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Antes, durante e depois da quarentena

Catarina Brites Soares

Psicólogo alerta para problemas que surgem por causa da quarentena e defende que governos devem assegurar que o período seja o mais curto possível. Quem passou pela experiência confessa ter sido mais suportável do que esperava, mas que é demasiado tempo. Alguns estão preparados para fazer do isolamento prática

21 dias. Um quarto de hotel indicado pelos Serviços de Saúde. Isolado. De fora, só ofertas. Três refeições e quatro medições de temperatura diárias. Nada de visitas. Não há contacto com o exterior, a não ser o virtual. Até há pouco tempo nem as janelas se podiam abrir. Agora pode-se, mas só 10 cm. É assim a quarentena em Macau, obrigatória para quem está autorizado a entrar.

Por agora, são cerca de 3400 pessoas em observação médica. Carlos Simões, Cecília Ho, Yuen Li Lo, Michael Lei e Celia – que preferiu omitir o apelido – foram alguns dos residentes que passaram pela experiência. Nenhum a recorda como traumática.

“Não senti qualquer impacto da quarentena, mas isso deve-se a vários fatores entre os quais ter-me mentalizado”, afirma Carlos Simões.

As conversas que teve com quem tinha passado pelo mesmo ajudaram. Depois garantiu que tinha o que precisava – trabalho, livros e a bicicleta estática -, e aproveitou para ler e dormir mais. “O meu quotidiano foi praticamente igual com a diferença de que não podia andar na rua. Nunca senti nenhum tipo de ansiedade. Também foi a primeira vez e estava acompanhado. Acho que fazê-lo uma segunda vez deve ser completamente diferente”, diz.

Cecilia Ho pode dizê-lo. Em meio ano, fez duas quarentenas – a primeira de 14 dias, em agosto, no Regency, a segunda em dezembro já de 21 dias e no China Hotel. “Da primeira vez, não fazia ideia de como iria aguentar sozinha num quarto. Mas como planeei atividades para os 14 dias, não me senti mal nem emocional, nem psicologicamente”, afirma. “Em termos físicos, dormi menos porque as condições do último hotel não eram boas”, acrescenta.

Maratonista, corria no quarto todos os dias 5km, via Netflix, respondia aos emails, trabalhava via Zoom e era assim que ocupava a rotina das 7:15 às 22:30. “Na segunda vez, preparei-me muito mais”, frisa a académica.

Admite ter sentido dificuldades que, inevitavelmente a deixaram em baixo. O frio foi um delas. “O hotel não providenciou um aquecedor. Tinha de me tapar com dois cobertores e tomar um banho antes de dormir para conseguir aquecer”, relata.

A alimentação foi outro ponto negativo. Preferiu a dieta vegetariana a pensar na saúde. “Mas, as refeições eram muito pobres, sem qualquer valor nutritivo. Presumo que queiram cortar nos gastos, mas a alimentação afeta tanto a saúde física como o bem-estar mental. É bastante depressivo quando a única coisa que se come são só vegetais ou vegetais com arroz branco”, lamenta.

Yuen Li Lo também fez duas quarentenas – a primeira, em agosto, no Regency, e a segunda, em janeiro, na Pousada Marina Infante. “Reagi bastante bem a ambas, mas 21 dias é demasiado tempo”, desabafa a professora, que diz ter feito da limpeza uma das atividades regulares por causa dos cheiros na cama na primeira estada.

À semelhança dos restantes, Célia, que também se preparou com quem tinha passado pela prova, diz que foi mais rápido do que pensava. “Só no início é que me senti mais ansiosa porque não estava familiarizada com o ambiente e por não respirar ar puro. Depois, quando me habituei à rotina, passou a ser mais fácil”, assinala.

“Não senti qualquer efeito físico a não ser o de ter engordado e ter perdido energia dada a falta de exercício”, afirma Michael Lei. “Em termos psicológicos, vivo sob medidas de distanciamento social há bastante tempo, tendo em conta que vivo em Hong Kong. A parte de ter uma vida solitária tornou-se um pouco menos penosa”, afirma o residente das duas regiões, de visita a Macau para estar com a família que não via há mais de um ano. “Ainda assim, 21 dias sem qualquer interação física é demasiado tempo e sem dúvida que testa os nossos limites”, ressalva.

Os mínimos

O psiquiatra Willy Wong tem uma visão menos subjetiva já que há um ano que lida com o impacto da pandemia. O isolamento social, desapego, stress, medo, ansiedade e estados mais depressivos, irritabilidade, raiva, exaustão emocional, dormência, stress pós-traumático e evitar os outros são alguns dos efeitos da quarentena que enumera.

Face ao cenário, o diretor do Centro de Psiquiatria e de Medicina Integrada de Hong Kong defende que os Governos devem ter em conta mínimos, a começar pela duração do isolamento. “Deve ser o mais curto possível”, vinca.

