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Os 11 tiros que abalaram a comunidade chinesa em São Paulo

Vitor Quintã

A morte do conhecido empresário Zhang Wei chocou os chineses na cidade brasileira de São Paulo. Mas a comunidade há muito sofre com roubos violentos, a maioria sem recorrer a uma polícia na qual não confia, e a situação ainda se agravou mais com a pandemia da covid-19. 

Era uma manhã como todas as outras. Zhang Wei, presidente da Associação Chinesa do Brasil, de 53 anos, saiu de casa bem cedo, para fazer exercício com um amigo num parque no centro de São Paulo, no sudoeste do Brasil. 

Mas nessa manhã a caminhada ficou a meio. Por volta das 7:30, dois homens numa motorizada aproximaram-se do empresário e executaram-no com 11 tiros à queima-roupa – uma dezena nas costas e um no braço – antes de se porem em fuga. 

A violência deste crime chocou os chineses de São Paulo, que, segundo o presidente da Câmara de Comércio e Indústria Brasil-China, Charles Tang, são a quarta maior comunidade estrangeira da cidade, com mais de 300 mil pessoas. 

O Consulado Geral da China em São Paulo exigiu de imediato à polícia local que resolvesse o caso e entregasse os responsáveis à justiça o mais depressa possível. 

Em resposta, o Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa da Polícia Estadual de São Paulo garantiu que o caso era uma prioridade e prometeu manter o consulado informado do progresso da investigação. 

A 29 de abril, a Polícia Estadual anunciou a detenção de quatro homens suspeitos de participar na morte de Zhang Wei, incluindo um outro empresário chinês, Chen Jianping, que alegadamente ordenou a execução. 

Segundo a polícia, câmaras de segurança mostram Chen a dirigir-se a um carro branco junto ao local do crime, na manhã de 6 de abril. Mais tarde, chegam duas pessoas numa motorizada. O pendura desce da mota e entra no carro. Após um breve diálogo, o homem sai do veículo e volta a montar na motorizada. O crime aconteceria pouco depois. 

A Polícia Estadual acredita que o assassinato se deveu a desentendimentos entre Chen Jianping e Zhang Wei, relacionados com negócios conjuntos entre os dois empresários, ambos naturais da província de Zhejiang, no leste da China. 

O Ministério Público pediu a prisão preventiva de Chen, sublinhando que, como cidadão estrangeiro, haveria um “sério risco de fuga”. 

Os tribunais de São Paulo aceitaram, no entanto, um pedido da defesa para que o chinês ficasse em prisão domiciliária, em parte porque Chen é diabético, fazendo assim parte de um grupo de risco para a Covid-19. 

Mas a meio de maio, sem mais novidades sobre o caso, o embaixador da China no Brasil, Yang Wanming, voltou a lembrar o homicídio de Zhang Wei, num encontro com o novo ministro brasileiro da Justiça e Segurança Pública. 

Tang Wei: Chineses “são algo marginalizados, estão relegados à sua sorte e dificilmente vemos alguma política governamental para a sua inserção” 

O diplomata disse a Anderson Torres que a China espera que tanto o Ministério como as forças de segurança de São Paulo “prestem atenção” ao caso e “entreguem os criminosos à justiça o mais depressa possível”. 

“Ponta do icebergue” 

O assassínio de Zhang Wei gerou “uma preocupação generalizada” entre os chineses que vivem no Brasil, disse Yang Wanming a Anderson Torres. Mas este caso é “apenas a ponta do iceberg”, disse ao PLATAFORMA o advogado Tang Wei. 

“Essa sensação de insegurança da comunidade já vem faz muito”, lamenta o diretor jurídico da Associação Chinesa do Brasil. Tal como todos os brasileiros, os chineses são “vítimas da violência urbana”, que é “também um reflexo da situação económica e política”, diz. 

Ainda assim, outras comunidades com uma presença mais antiga no Brasil, como a libanesa e a japonesa, já se conseguiram “misturar” no tecido social do país “sem qualquer barreira de língua ou cultura”, lembra Tang Wei. 

Pelo contrário, o antigo membro do Conselho Municipal de Imigrantes da Prefeitura de São Paulo, admite que os chineses “são algo marginalizados, estão relegados à sua sorte e dificilmente vemos alguma política governamental para a sua inserção”. 

