na Europa; a China está a reservar a sua compra a preços que são proibitivos para a maior parte dos países. Depois dos laboratórios os produtores de gás vão ganhar fortunas e não haverá uma cara de totó vendido como a do Zuckerberg ou um vil nazi para apontar o dedo. Será culpa da China, da Rússia, dos árabes, da Nova Ordem?… O apagão das redes sociais no geral ficou-se por um desagradável incómodo porque ainda vamos tendo o essencial. Entretanto todos os apagões exteriores que nos limitam a vida vão reforçando o pior de todos, o interior, o do bom senso e juízo crítico. Têm-nos vindo a inculcar a noção de todos sermos mais ou menos criminosos num mundo em estado de sítio, até a natureza contribui para isso. Quando for altura de suprimir liberdades e soltar a violência estaremos, sem o saber, preparados para sermos agentes do terror. Assiste-se a um generalizado recrudescimento do ódio, de simplista culpabilização do outro seja pelo que é ou representa; se o ódio fermenta por dentro só precisamos de um motivo para o expelir, e motivos não faltam todos os dias, um déjà vu com 90 anos. Mergulhados neste caldo inquinado um apagão virtual deixa-nos à beira de um ataque de nervos, contudo se a produção energética paralisar, e sobretudo se atingir necessidades básicas como a alimentação, o ar ou a água, aí meus amigos, não é difícil prever o desfecho: foi um prazer, até sempre.

*Músico e embaixador do PLATAFORMA

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