Nova lei suscita o medo de detenções desnecessárias

Nova lei suscita o medo de detenções desnecessárias

O Governo assegura que a nova lei do controlo da migração, que prevê a detenção de imigrantes em situação irregular por um período de até dois anos, só se aplica em casos excecionais, mas a Organização Internacional do Trabalho (OIT) pede às autoridades que as novas prerrogativas jurídicas sejam uma solução de último recurso. A agência especializada da ONU lembra que a imigração irregular, por si só, não é um crime e considera que “a criminalização da imigração pode conduzir a detenções desnecessárias”.

Uma medida de exceção que só deve ser aplicada em último recurso. É desta forma que a OIT comenta a decisão do Governo de Macau de estender, até a um limite de dois anos, o período de detenção a que estão sujeitos os imigrantes indocumentados.

A possibilidade está prevista no novo “Regime jurídico do controlo de migração e das autorizações de permanência e residência na Região Administrativa Especial de Macau”. O diploma foi aprovado na generalidade pela Assembleia Legislativa no início do mês e começou esta semana a ser discutido na especialidade pelos deputados que integram a 3a Comissão Permanente do hemiciclo.

A proposta do Executivo prevê, no âmbito do processo de expulsão o alargamento da detenção de migrantes com estatuto irregular de 60 dias para um período que poderá chegar, no limite, a 24 meses. A sugestão, a que os membros da câmara parlamentar do território deram luz verde, contraria as indicações da OIT, que deixa claro que a imigração, seja ela regular ou irregular, não constitui por si só matéria criminal.

“O gabinete do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos e outras organizações sublinham que a imigração irregular por si só não é um crime – contra uma pessoa, contra a propriedade ou contra a segurança nacional – e que a criminalização da imigração pode conduzir a detenções desnecessárias”, recorda Nilim Baruah, especialista em migrações do Gabinete Regional da OIT para a Ásia-Pacífico.

Ao abrigo do direito internacional – e tendo em conta o princípio fundamental do direito à liberdade – “a detenção por razões decorrentes da imigração deve ser, em termos estritos, considerada uma medida de último recurso, o que quer dizer que deve ser dada preferência a todas as outras alternativas, como por exemplo aplicar penalizações administrativas ao invés de uma punição de natureza criminal”, complementa Baruah, na resposta a questões colocadas pelo PLATAFORMA à agência das Nações Unidas especializada na promoção dos direitos laborais.

Durante a apresentação, a 1 de Fevereiro, da proposta de lei na Assembleia Legislativa, o secretário para a Segurança, Wong Sio Chak, procurou garantir que a detenção de imigrantes em situação irregular por períodos de tempo que suplantam os 60 dias só se deverá verificar em casos excecionais.

O governante assumiu perante os deputados que o diploma, que se encontra agora em análise na especialidade, visa sobretudo migrantes indocumentados que as autoridades do território não conseguem identificar.

A falta de documentos, assinala a OIT, não deve ser, no entanto, equiparada a uma ausência de humanidade. No caso de a detenção ser absolutamente necessária, a agência da ONU pede que as autoridades de Macau zelem pelos direitos fundamentais das pessoas abrangidas pelo novo regime jurídico.

“Seria importante investigar as condições de detenção, incluindo das devidas exigências processuais (acesso a aconselhamento jurídico, a recurso judicial), bem como assegurar que os detidos têm acesso a alimentação adequada, a cuidados de higiene e a cuidados de saúde”, salienta Nilim Baruah.

Aquando da votação na generalidade do diploma, no início do mês, Wong Sio Chak deixou a entender que o Governo considera que os migrantes em situação irregular podem constituir uma ameaça grave à “segurança e estabilidade do território”, mas garantiu que o alargamento do prazo de detenção dos visados será sempre garantido pela Justiça, e não diretamente pelas forças policiais.

O secretário para a Segurança não escondeu a intenção de dotar a legislação de um forte cunho dissuasor, para impedir o que definiu como “iniciativas de atraso intencional dos procedimentos de expulsão”.

Em causa, segundo o governante, está a incapacidade de alguns dos migrantes conseguirem apresentar documentos de identificação ou fornecerem identificações falsas. O expediente, utilizado frequentemente para procurar garantir uma permanência de longo prazo em Macau, impossibilita as autoridades de expulsar ou repatriar os infratores e obriga o Corpo de Polícia de Segurança Pública a emitir uma quantidade avultada de guias de permanência provisória. O PLATAFORMA procurou saber junto do Serviço de Migração da PSP a que outras situações se podem vir a aplicar as novas prerrogativas jurídicas, mas não recebeu qualquer resposta das autoridades até ao fecho da presente edição do jornal.

Criminalizar o criminalizável

O novo “Regime jurídico do controlo de migração e das autorizações de permanência e residência na Região Administrativa Especial de Macau” está já a ser apreciado, sem a presença de membros do Governo, pela 3a Comissão Permanente da Assembleia Legislativa, numa missão que se adivinha, no mínimo, complexa e que deverá prolongar-se até ao final do próximo mês de março.

