Mutilação Genital Feminina – a inação não é opção

por Pedro Tadeu
Beatriz Gomes DiasBeatriz Gomes Dias*
Beatriz Gomes Dias
Beatriz Gomes Dias

O movimento global para acabar com a Mutilação Genital Feminina (MGF) tem reivindicado uma resposta robusta e efetiva dos governos para eliminação desta prática. As/os responsáveis políticas/os devem dar centralidade a esta manifestação de violência sobre as mulheres, tornando o seu combate uma dimensão das políticas de defesa dos direitos das mulheres e das meninas.

Os diversos projetos, programas e recomendações apontam para a necessidade de mobilização de instrumentos que promovam a prevenção, ampliem o conhecimento sobre este complexo fenómeno e contribuam para acabar com esta violação dos direitos humanos. Da educação à formação, da informação à prevenção primária, sem perder de vista o empoderamento das meninas e mulheres pertencentes a comunidades afetadas e o combate à estigmatização das mulheres que foram sujeitas a estas práticas e que se podem tornar replicadoras, são várias as propostas de intervenção.

A informação e partilha de conhecimento é essencial para ultrapassar os tabus e mudar mentalidades, proteger as pessoas que foram submetidas ou que se encontram em risco de serem submetidas à MGF, assim como as comunidades a que pertencem.    

As organizações nacionais e internacionais alertam-nos igualmente para a necessidade de se desconstruir os estereótipos de nacionalidade, religião e estatuto migratório associados às mulheres, meninas e comunidades afetadas por este fenómeno.

Neste processo de desconstrução, a linguagem assume um papel de destaque. Foi o que aprendi com Ana Só e Fatucha Banora, embaixadoras da rede europeia End FGM comprometidas com o combate à MGF e a defesa dos direitos das meninas e mulheres. Num vídeo publicado no ano passado por ocasião do “Dia Internacional de Tolerância Zero à Mutilação Genital Feminina, estas jovens ativistas, que fazem um trabalho admirável nas suas comunidades, falam-nos sobre o poder da linguagem no combate a esta prática.

O uso de uma linguagem abrangente, respeitosa e não estigmatizante quando se escreve ou se fala sobre MGF é de uma enorme importância, assim como a rejeição de expressões como “bárbaro”, “repugnante”, “selvagem” e outras, que podem incentivar o discurso de ódio e reforçar a discriminação e os preconceitos que recaem sobre as pessoas afetadas e as suas comunidades de origem.

A construção de alianças e redes entre mulheres e organizações de jovens e ativistas que defendem a igualdade de género e o abandono da mutilação genital feminina dão-nos esperança de que esta e outras formas de violência de género serão combatidas com determinação e serão eliminadas

A Mutilação Genital Feminina (MGF) constitui uma grave violação dos direitos humanos e uma forma de violência extrema contra as mulheres e meninas. É um reflexo da desigualdade de género, que limita o acesso a oportunidades e recursos, nega direitos e impede que meninas e mulheres concretizem todo o potencial.

A MGF é apenas uma das muitas práticas realizadas para controlar o corpo e o papel das mulheres na sociedade. Não devemos abordá-la isoladamente de outras formas de violência contra as mulheres ou outras práticas nefastas como os casamentos precoces ou forçados. A MGF é fruto da opressão patriarcal.

Conforme definido pela Organização Mundial de Saúde, a MGF é uma prática tradicional nefasta, que abrange todos os procedimentos que envolvem a remoção parcial ou total dos órgãos genitais externos das meninas e mulheres ou que provoquem lesões nos mesmos, por razões não médicas e que acarreta vários impactos negativos na sua saúde física e psíquica, que persistem para toda a sua vida e que podem levar até à morte.

Esta prática é atualmente reconhecida como um assunto global, que afeta milhões de mulheres e meninas em todo o mundo e cujo combate exige uma estratégia internacional concertada.

Os dados mais recentes revelam que mais de 200 milhões de meninas e mulheres em todo o mundo sofreram mutilação genital feminina e pelo menos 4 milhões de meninas, em cada ano, correm o risco de sofrer a prática.

Presume-se que vivam na Europa cerca de 600 000 mulheres e meninas a sofrer com as consequências físicas e psicológicas da MGF e que cerca de 180 000 meninas, em 13 países, estejam em risco de virem a ser submetidas a MGF.

Em muitos países a situação é de “crise dentro de uma crise” devido à pandemia, incluindo um aumento na mutilação genital feminina e outras formas de violência de género. Estima-se, que devido à pandemia, pode haver até 2 milhões de casos de mutilação genital feminina em 2030 que, de outra forma, teriam sido evitados.

