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Cair de podre

João MeloJoão Melo*

Pontos prévios: 1- creio na presunção de inocência até prova em contrário. 2- enquanto cidadão condeno práticas fraudulentas, especialmente as danosas para a comunidade. 3- como sportinguista lamento o que o Benfica está a passar. 4- na qualidade de rival de FCPorto e Benfica as peripécias em torno de Luis Filipe Vieira divertem-me.

Uma coisa é presumir inocência, outra é constatar a desastrada gestão do Benfica nos últimos tempos. Eu sei que se Jorge Jesus tivesse ganho alguma coisa os seus métodos e os de Vieira ficariam mais ou menos caucionados mas correndo mal o destino afecta ambos; e o mais curioso é que tinha tudo para correr mal, no entanto sessenta e tal por cento dos votantes nas últimas eleições deram o aval ao presidente, permitindo-lhe a fuga para a frente. Depois de descartar Jesus em 2015, decidira, e bem, conter custos apostando na prata da casa; ganhou duas Ligas através dessa lógica. Em 2019 dissera numa entrevista que “se estivesse aqui um demagogo qualquer, queria era investir para apresentar uma super equipa, mas imagine-se que aquilo não resultava, a queda era grande”. Estaria ciente do sucedido ao Sporting na era Bruno de Carvalho que sem hipóteses de mascarar os sucessivos falhanços desportivos decidiu fazer um all in de consequências desastrosas? Surpreendentemente foi isso que Vieira fez em 2020. Mas também se entende, o status quo não lhe servia porque o monstro do passado não parava de crescer, extravasando para várias áreas. Fazer o pino afectou-lhe a consciência ou a reputação? Nem por isso, sentia-se respaldado pela grandeza do clube e poderia argumentar com uma daquelas máximas do futebol “o que hoje é verdade amanhã é mentira”. Aproximando-se um acto eleitoral, em Novembro do ano passado mandou a coerência às urtigas numa clara indicação de que pretendia manter-se no poder a qualquer custo, por razões que agora parecem mais claras. Obrigou os benfiquistas a engolir um gigantesco sapo indo buscar Jesus num jacto privado ao Brasil, esbanjou dinheiro como nunca ninguém o fizera em Portugal, e tudo isto, pasme-se num contexto pandémico em que as receitas de bilheteira estavam seriamente ameaçadas. Não falo por não ter funcionado, na altura das eleições quedei-me estupefacto perante a loucura, referi-o aos meus amigos benfiquistas; eis a resposta da maior parte deles: os outros candidatos querem é poleiro, abotoar-se à conta do clube, ao menos este a gente conhece… Como desconheço a concorrência e estava a assistir a uma alucinação colectiva em que o pré-anunciado vencedor estava manifestamente a usar o clube para a sua agenda pessoal restou-me concluir “quo vadis, Benfica?” Ainda sofro com a experiência recente no Sporting em que a ausência de alternativas ligada à alienação levou àquilo que todos sabemos; agora no Benfica assistia a just a little bit of history repeating. É óbvio que no top 2 dos móbeis para presidir a uma instituição deste calibre se encontra o apelo do vil metal, e ao mesmo tempo que presumo a inocência de Vieira centrando o meu juízo na estranha obsessão pela manutenção do cargo, também é impossível não equacionar os motivos. Tal não farei aqui, a justiça que trate disso, fico-me pelas suspeitas e elas não faltaram no processo eleitoral.

Que teria Vieira a esconder? Desde logo quis passar a imagem de unanimidade intocável, uma espécie de rainha de Inglaterra em cuja candidatura até caberiam o presidente da câmara de Lisboa e o primeiro-ministro… O futebol é um fenómeno engraçado: como dois políticos cultos, ratões da política, embarcaram nesta infantilidade é algo que ainda me intriga, sobretudo sabendo-se que político que se imiscui no futebol acaba chamuscado ou queimado. Depois Vieira impediu o debate entre candidaturas, nem sequer na televisão do clube o permitiu. Para completar o ambiente de suspeição houve confusão nos votos electrónicos e um nebuloso destino dado aos físicos, dificultando a sua recontagem. Na verdade duvido que poucos benfiquistas a desejassem porque aí poderia dar-se uma situação ainda mais embaraçosa; o melhor mesmo é a coisa ficar em águas de bacalhau circunscrevendo-se às “bocas” entre ofendidos. É a típica atitude dos adeptos que suportam as maiores trafulhices em prol de um valor mais elevado, a coesão interna, fiel garante contra ataques rivais. 

O Sporting já teve ex-presidentes detidos, Bruno de Carvalho e Jorge Gonçalves em Angola, no FCPorto Pinto da Costa escapou rocambolescamente a uma ordem judicial, no Benfica foram detidos os ex-presidentes Manuel Damásio, Vale e Azevedo e Manuel Vilarinho, este último por resistência à autoridade; da multiplicidade de motivos surgiu agora a novidade: nunca o presidente de um dos grandes fora detido em exercício de funções. Durante o tempo em que Vieira esteve preso, provavelmente sem contacto com o exterior, a restante direcção substituiu-o por Rui Costa. Na noite de quinta-feira à pergunta de jornalistas sobre se Vieira saberia disso o seu advogado afirmou “tanto quanto me apercebi não”. É delicioso, recorda como se costumam finar os déspotas iluminados e os que ultrapassaram o prazo de validade no cargo; para seu mal ou nunca leram um livro de História ou julgam-se superiores a ela.

Vivemos uma época muito exigente, antigos métodos e reinados tornam-se obsoletos; urge gerir racionalmente os escassos recursos disponíveis e só os que acompanham a mudança, os mais aptos sobreviverão. Isto que poderia ser a sinopse de um documentário do National Geographic aplica-se também às sociedades humanas. Apesar de ainda mexer com emoções profundamente arreigadas, o tipo de liderança à caudilho pimba tão comum nos clubes desportivos portugueses encontra-se seriamente ameaçado. Os ventos de mudança reforçados pela pandemia fazem cair de podres os frutos que se mantêm agarrados à árvore, e se não caem pela degenerescência natural, basta um abanão, no caso de Vieira, provocado pela justiça. Não estava em causa a sua queda, a questão era saber quando ela aconteceria.

*Músico e embaixador do Plataforma

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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