Mais um estabelecimento a fechar portas, e uma comunidade a pedir ajuda

por Filipa Rodrigues
Catarina Domingues

A falta de turistas e o regresso de milhares de nacionais filipinos desempregados ao país natal deixou vários negócios na Pinoy Street sem clientes e sem meios para continuarem de portas abertas. Comerciantes de lojas vazias, com a vida suspensa, veem-se obrigados a despedir funcionários

Não há muito tempo, a loja de conveniência de Rosemarie Aquino ocupava o número 147 da rua da Alfândega. A pandemia obrigou-a a transferir o negócio para um espaço ali perto, a menos de metade do preço, num novo golpe a atingir o já debilitado corpo de estabelecimentos comerciais que ergueu nas últimas duas décadas. O primeiro negócio de todos, uma agência de viagens, foi o primeiro a encerrar. Seguiu-se o salão de cabeleireiro. O restaurante filipino Lutong Bahay – Chinoy Express abre agora as portas só à tarde, das quatro à uma da manhã. São três e picos. Um dos fornecedores de Rosemarie atira um “ga yao” ao despedir-se, numa clara manifestação de apoio à empresária, residente em Macau desde 1995.

“Dá-lhe gás” é a tradução literal desta expressão local, que se diz ter origem nos anos 60 do século passado, no Grande Prémio de Macau. Era então utilizada para encorajar pilotos e equipas, mas ganhou notoriedade internacional mais recentemente, em 2014, com o movimento pró-democracia de Hong Kong, Umbrella Revolution.

Rosemarie bem precisa dessa força. A crise levou-lhe a freguesia. Com a imposição de medidas de contenção da pandemia e um abalo económico sem precedentes a agitar Macau – o Produto Interno Bruto em 2020 registou uma contração de 56,3 por cento – milhares de trabalhadores não residentes (TNR) perderam o emprego e viram-se obrigados a regressar a casa.

Restaurante Lutong Bahay – Chinoy Express

“Muitos filipinos estão a ser repatriados e eles eram o grosso dos nossos clientes”, diz a empresária, que emprega agora apenas trabalhadores locais. “Eles (governo) cortaram os blue cards [documento dos TNR em Macau], porque diziam que havia muitos locais sem trabalho”.

Rosemarie resiste. O fornecedor, que acabou de sair, abateu dez por cento no preço final da encomenda. “Senão ninguém compra e não escoam a produção”, realça a comerciante. Rosemarie mudou, além disso, o horário de funcionamento, porque é ao fim do dia que aparecem mais clientes no Lutong Bahay. “Somos simples filipinos, estamos todos a lutar, então achei melhor cortar no horário e quem quiser tomar o pequeno-almoço pode apoiar outros comerciantes”.

Governo quer “ver-se livre de TNR estrangeiros”

Desde o início da pandemia, 4397 filipinos a trabalhar em Macau regressaram a casa em 22 voos de repatriamento, num programa coordenado pela representação consular de Manila no território. Mas o número de nacionais que ficaram sem emprego, na sequência da crise gerada pela covid-19, é superior, garante a presidente da Associação Laboral Progressista dos Trabalhadores Domésticos.

“Há pelo menos mais um milhar de pessoas. Todos os dias alguém perde o emprego”, nota Jassy Santos, defendendo mais assistência do governo local a esta comunidade “que também contribui para o fluir da economia de Macau”.

Jassy Santos, presidente da Associação Laboral Progressista dos Trabalhadores Domésticos.

Domingo, 19 de setembro. Associações filipinas juntam-se para assinalar o Dia Internacional da Limpeza Costeira, celebrado um dia antes. O PLATAFORMA fala com Jassy Santos no pequeno jardim da Avenida Panorâmica do Lago Sai Van, onde um grupo de cerca de duas dezenas de pessoas se prepara para recolher lixo marinho junto à Torre de Macau. Entre os promotores da iniciativa, encontra-se Benedicta Palcon, representante da Greens Philippines Migrant Workers Union e voz habitual na reivindicação de direitos para a classe trabalhadora filipina.

Palcon acusa o executivo local de aproveitar o momento da pandemia para “ver-se livre dos trabalhadores TNR estrangeiros”: “Penso que querem contratar nacionais chineses”.

Já o Cônsul-Geral das Filipinas em Macau nega quaisquer pressões exercidas pelas autoridades locais para a saída de membros desta comunidade. “Nas minhas conversas com o Chefe do Executivo, ele mencionou que não há pressão. Existe, claro, a Lei Básica e tem de ser seguida”, salienta Porfirio Mayo Jr. em entrevista a este jornal.

Já no que diz respeito à crise que os empresários filipinos estão a enfrentar, o diplomata considera que esta é “uma economia impulsionada pela procura” e que está “a afetar todos” em Macau. Em termos de apoio financeiro, Manila está “muito pressionada” com o apoio concedido além-fronteiras. “Também estamos, claro, a pagar um preço muito elevado na nossa economia com as operações de repatriamento, além das necessidades básicas que temos de atentar nas Filipinas. Estamos de mãos atadas”.

Cônsul-Geral das Filipinas em Macau, Porfirio Mayo Jr.

A comunidade filipina em Macau é, nesta pandemia, a parte mais fraca? “Sim, é”, assume Benedicta. “O que é que acha?”, responde Jassy com outra pergunta. E o que é necessário fazer? Benedicta volta à conversa: “Precisamos de proteção no trabalho, na saúde!” Benedicta e Jassy são empregadas domésticas, classe profissional que não é elegível ao salário mínimo de Macau, fixado em 6.656 patacas mensais.

