“Contratação a tempo parcial é benéfica e necessária”

por Guilherme Rego
Filipa Caeiros Rodrigues

A redução do tempo de trabalho e dos direitos de muitos trabalhadores, em tempo de pandemia, reabre a discussão sobre a regulamentação da contratação do trabalho a tempo parcial. Está prevista na lei, mas arrasta-se sem solução e nada avançou desde a consulta pública em 2017. Icília Berenguel, advogada no escritório C&C Advogados, acredita que “não há má vontade do Governo”; antes a “dificuldade de compatibilizar os interesses que se visa defender”. Pode ser que a pandemia traga de volta uma urgência… Mas quando a regulamentação chegar, vai ser só para os trabalhadores residentes. 

– Porque acha que nunca avançou a lei que pretendia regular o trabalho a tempo parcial? 
Icília Berenguel – De facto, a preocupação em regular a contratação em regime de trabalho a tempo parcial já vem desde 2007, com os trabalhos preparatórios daquela que é hoje a Lei 7/2008. Começa logo por não fazer a exclusão da aplicação do trabalho a tempo parcial; depois, prevê no artigo 15º, n.º 5, que diz respeito à duração do trabalho, que “os trabalhadores contratados a tempo parcial não devem prestar serviço mais de 96 horas por cada quatro semanas consecutivas”. Estipula ainda algumas regras, nomeadamente ao referir que “aos trabalhadores em regime de trabalho a tempo parcial não é permitida em qualquer circunstância a prestação de trabalho extraordinário”. Em tudo o resto: férias, trabalho por turnos, licença de maternidade, etc., há sempre menção aos “trabalhadores em regime de trabalho a tempo inteiro”. Ou seja, excluindo todos os outros.  

Contudo, na primeira proposta levada a discussão (18 de julho de 2008), encontramos o desenquadramento do contrato a tempo parcial, quando especificamente se diz que é regulado por legislação especial. Parece que, inicialmente, houve vontade da Assembleia Legislativa criar regulamentação específica nesta matéria. O que, entretanto, aconteceu não sei; sabemos que estariam na altura a iniciar os trabalhos preparatórios para a lei de contratação de trabalhadores não residentes e, por ventura, terá havido a necessidade de concretizarem melhor os termos dessa regulamentação. Certo é que tivemos a consulta pública em 2017, mas a lei não foi para a frente.  

Leia mais sobre o assunto em: Trabalho a tempo parcial é “uma lacuna legislativa”

– Entretanto surge em 2017 uma proposta de lei sobre esta matéria… 
I.B. – Não chegou a haver uma proposta concreta. Houve uma primeira apresentação, nota justificativa inicial, para discussão pública. Não há um critério, uma especificação concreta de artigos, o que se irá regulamentar. Há a discussão de preocupações com a necessidade da regulamentar o tempo parcial.  

– Podemos concluir que estariam a pensar em exclusivo nos trabalhadores residentes, uma vez que os não residentes são abrangidos também por regulamentação especial? 
I.B. – Quere-me parecer que sim. A ser regulamentada a contratação a tempo parcial, muito provavelmente não irá abranger os trabalhadores não residentes. A não ser que se proceda a alterações muito profundas à Lei da contratação dos trabalhadores não residentes. Até por uma questão de princípio: a contratação de não residentes visa colmatar a ausência de trabalhadores locais. E facultar-se a possibilidade dos não residentes ocuparem postos de trabalho a tempo parcial, não me parece exequível. 

– Não tendo avançado a regulamentação do tempo parcial, como se regem hoje esses contratos? 
I.B. – O que se tem feito é aplicar a lei geral, no sentido de se fazerem cumprir direitos e obrigações de trabalhadores e empregadores. Obviamente, nem todas as circunstâncias estão devidamente acauteladas. Refira-se, a propósito, que as decisões judiciais até agora proferidas acabam muitas vezes por ser contraditórias, resolvendo situações caso a caso.  Um juiz pode até determinar que um trabalhador tem direito a um determinado montante por trabalho realizado em feriados obrigatórios; mas não será aplicável à entidade empregadora a sanção por violação desse pagamento – porque não é aplicável.  

Em termos gerais, todas as situações de dúvida ou conflito entre as partes que advêm de contratos de trabalho a tempo parcial, mas que não resultam em disputas judiciais, acabam solucionadas pelo próprio contrato, que limita e define as relações laborais. 

– Quais os aspetos positivos e negativos que sobressaíram da discussão pública? 
I.B. – Na minha humilde opinião, do que tenho lido e experienciado profissionalmente, parece-me que não é de todo má vontade do Governo. Acho é que há falta de conformidade dos interesses que têm de ser acautelados. Além disso, creio que existe o receio de criar uma contratação precária, quando se quer evitar isso ao máximo. 

A contratação a tempo parcial é de todo benéfica, e necessária, porque permite maior flexibilidade, seja no mercado empresarial seja no da mão de obra. Em Macau, hás muitas pessoas desempregadas que, se existisse regulamentação do tempo parcial, se calhar estariam a trabalhar. Por exemplo, mães que o foram há pouco tempo e querem dedicar-se aos filhos; pessoas com familiares que precisam de cuidados, ou que têm determinada ocupação, mas poderiam contribuir numa outra empresa a tempo parcial. Tudo isso parece-me benéfico. Falta é acertar os interesses que se visa proteger e compatibilizá-los com a lei geral, no sentido de beneficiar tanto os trabalhadores como entidades empregadoras.  