Logo após a morte de Zhang Wei, o Consulado Geral da China em São Paulo pediu à polícia local que adotasse medidas “práticas e eficazes para proteger a vida e os bens dos cidadãos chineses”. 

Zhang Wei, antigo presidente da Associação Chinesa do Brasil, de 53 anos, assasinado a 6 de abril.

Também o ministro Anderson Torres garantiu que iria reforçar a coordenação com as polícias locais para “proteger a segurança, legítimos direitos, interesses das instituições e dos cidadãos chineses no Brasil”. 

A comunidade em São Paulo “não tem contado com as devidas proteções seja da polícia seja de outros órgãos do governo”, diz Tang Wei. Isto apesar da “grande maioria” trabalhar no comércio no centro da cidade, “um dos lugares mais perigosos do mundo”, sublinha. 

Como resultado, os chineses de São Paulo sofrem de uma “alta incidência de roubos violentos”, refere o advogado, muitos dos quais nunca chegam a ser motivo de queixa à polícia. 

Por um lado, os recém-chegados chegam “com pouca instrução, sem falar uma palavra em português, nem conhecer um brasileiro” e por isso “dificilmente conseguem comunicar com a polícia”, explica Tang Wei. 

Por outro lado, os chineses radicados ou já nascidos no Brasil, “numa sociedade onde a corrupção está enraizada em praticamente todos os setores e todas as instituições”, não confiam na polícia, acrescenta o advogado. 

Aliás, dois dos quatro detidos por ligação à morte de Zhang Wei são membros da Polícia Militar (PM) do Brasil. A Polícia Estadual de São Paulo descobriu que o carro branco onde Chen Jianping se encontrou com os alegados atiradores era usado por um cabo da PM. 

Fábio Chao: “Com a pandemia, esses sentimentos anti-China foram liberados pelos brasileiros, eles começaram a falar mais e agora vemos mais claramente o que eles acham” 

Além disso, mesmo em caso de queixa, o mais certo é a investigação não chegar a lado nenhum, lamenta Tang Wei. 

Cerca de 70 por cento dos homicídios registados no Brasil nunca chegam a ser resolvidos, revela um estudo realizado no ano passado pelo Instituto Sou da Paz. 

“Acaba criando essa sensação de que não faz sentido ir à polícia porque não vai resolver nada”, diz Tang Wei. 

Bode expiatório da pandemia 

A 8 de abril, dois dias após a morte de Zhang Wei, o Consulado-Geral da China em São Paulo avisou num comunicado que a situação de segurança pública “continua a deteriorar-se”, devido ao impacto da pandemia da covid-19 e da “instabilidade social”. 

Tang Wei confirma que, olhando os relatos e comentários colocados nos grupos da comunidade chinesa nas redes sociais, a pandemia acabou por também levar a “um aumento do sentimento anti-China” no Brasil. 

Fábio Chao, um jovem brasileiro descendente de chineses, disse ao PLATAFORMA que sempre enfrentou “um sentimento desagradável no Brasil em relação à China, por questões políticas”. A tensão já vinha crescendo com uma maior presença chinesa no mercado brasileiro. 

O também advogado cresceu em Curitiba, capital do Estado de Paraná, no sul do Brasil, onde a comunidade chinesa é pequena, mas os investimentos de multinacionais chinesas têm vindo a crescer. 

“Com a pandemia, esses sentimentos anti-China foram liberados pelos brasileiros, eles começaram a falar mais e agora vemos mais claramente o que eles acham”, lamenta Fábio Chao. “Já estamos acostumados a essa ignorância”, acrescenta. 

Tang Wei aponta “a revolta” do povo brasileiro ao ver mais de 550 mil vidas perdidas devido ao novo coronavírus. O estado de São Paulo mantém a liderança absoluta em número de mortes e casos no Brasil, com mais de 137 mil vítimas mortais. 

“O povo precisa de achar algum culpado, mas em vez de tentar perceber o que aprofundou essa crise sanitária, preferem achar um alvo mais fácil”, lamenta Tang Wei. Ele diz que “grupos com interesses obscuros” têm espalhado rumores, acusando os chineses de “espalhar o vírus”. 

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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