“Querem fazer um contrato a cada três meses, o que é muito injusto”

Rua dos Cules. É aí que começa a chamada Pinoy (filipino) street, uma área dominada pelo comércio deste país do Sudeste Asiático, que se estende ao longo da rua da Alfândega e atravessa a rua e calçada do Gamboa, no centro de Macau.

O tráfico dos cules (chineses enviados para trabalhar noutros países em condições de escravatura), intermediado durante anos por Macau, prosperou a partir de finais da primeira metade do século XIX e ficou consagrado, ainda durante a administração portuguesa, na toponímia da cidade. Isto apesar da narrativa desta “dissimulação traidora da escravatura” – assim lhe chamou Eça de Queiroz – não chegar hoje às várias comunidades da mesma forma: numa tradução livre do chinês, esta é a “rua que leva ao céu” (天通街). Cules era, além disso, a designação atribuída aos trabalhadores assalariados que executavam localmente trabalho braçal, como carregar bagagens.

Início da Rua dos Cules, também conhecida como rua dos filipinos ou “Pinoy Street”.

Rita Leong tem uma vaga ideia do que se fala. “Eram pessoas que trabalhavam no duro”, lança a proprietária da mercearia Leong Chio Kei, número 1 da Rua dos Cules. “Agora é a rua dos filipinos”, remata.

Desse episódio negro da história não restam por aqui recordações físicas, nem mesmo dos velhos barracões, depósitos onde eram mantidos os trabalhadores até embarcarem para o novo mundo. Mas a imagem de lojas esvaziadas, de portas de aço puxadas para baixo ou de ruas com menos pessoas sinalizam para muitos comerciantes filipinos o início de uma espinhosa viagem.

Susan Cenon não aguenta nem mais um ano como este. Perdeu o marido. Herdou da pandemia prejuízos de seis dígitos. Ainda em 2017, por ocasião do Dia Internacional da Mulher, esta sexagenária, em Macau há mais de três décadas, recebia das mãos da antiga cônsul-geral das Filipinas o “Prémio de empresária de exceção”. Agora, está prestes a encerrar o Kara Flower Mart e a despedir duas funcionárias. “Estou entre supermercados gigantes. É uma loucura porque me estão a engolir”, diz a empresária, do outro lado do balcão da mercearia. Ao lado, uma estátua de Jesus Cristo, uma foto de família.

Susan Cenon, dona do Kara Flower Mart.

Susan não tem mais como pagar as 22 mil patacas de renda mensal e vai fechar as portas já no início de outubro. O senhorio ainda se ofereceu para baixar para 17 mil, mas a filipina, também proprietária de um salão de beleza, só ficava por metade do preço. “Além disso, querem fazer um contrato a cada três meses, o que é muito injusto. Não sou blue card, sou residente, conheço bem a lei, mas eles são muito gananciosos”.

Entreajuda e diversificação para escapar à crise

Histórias como as de Susan e de Rosemarie repetem-se. Sem clientes e com rendas elevadas para pagar, muitos negócios no centro turístico de Macau declararam óbito durante a pandemia. O Ten tea, uma loja de chá com bolinhas de tapioca (bubble tea), originário de Taiwan, dirige-se, sobretudo, a turistas chineses.

Rua da Alfândega.

Com as restrições fronteiriças impostas pelas autoridades locais, Evangeline Li não atende agora mais do que “20 a 30 clientes por dia”. “Há tanta coisa a fechar. Penso que na semana passada foi um restaurante ali, vietnamita, que eu gostava muito”, conta a jovem de Macau. Depois diz que pondera introduzir comida no menu para diversificar o negócio, mas que espera do governo mais apoio, “na forma de empréstimos ou de cartões de consumo [medida lançada durante a crise para apoiar residentes e estimular economia]”.

Mais abaixo, na rua da Alfândega, a Owtel Shop vende produtos eletrónicos. Nem um cliente. Cecilia Santos, ao balcão: “O nosso negócio dirige-se exclusivamente a filipinos e indonésios. Temos planos de prestações, principalmente para telemóveis, e como os filipinos estão a regressar a casa, porque muitas empresas não conseguiram renovar-lhes
os contratos, o negócio caiu”. Nota atrasos no pagamento das prestações? “Um pouco mais com a pandemia”, declara a funcionária, que conta pelo menos sete negócios filipinos fechados nas redondezas.

Ao virar a rua do Gamboa, o Pinoy Street BBQ & Food shop, uma carienderia [estabelecimento de comidas típico filipino] exposta à via pública. À vista, o kare-kare, estufado de tripas de vaca com caldo de amendoim, e o igado, prato de fígado de porco picante, “o nosso bestseller”, diz Ely Estanislao, proprietário do espaço, que trocou Magsaysay, na província filipina de Quirino, por Macau, em 1996. “Agora ando a fazer comida para fora, para festas, aniversários ou casamentos”, afirma o filipino, que leva às costas um negócio “em dificuldades” e o futuro de dois funcionários.

Pinoy Street BBQ & Food shop, uma carienderia [estabelecimento de comidas típico filipino] exposta à via pública. À porta, Ely Estanislao, o proprietário do espaço.

Ely repara que a comunidade não se organizou formalmente, mas que há uma espécie de solidariedade entre os membros. “O que um não consegue fazer, pede ao outro”, explica, referindo-se à partilha de recursos ou de trabalho entre negócios. Também Cecilia Santos, da Owtel Shop, decidiu fazer as refeições por aqui. A ‘Pinoy Street’ é, afinal, casa.

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