Acrescenta ser crucial garantir recursos de necessidade básica com frequência, assim como ajuda para gerir o stress. “Deve haver uma linha de saúde para apoio psicológico e psiquiátrico”, salienta. “É igualmente importante que os serviços de saúde mantenham uma comunicação próxima com as pessoas e que se enfatize o altruísmo subjacente à quarentena, ou seja, que é uma forma de ajudar os outros, sobretudo os mais vulneráveis”, aponta.

Cecília Ho estende a lista de sugestões. Espera que o Executivo monitorize mais os hotéis designados para quarentena, peça opiniões a quem a fez e que os obrigue a melhorar. “A segunda quarentena é paga por nós. A qualidade devia corresponder ao preço. É um dever garantir segurança e conforto, e fazer-nos sentir em casa. É o mínimo”, aponta Ho, que pagou 8.400 patacas pela segunda estada, tendo em conta que só a primeira é gratuita no caso dos residentes.

A professora sugere ainda que seja autorizado fazer desporto no exterior, pelo menos uma vez por dia, com supervisão e a garantia de que se respeitam medidas de segurança como o uso de máscara e o distanciamento social. “É uma forma de manter a sanidade. Finalmente, acho que a última semana dos 21 dias podia ser feita em casa.”

Revela insatisfação com a forma como foi tratada, sobretudo da segunda vez. “O pessoal era pouco profissional, empático e não prestava apoio em necessidades básicas. As toalhas foram as mesmas durante três semanas e tínhamos de ser nós a lavá-las. Apareceu-me a menstruação, pedi pensos higiénicos e disseram-me que não podiam ajudar. Teve de ser um amigo a trazer-me”, descreve. “Parecia que não era hóspede, mas sim um prisioneiro”, lamenta.

Célia só estranhou as horas das refeições, diferentes das que costuma cumprir. Às 11:00 estavam a servir o almoço e às 17:30 o jantar. Havia três opções de comida, predominantemente chinesa. “A meio estava um pouco farta porque normalmente levo uma alimentação mais saudável”, afirma, desvalorizando. “Felizmente, sou uma pessoa caseira e também estou bastante habituada a trabalhar de casa por causa da pandemia. Por isso, não me senti realmente incómoda com a quarentena”, realça a residente, a viver em Hong Kong.

O mesmo aconteceu com Carlos Simões. “Assumi como se fosse o meu quotidiano. Acordava cedo, começava a trabalhar, parava para almoçar, voltava a trabalhar, fazia desporto ao fim do dia, jantava, lia ou via televisão, e dormia”, detalha.

Pós-quarentena

A fraca internet no quarto de Michael Lei impediu-o de trabalhar como tinha planeado, condicionante que superou com mais tempo dedicado aos jogos da consola que levou, a ler e a dormir. Seguiram-se mais sete dias em casa – período de autogestão recomendado pelos Serviços de Saúde. “É estranho que já não esteja confinado a 25m2. Não vejo os meus familiares e amigos há mais de um ano. Nem imagino como será voltar a ter uma vida social normal durante uns tempos, uma vez que em Hong Kong esteve interdito que mais de duas pessoas se juntassem durante um longo período”, afirma.

Alívio foi também o que sentiu Yuen Li Lio assim que pôs o pé fora do quarto. Enquanto lá esteve, esforçou-se por deixar os sentimentos/pensamentos negativos à porta. “Tentava não pensar que estava cingida e bloqueada num espaço limitado, que não podia fazer nada na rua, e que não via outras caras além dos funcionários que faziam as entregas”, recorda.

Willy Wong avisa que é preciso estar atento ao impacto de uma experiência como esta, mesmo quando termina. “Os problemas psicológicos associados à quarentena podem prolongar-se ou só surgir depois”, reforça.

Residentes nas duas cidades, com família e trabalho num dos dois lados, todos, com exceção de Carlos Simões, terão de circular entre Hong Kong e Macau.

Por agora estão descansados porque está em vigor a “Return2hk”. Apesar da política de exceção que isenta de quarentena os residentes de Macau e Guangdong, admitem estar preparados para o pior.

“Se a pandemia continuar e as restrições entre Hong Kong e Macau se mantiverem, estou preparada para ter de fazer mais quarentenas. Trabalho em Macau, mas a minha família está em Hong Kong”, salienta Yuen Li Lio, cujo emprego também implica investigação na região vizinha.

“Enquanto residente em Hong Kong e Macau, e com casa em ambas as regiões, comecei a aceitar a quarentena como parte da minha vida”, refere Cecília Ho.

“Apesar dos 21 dias não terem sido uma má experiência, não quero passar por isto de novo. Somos humanos e precisamos de interagir. É importante relacionarmo-nos com os outros, sobretudo com os que mais gostamos”, sublinha Célia, que decidiu sujeitar-se porque também não via a família que vive em Macau há um ano. “Apesar de todos os desafios, decidi vir. Felizmente não terei de passar por outra quarentena graças à política ‘Return2hk'”, refere, ressalvando logo a seguir: “Sei que tudo pode mudar de um dia para o outro. Só espero que a isenção se mantenha até voltar a Hong Kong”.

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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