Trabalho a tempo parcial é “uma lacuna legislativa”

por Filipa Rodrigues
Filipa Caeiros Rodrigues e Guilherme Rego

A Lei das Relações de Trabalho prevê um regime especial para a legislação de trabalho a tempo parcial. Contudo, apesar da consulta pública lançada em 2017, a regulamentação nunca avançou – nem dela há notícia

A redução do tempo de trabalho e dos direitos de muitos trabalhadores, em tempo de pandemia, reabre a discussão sobre essa “lacuna legislativa” que levanta uma série de problemas, nomeadamente “nas questões das contravenções laborais”, explica Helena Nazaré Valente, advogada do escritório Rato, Ling, Lei & Cortés. E o trabalho a tempo parcial é uma lacuna legislativa.

Na Lei das Relações de Trabalho, a alínea 3), do n.º3 do artigo 3.º, refere que “a presente lei não é aplicável” ao “trabalho a tempo parcial”, dando a entender que este será legislado em regime especial. No entanto, essa regulamentação não existe. “A lei das relações laborais diz especificamente que não se aplica no trabalho a tempo parcial e que essa legislação será feita à parte, em regime especial.

Um dos problemas desta lacuna legislativa reflete-se nas questões das contravenções laborais, que foram pensadas para contratos de trabalhadores a tempo inteiro e não se podem aplicar aos contratos a tempo parcial”, explica Helena. Um acórdão emitido pelo Tribunal de Segunda Instância da RAEM demonstra o problema: no Tribunal Judicial de Base, o Instituto A foi foi condenado pela prática de uma contravenção (por negação parcial do direito da trabalhadora à remuneração de base). No recurso, o Tribunal de Segunda Instância aponta para “a existência de uma relação de trabalho a tempo parcial, à qual não é aplicável o regime sancionatório contravencial previsto nessa Lei (cfr. o art. 3º., alínea 3), que reza que o trabalho a tempo parcial é regulado por legislação especial)”. Assim sendo, “é de absolver o recorrente da imputada contravenção laboral em causa”.

“A legislação penal está tipificada e só se aplica a esses casos específicos”, diz a advogada, que também aponta a falta de consenso nas decisões dos tribunais, que “vão em sentidos opostos”, nomeadamente nos direitos destes trabalhadores: “têm direito a férias? O que é o trabalho extraordinário? Como é pago? Há decisões que entendem que os direitos se aplicam proporcionalmente, e outras que não”.

O PLATAFORMA teve acesso a um contrato específico de uma trabalhadora a tempo parcial. A fonte queixa-se de que o seu salário foi reduzido desproporcionalmente e perdeu os benefícios aos quais tinha direito quando optou por trabalhar menos um dia por semana (trabalhava oito horas/seis dias,). Com o novo contrato trabalha agora 40 horas semanais, divididas igualmente nos cinco dias da semana, mas perdeu as férias remuneradas e o direito a licença por doença paga, bem como o seguro de saúde.

De acordo com os dados a que o jornal teve acesso, o salário foi reduzido cerca de 32 por cento e a carga horária em apenas 16 por cento, sem diminuição de responsabilidades do cargo. “Não faz sentido nenhum”, assevera a advogada. “Se uma pessoa assina esse contrato, o que acontece é que a Lei das Relações de Trabalho não se aplica. Portanto, o que é que se aplica? A verdade é que se parte do pressuposto que o contrato foi feito entre duas partes. E se é feito entre duas partes, em bom rigor, podemos estabelecer qualquer coisa”, conclui.

Questionada sobre o facto desta lacuna legislativa poder dar azo a explorações por parte do empregador, Helena está certa que isso poderá acontecer. “A grande fatia dos trabalhadores de Macau são trabalhadores não residentes (TNR). Portanto, faria sentido que também pudessem trabalhar a tempo parcial; por outro lado, para estarem incluídos neste regime, teria de haver dois empregadores envolvidos. Não é possível um TNR ter dois empregadores. Iam colocar-se outras questões como, por exemplo, quem paga o alojamento ou quem paga o repatriamento”, afirma.

