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Água a conta-gotas

Inês de Sousa RealInês de Sousa Real*

Num planeta em que diariamente se perdem nas redes 346 mil milhões de litros de água potável, há ainda 2,2 mil milhões de pessoas que continuam sem ter acesso a água própria para consumo. Se estas perdas de água fossem evitadas em somente 30%, daria para abastecer com água tratada o equivalente a 800 milhões de pessoas. Em Portugal, que não foge à regra do que se passa noutros pontos do planeta, as perdas de água tratada para consumo humano nas redes de distribuição cifram-se tradicionalmente nos 30 a 40% – há, porém, concelhos em que o nível de perdas atinge os 80%!

Não obstante entre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável ser reconhecida como prioridade o assegurar a disponibilidade e a gestão sustentável da água e do saneamento para todas as pessoas, a verdade é que os anos passam e continuamos demasiado longe de termos água potável para todos. Esta é uma reflexão fundamental principalmente no momento em que se assinala mais um Dia Mundial da Água.

O atual paradigma do nosso sistema económico, assente em padrões extrativistas e em que continua a ser mais rentável para as indústrias poluir do que prevenir, tem conduzido a uma acelerada e assustadora depradação dos recursos naturais, em particular dos recursos hídricos. Com efeito, de acordo com os dados mais recentes, cerca de 3 mil milhões de pessoas estão em risco de perder o acesso a água de qualidade, devido à crescente perda de qualidade dos nossos lagos, rios e águas subterrâneas.

A escassez da água, espelha também a escassez de políticas públicas que efetivamente a preservem

Esquecemo-nos amiúde que somente menos de 1% da água total do planeta é própria para consumo humano. Continuamos igualmente a ignorar o potencial de reutilização de águas cinzentas em atividades como encher piscinas, regar jardins públicos e campos de golfe ou lavar ruas. Ao invés disso, utilizamos para estes fins a água que a tantos continuar a chegar a conta-gotas, ou mesmo a não chegar de todo, como se de um recurso inesgotável se tratasse!

Para mais, o advento das alterações climáticas veio agudizar situações em diversas regiões do globo terrestre, sujeitas a um severo stress hídrico, que afeta já 2,3 mil milhões de pessoas em diversos países. O World Resources Institute estima que 161 países entrem num estado de stress hídrico até 2040. E o que sucede em Portugal?

Bem, Portugal, apontam diversos especialistas e organizações ambientalistas, “está a viver para além da água que tem”! Apesar de há vários anos, contarmos em teoria com um plano que visa promover um mais eficiente uso da água, desde o setor doméstico à agricultura e indústria, infelizmente pouco se tem visto ou divulgado sobre as ações desenvolvidas e/ou sobre os resultados efetivamente alcançados. Um plano que vigorou entre 2012 e 2020, atrevemo-nos a dizê-lo, algures numa gaveta da Agência Portuguesa do Ambiente.

Isto num país como Portugal em que dados de diversos estudos nacionais e internacionais apontam como sendo um dos mais afetados por fenómenos como o aumento da temperatura média, fruto do fenómeno global das alterações climáticas, ondas de calor, desertificação e, consequente, despovoamento, e salinização dos recursos hídricos subterrâneos em resultado de uma agricultura dominada pelo uso de pesticidas e engolida pelas (más) práticas intensivas e superintensivas, entre tantos outros erros na gestão deste recurso vital.Ainda segundo os dados da Entidade Reguladora do Setor das Águas e Resíduos, na sua mais recente avaliação anual, entre a água não faturada no conjunto das entidades gestoras que prestam o serviço de abastecimento de água, verifica-se que a esmagadora maioria, 66 % no serviço em alta e 71 % no serviço em baixa, tem origem nas perdas reais, estando os restantes 30 % repartidos de forma relativamente idêntica entre as perdas aparentes e o consumo autorizado não faturado. Uma análise que, lamentável e incompreensivelmente se pode resumir numa palavra: desperdício.

Ora, este é um desperdício a que não podemos, de todo, dar-nos ao luxo, num mundo ameaçado pelas alterações climáticas e em que para milhares de milhões de pessoas a água potável continua a não chegar, a chegar a conta-gotas ou a chegar sem a qualidade própria para consumo humano. A escassez da água, espelha também a escassez de políticas públicas que efetivamente a preservem. O Governo e as autarquias não podem continuar a ignorar os fatores que têm contribuído para este cenário, sob pena de continuarem a meter água em matéria de gestão deste precioso bem essencial à vida!

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