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Sede de liberdade

João MeloJoão Melo*

Na passada segunda-feira terminaram as restrições às viagens entre a Grã Bretanha e Portugal e só nesse dia aterraram em Faro 17 voos transportando 5000 britânicos; durante toda a semana continuaram a chegar a idêntico ritmo, o que resulta num aumento de quase 10% da população algarvia. A que se deve esta espécie de turbação bovina? Não, não é pelo verão e sim por causa do fim das restrições após muitos meses de reclusão forçada; calhou abrirem-se as cancelas do curral em Maio, se fosse em Janeiro ou Setembro a manada estourava à mesma, a verdadeira razão do êxodo é a necessidade de celebrar a liberdade de movimentos. Há duas semanas quando o Sporting ganhou o campeonato nacional de futebol igual motivo levara à rua milhares de pessoas por todo o país; calhou ser o Sporting mas se fosse o Benfica teria sucedido algo semelhante em Lisboa, e no Porto caso fosse o FCPorto. Sendo o futebol um catalisador de emoções, a concentração apenas atendia ao nome do protagonista, e saiu o pior possível porque ao desejo de festa em liberdade juntou-se a fome de um título que escapava há 19 anos; assim a mole de gente na capital acabaria vestida de verde e branco, se fosse uma vitória da Selecção seria de verde e vermelho, outra coisa trajaria outras cores. A seguir aos incidentes o presidente da República falou em “leveza excessiva” na preparação da festa. É sempre expectável um comentário seu sobre qualquer assunto, aqui limitou-se a constatar o óbvio. P

enso existir uma crença generalizada de que os adeptos do Sporting são diferentes, e no caso dos políticos este tipo de crenças aparta-os da realidade. A realidade é que a educação ou a sua falta não se circunscreve a uma cor, é transversal a toda a sociedade. Actualmente estamos perante demasiados desempregados e jovens ociosos cheios de energia. As condições são propícias a um estado de guerra, e no desporto, um espelho da sociedade, os rivais foram paulatinamente substituídos por inimigos, as ruas tornam-se o palco onde se põe em prática o ódio cultivado nas redes sociais. Cada um vê o mundo através dos seus olhos; quem está no poder não vive em bairros problemáticos, não anda de comboio ou metro, se vai a um espectáculo fica num camarote, enfim possui “espaço vital”, portanto não sente na pele as fronteiras pessoais trespassadas. Quem conhece o terreno é a polícia mas essa não opina, serve somente para aplicar directivas políticas. Da perspectiva da governação a polícia será o braço da ordem, no entanto vista a partir do olho do furacão ela é apenas mais um gangue, e um que os concorrentes odeiam particularmente. Malgrado o símbolo ou causa percebe-se haver de facto gangues urbanos dedicados a espalhar o caos e vão subsistindo uma vez que o caos interessa a certos poderes. Estive no parque Eduardo VII onde milhares de pessoas usavam máscara mantinham a distância, ao longe junto à estátua do marquês vi gente amontoada no meio de fumos verdes. Havendo distanciamento detesto usar máscara ao ar livre mas senti-me compelido a usá-la pela pressão de todos usarem. Ótimo, fui dormir pensando ter a festa decorrido dentro da normalidade possível, calculem a minha surpresa quando soube das notícias. Recorri à memória para discernir indícios negligenciados na hora mas os únicos que encontrei foram grupos e tipos isolados que passavam excitados… A melhor analogia continua a ser a bovina, isto é como uma largada de touros onde se vai provocar o bicho, há risco de levar uma cornada mas compensa o preço inicialmente proposto por uma dose de adrenalina. Os desacatos junto ao estádio de Alvalade resultam claramente da condescendência das autoridades; permitir um ecrã gigante é estar a pedi-las, sabendo que os tais gangues andam ali e as multidões de jovens se mobilizam espontaneamente contra a autoridade. No marquês bastava um idiota provocar o touro para resultar numa reacção musculada e respectiva contra-reacção da turba. Do mesmo modo a polícia deixa-se levar pela onda emotiva, não fica impávida a “manter a ordem”, defende-se atacando, porém os seus cornos são mais perigosos que as garrafas, petardos ou seja lá o que for que lhe arremessam. Já agora há uma coisa que me intriga imenso: onde se vendem os explosivos, em que condições se faz este negócio? Na cave das lojas de chineses? Qualquer um que saiba a senha para lá entrar pode comprar e na quantidade que quiser? Um mistério.

Por falar em explosivos, o incendiário presidente do FCPorto que se estabeleceu numa lógica de guerrilha contra Lisboa aproveitou para lançar gasolina na fogueira, afirmando demagogicamente que o espectáculo vergonhoso da capital nunca sucederia na sua cidade. Logo na semana seguinte o destino pregou-lhe uma partida e ainda hoje espero as suas declarações sobre o facto de a cidade do Porto preparar-se para uma final da Champions enquanto os delegados da UEFA veem inspectores da judiciária irromper pelo estádio adentro. Será embaraçoso para Pinto da Costa? Talvez não: “-What’s going on Mr. Pinto?” “-Nothing much, just another day at the office…” A suspeita de o FCPorto ter condicionado o resultado de testes covid aos seus atletas, nomeadamente para uma viagem ao Dubai, não é grave, uma vergonha internacional?

Voltando às multidões, também na sequente semana Marcelo provou quão delicado é lidar com o fenómeno de massas. Em visita oficial à Guiné-Bissau foi recebido apoteoticamente como se fosse o primeiro guineense a pisar solo lunar. Além disso, quiçá entusiasmado por representar o país dos afectos, quebrou protocolos de segurança dirigindo-se às pessoas que bordejavam o cortejo, estabelecendo contactos pessoais qual estrela de rock. Pois, até para o culto dignitário máximo da nação fica difícil resistir ao calor humano, imaginem para jovens adeptos que nunca viram o seu clube ganhar uma Liga. Temos de partir de um princípio cívico mas nem todos o têm, ou têm até ao momento em que a onda de massas afoga o individual. Unicamente uma sólida educação permite resistir ao arrastamento e isso é cada vez mais raro. O potencial de problemas existe em qualquer aglomeração mas evita-se permitindo a sua organização à entidade que enfrenta diariamente a incivilidade, o que não foi o caso. Como os cargos eleitos precisam de aprovação popular planificam-se os eventos à sua maneira e acto contínuo chamam a polícia para garantir a segurança do modelo que desenharam. Tendo este falhado a culpa dilui-se, quando muito o foco vira-se para os protagonistas no terreno.

Entretanto vamos tendo a definição dos campeões em outros países, e particularmente no sul da Europa quero ver como decorrerão os festejos… Anteontem em Espanha depois de ganharem o último jogo foram os próprios jogadores do Atlético de Madrid a sair para fora do estádio ainda equipados, vindo confraternizar com os adeptos aí presentes, sem máscara ou distanciamento, obrigando à intervenção policial. Anteontem o Vizela subiu à primeira Liga, ontem o Braga conquistou a Taça e voltaram a apinhar-se as ruas das duas cidades minhotas. A questão de fundo é análoga em todo o lado, as consequências do ajuntamento dependem grandemente da educação cívica individual, dos variados interesses em jogo, e do número de pessoas. Por isso fico a aguardar outro filme: estarão as autoridades descansadas sobre a possibilidade de os ingleses que chegaram se embebedarem em bando e provocarem distúrbios? O guião é similar, só mudam os intérpretes e as circunstâncias sendo que a principal diferença para o sucedido há duas semanas foi desde logo ter-se enfiado toda a população do Algarve entre o Saldanha e o Marquês.

*Músico e embaixador do Plataforma

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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