Entre 25 de setembro a 8 de novembro de 2017 deu-se o período de consulta pública sobre a “Alteração da Lei n.o 7/2008-Lei das Relações de Trabalho” e “Estabelecimento do Regime de Trabalho a Tempo Parcial”. A consulta pública referente à proposta de lei do salário mínimo foi feita entre 13 de novembro e 27 de dezembro do mesmo ano e, a 16 de abril de 2020, foi aprovada pela Assembleia Legislativa de Macau. No entanto, o trabalho a tempo parcial continua sem avanços. “Não sei porque é que a proposta não avançou”, comenta Helena Valente, acrescentando que, se tivesse seguido em frente, “a revisão teria de ser bastante mais alargada”, estendendo-se aos TNR.

Apesar disso, a advogada enfatiza que a proposta “não foi totalmente mal feita” e fez “uma boa análise” das situações de Portugal, China, Taiwan e Malásia. “No fundo, tenta estabelecer alguns limites, o que já ajuda. Seria melhor do que não ter nada, que é o que existe neste momento. Não protegendo muito os trabalhadores, impunha alguns limites aos empregadores.

Claro que depois tem outras coisas que são absolutamente incompreensíveis como a licença por doença ou de maternidade não remuneradas, ou seja, uma pessoa que trabalhe a tempo parcial não pode ficar doente ou grávida. Se tivesse avançado, acredito que esses aspetos fossem revistos e corrigidos. Por agora, indo a tribunal, cada um aplica mais ou menos o que entende. É uma carta fechada”, lamenta.

DSAL “não distingue” trabalho a tempo inteiro do parcial

Em resposta ao PLATAFORMA, a Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais revela que, após a divulgação do “Relatório Final da Consulta sobre o Estabelecimento do Regime de Trabalho a Tempo Parcial”, em 2018, foram realizados vários debates e emitidos vários pareceres acerca da proposta de lei, pelos representantes dos empregadores e dos trabalhadores do Conselho Permanente de Concertação Social (CPCS). Contudo, remeteu-se a proposta para o CPCS, sob pretexto de ser necessário realizar mais discussões sobre o tema.

Durante as reuniões realizadas pela Comissão, continuaram a existir divergências significativas do ponto de vista dos representantes de ambas as partes, pelo que se propõe nova apreciação, assim que a situação pandémica e económica da cidade o permita.

Sobre às queixas de trabalhadores a tempo parcial relativamente a abusos por parte do empregador, a DSAL garante que “não distingue os trabalhadores como sendo a tempo inteiro ou a tempo parcial”.

Relativamente às estatísticas dos aludidos casos, entre 2017 e 2020, foram abertos em média cerca de 1695 processos por ano. Entre janeiro e julho de 2021, foram abertos 984 processos, envolvendo 1632 trabalhadores. A remuneração, indemnizações por despedimentos e a suspensão do trabalho são os assuntos principais das queixas. Nas situações em que o trabalhador descobre que os seus direitos e interesses laborais estão a ser prejudicados ou quando existe algum conflito laboral, pode dirigir- se à DSAL para solicitar informações ou apresentar queixa. No momento do recebimento e do tratamento de cada caso de conflito laboral, a DSAL investiga e instruí de forma justa, procedendo à conciliação segundo o pressuposto da garantia dos direitos e interesses de ambas as partes, protegendo os legítimos direitos e interesses dos trabalhadores, nos termos da lei. Caso haja situações de infração à lei, as mesmas serão processadas e acompanhadas segundo as competências desta Direcção de Serviços.

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Publicação da entrevista da advogada Icília Berenguel ao PLATAFORMA (do escritório C&C), sobre o mesmo tema, na próxima edição.

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