Para o deputado José Pereira Coutinho, que integra a Comissão que está a dissecar o diploma antes de a proposta voltar a subir a plenário para votação na especialidade, a missão do hemiciclo não se prefigura fácil, até porque no novo regime jurídico se intersetam questões relativas aos direitos laborais, à segurança interna ou à proteção dos direitos fundamentais.

O único deputado português à Assembleia Legislativa escusou-se a fazer comentários mais profundos sobre a matéria por integrar a Comissão que está a analisar a proposta do Governo, mas está ciente da importância que o diploma vai ter para o futuro da Região Administrativa Especial de Macau.

“É um projeto que se cruza com muitos outros diplomas em vigor. Neste momento estamos a apreciar o projeto internamente, sem a presença dos membros do Governo. O que posso dizer é que este projeto de lei terá no futuro um enorme impacto na RAEM”, considera Coutinho.

A versão final do novo regime jurídico ainda está longe de ser conhecida e a lei dificilmente entrará em vigor antes do final do primeiro semestre do corrente ano, mas os efeitos deste e de outros diplomas legais que o Governo tem vindo a promover – como a lei que impede os trabalhadores não residentes despedidos de se candidatarem a um novo emprego – confrontam os migrantes com níveis de incerteza e de insegurança laboral que Melissa Garabiles considera asfixiantes. Especialista em Psicologia Clínica, a docente da Universidade Ateneo de Manila foi uma das responsáveis por um dos maiores levantamentos conduzidos no território sobre a saúde mental dos trabalhadores migrantes e diz não ter dúvidas sobre o impacto que o cerco legislativo à imigração tem sobre o estado de espírito dos migrantes, mesmo que se encontrem em situação regular.

“Os migrantes rumaram a Macau com o objetivo prioritário de ganhar dinheiro para enviar para as respetivas famílias. Quando se veem privados da capacidade de trabalhar e de enviar dinheiro para casa, ficam vulneráveis não só em termos económicos, mas também em termos de saúde mental”, assume a académica.

Assinala ainda que “as dificuldades com que se deparam para permanecer em Macau também os deixa fisicamente vulneráveis enquanto esperam pela disponibilidade de voos que possibilitem o regresso a casa”.

“Espero que as autoridades de Macau tenham em conta os serviços que os migrantes prestaram ao território. Macau é o que é atualmente em parte devido ao contributo dos imigrantes”, remata Garabiles.

A tendência para uma certa “demonização da imigração”, reconhece a OIT, parece estar a ganhar terreno em algumas jurisdições. A circunstância leva a agência especializada da ONU a lembrar, com alguma frequência, os Estados membros e entidades associadas que, no âmbito da imigração irregular, as sanções devem estar direcionadas para aqueles que a facilitam, nomeadamente as redes de auxílio à imigração ilegal.

“Sanções efetivas e proporcionais devem ser decretadas contra os empregadores que não respeitem os direitos laborais dos trabalhadores migrantes, bem como contra quaisquer pessoas que tenham sido consideradas responsáveis por organizar ou que tenham contribuído para processos irregulares de imigração, com o objectivo de prevenir a imigração irregular de mão-de-obra”, defende Nilim Baruah.

No regime jurídico que se encontra em discussão na Assembleia Legislativa está previsto “o agravamento da pena aplicável no caso de crimes de auxílio à migração ilegal, acolhimento e emprego irregular quando a conduta principal for acompanhada de condições particularmente abusivas ou degradantes”.

A OIT quer, no entanto, que os governos possam ir mais além por iniciativa própria e deixem de tratar as vítimas como criminosos.

“Tendo em conta o aumento da tendência de criminalização da entrada ou da permanência irregular de migrantes em alguns países, o Comité de Especialistas sublinha que as sanções contra trabalhadores migrantes em situação irregular muitas vezes os impedem de usufruir dos direitos previstos por esses instrumentos e que reivindiquem reparação por eventuais violações”, sublinha Baruah.

Para o assessor para as migrações do Gabinete Regional da OIT para a Ásia-Pacífico, “os Estados Membros devem adotar as medidas necessárias para proteger os trabalhadores migrantes de violações dos respetivos direitos humanos básicos, independentemente do estatuto legal”.

O “Regime jurídico do controlo de migração e das autorizações de permanência e residência na Região Administrativa Especial de Macau” contempla ainda a criminalização do casamento, da união de facto, da adoção ou de contrato de trabalho simulados, em situações que o negócio simulado for efetivamente utilizado perante as autoridades para concretizar o fim mais censurável, que é “o de pedir falsamente a autorização de residência ou autorização especial de permanência”.

O novo regime prevê a fixação de penas entre dois e oito anos de prisão para estes casos.

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