No dia 6 de fevereiro celebra-se o “Dia Internacional de Tolerância Zero à Mutilação Genital Feminina”.  O lema para este ano é uma chamada à ação. Ao afirmar que “Acabou o tempo para Inação Global: Unir, Financiar e Agir para abandonar a Mutilação Genital Feminina” os governos são instados a passar da retórica à ação, a intervir nas causas profundas da desigualdade de género e trabalhar no sentido da capacitação social e económica das mulheres.  

A erradicação desta prática implica o reforço do compromisso dos governos através do aumento da colaboração entre instituições nacionais e internacionais, a mobilização de recursos para o financiamento adequado das ações e projetos, e o empenho numa transformação sistémica dos papéis de género que lide com as estruturas, as políticas e as normas prejudiciais que perpetuam esta prática.

A declaração conjunta da UNICEF, FNUAP e UN Women, lançada no âmbito das celebrações deste dia, alerta para a necessidade de “novas políticas e legislação que protejam os direitos de raparigas e mulheres para viverem livres de violência e discriminação”.

O plano de ação para o abandono desta prática nefasta tem de ter em atenção estas dimensões e apresentar uma estratégia orientada por uma perspetiva ampla e transversal, incluindo as escolas, do pré-escolar à Universidade, as autarquias e os centros de saúde.

Estas instituições têm um papel crucial a desempenhar na divulgação de informação, na prevenção primária e na recolha de dados. A sua intervenção não deve e não pode, de forma alguma, resumir-se à identificação das mulheres que foram sujeitas à MGF. A resposta a dar requer a disponibilização de mecanismos de apoio médico, mas também de apoio social e psicológico às mulheres afetadas.

As/os profissionais de saúde, as/os educadoras/es, as/os técnicas/os das autarquias devem ter uma formação específica que as/os habilite, com as competências adequadas, para a intervenção nos casos de meninas e mulheres que estão em risco ou foram submetidas à MGF.

O conhecimento da verdadeira dimensão deste fenómeno em Portugal implica a recolha sistemática e regular de dados. A sua divulgação deve ser anual e fornecer informação precisa sobre a idade das vítimas, o país de origem e as consequências biopsicossociais. Estes dados são fundamentais para conhecer e compreender a realidade desta prática no país. 

A investigação a realizar neste domínio deve promover uma abordagem integrada, incorporando o conhecimento já produzido e evitando simultaneamente qualquer prática segregadora ou potenciadora de fenómenos de discriminação. A consecução deste objetivo passa pela inclusão da perspetiva das pessoas que foram submetidas à MGF e o trabalho em parceria com as organizações de base local com intervenção nesta área.

Para ser eficaz, o plano deve incluir linhas orçamentais dedicadas a serviços abrangentes de saúde sexual e reprodutiva, de educação, de bem-estar social e serviços jurídicos. O financiamento dos projetos deve ser transversal a vários ministérios, não pode depender exclusivamente do financiamento da Secretaria de Estado para a Cidadania e Igualdade. Devem ser afetados recursos de diferentes ministérios como o da Saúde; do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social; da Educação; dos Negócios Estrangeiros; da Justiça.

Este é também um desígnio internacional. A cooperação entre países para o abandono da MGF deve ser reforçada, de modo a alavancar recursos e aumentar o impacto dos programas e campanhas. O fim da MGF deve ser colocado no topo das prioridades das agendas políticas nacional e internacional, para que seja possível cumprir esta meta da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável.

O Ministro dos Negócios Estrangeiros, que representa Portugal nas reuniões multilaterais, pode assumir um papel ativo na articulação com os países da União Europeia, designadamente no âmbito da presidência portuguesa em curso, da CPLP ou das Nações Unidas. Afirmando o compromisso e empenho do Governo Português na implementação de ações concretas para a eliminação de práticas como os casamentos prematuros, forçados e de crianças, e a MGF.

Os recursos disponíveis no âmbito da estratégia da cooperação portuguesa para a igualdade de género devem ser mobilizados para esta tarefa. É possível potenciar a articulação entre os diferentes projetos em matéria de igualdade/equidade de género, integrando os conhecimentos adquiridos a partir das experiências realizadas nos países de prevalência de comunidades afetadas e que promovem o abandono desta prática através do empoderamento e de capacitação das próprias comunidades.

Ainda há muito trabalho a fazer. Contudo, a construção de alianças e redes entre mulheres e organizações de jovens e ativistas que defendem a igualdade de género e o abandono da mutilação genital feminina dão-nos esperança de que esta e outras formas de violência de género serão combatidas com determinação e serão eliminadas.

Para que todas as meninas e mulheres tenham o controlo sobre os seus corpos e as suas vidas.

*Deputada do Bloco de Esquerda (BE) – Portugal

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