O tema é atual, porque em tempos de pandemia muitas pessoas viram os seus contratos de trabalho reduzidos a tempo parcial. De facto, há redução dos direitos dos trabalhadores legitimada pela pandemia, mas também situações não legítimas, com a desculpa da pandemia. E é claro que esses trabalhadores têm direito a ver as suas relações contratuais protegidas. O que me parece é que não se tem feito transparecer o suficiente a necessidade desta regulamentação. Neste contexto pandémico, talvez se volte a falar dessa necessidade. 

Consulte o relatório final da consulta pública

– A Lei estabelece que o trabalho a tempo inteiro não pode exceder 48 horas semanais. Dada a falta de um enquadramento legal, os contratos com duração inferior podem ser considerados a tempo parcial? 
I.B. – Não, até porque existe em Macau o regime de “prestação de trabalho por tarefa, objetivo, ou por horas”. Não me parece líquido que se possa enquadrar imediatamente como trabalho a tempo parcial, até porque existem outros requisitos. Embora uma pessoa trabalhe menos horas, não significa automaticamente que esteja enquadrada num contrato de trabalho a tempo parcial.  

À semelhança do que acontece noutras jurisdições, entende-se que trabalho a tempo parcial é executado num certo número de horas por semana. Na eventualidade de se verificar um número superior a essas horas, converte-se em trabalho a tempo inteiro, mas não me parece que o contrário possa ser imediatamente entendido. Há efetivamente decisões judiciais nessa direção. Houve um caso de um contrato de trabalho designado a tempo inteiro, e dadas as características do trabalho, em função das horas e de outros requisitos, o tribunal entendeu que poderíamos estar perante um contrato a tempo parcial. No entanto, apenas o requisito do número de horas não parece ser suficiente para caracterizar um trabalho de tempo parcial ou inteiro. 

– Em processos judiciais envolvendo trabalhadores a tempo parcial existem decisões contraditórias, nomeadamente no que respeita a férias, licença de maternidade ou doença. Há juízes que entendem que os direitos dos trabalhadores a tempo inteiro se aplicam de forma proporcional ao tempo parcial; outros entendem que esses direitos não se aplicam de todo. Já representou algum trabalhador nessa situação? 
I.B. – Não. Temos observado uma certa coerência nas decisões proferidas nos processos em que interviemos, mas tenho efetivamente conhecimento de situações com decisões contraditórias. Para mim, com base naquilo que li, referem-se a pequenas nuances aplicáveis a casos em concreto. Por exemplo: há decisões judiciais em que é concedido o direito a férias; e outras onde esse direito não é concedido. Obviamente, se um trabalho possui três empregos a tempo parcial, entende o tribunal que não deve ser concedido o direito a férias. Mas se um trabalhador tem um único trabalho a tempo parcial, deverá ter direito a férias na medida proporcional. 

Relativamente às licenças de maternidade, não existem muitas decisões. Nessa matéria, o entendimento vem no sentido de se reconhecer o direito à licença de maternidade, em determinados casos, não remunerada. 

– A falta de enquadramento legal pode dar azo a aproveitamento por parte de algumas entidades patronais? 
I.B. – Não acredito, porque as disputas existentes no trabalho a tempo parcial são as mesmas do trabalho a tempo inteiro. Na maioria das vezes, relativas ao não entendimento entre trabalhador e empregador no que respeita a determinados direitos. Pode ser mais difícil aconchegar esses interesses e evitar abusos porque não há regulamentação. Agora, não acredito que seja propositado; nem por parte dos trabalhadores nem por parte dos empregadores. 

– Um caso prático: Durante a pandemia, muitas pessoas viram os seus contratos revistos e passarem a contratos a tempo parcial, com redução drástica e efetiva de direitos e benefícios. Isso faz sentido? 
I.B. – Certo… Mas temos de ver uma coisa. Temos um artigo (Art. 59º, nº5) no Código de Trabalho que diz que tudo o que é redução de direitos dos trabalhadores tem de ser comunicado à DSAL. Mas não no sentido de se requerer autorização, contrariamente ao que acontece com os trabalhadores não residentes. E tudo o que é feito por acordo é válido… 

Pode perguntar-me se a situação é válida, ou justa – coisas completamente diferentes. Válido é. A partir do momento em que o trabalhador aceita, está escrito e é aceite. Agora, se é justo? Questiono-me: o empregador tinha hipótese de fazer diferente? Não estará, na medida das suas possibilidades, a acautelar os interesses do trabalhador porque ou era esta solução ou o despedimento? Mais vale ter pouco do que não ter nada? É claro que estas situações acabam por cair na consciência de cada um. 

– E este mesmo exercício fora do contexto pandémico? 
I.B. – É exatamente a mesma coisa. A partir do momento em que o trabalhador aceita, a DSAL pouco ou nada tem a dizer. A questão aqui é a liberdade contratual entre as partes onde de facto tudo o que é acordado e escrito passa a ser válido. 

Há quem defenda que a DSAL protege os trabalhadores e deixa as entidades empregadoras de fora. De acordo com a experiência que tenho, ao longo de já alguns anos, sou da opinião que a DSAL tem tido uma posição muito justa e louvável. Tenta ao máximo compatibilizar os interesses de ambas as partes; é conciliadora e tenta ser justa, indo por medidas proporcionais, mesmo em situações de contratos a tempo parcial que não estão reguladas.  

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