Um ano depois

por Filipa Rodrigues
João MeloJoão Melo*

Um ano após a pandemia ter mudado o paradigma do mundo chegou a hora de uma pequena reflexão. Não sou médico, portanto o que se segue será uma mera opinião pessoal baseada em empirismo e algumas leituras. Creio que “ter saúde” é um estado mais ou menos breve de equilíbrio entre forças antagónicas. Quando o renascimento neutraliza a morte celular, quando as defesas se sobrepõem aos ataques exteriores, está-se “saudável”; quando algum dos segundos factores controla os primeiros planta-se um desequilíbrio que poderá ser irreversível. Os organismos funcionam como um todo, é redutor pensar parcialmente. Um órgão debilitado irá sobrecarregar outros na tentativa de o suprir, e frequentemente o sintoma de mau funcionamento de um órgão não será mais que o ónus de esforço desse, de maneira a ressarcir a ausência do contributo de outro para o equilíbrio geral. Assim se depreendem inúmeras analogias em relação a todos os sistemas vivos ou inanimados. 

Cedo se percebeu que o covid 19 transmite-se por via aérea e, do mesmo jeito que qualquer vírus, ataca o sistema imunitário. Não se “morre de covid”, e sim dos múltiplos desarranjos provocados, igual à SIDA, por exemplo. Os transtornos do sistema imunitário conduzem ao aparecimento de doenças auto-imunes, inflamações e cancros; a imunodeficiência resulta de factores genéticos, condições adquiridas, ou do uso de imunosupressores. Para lá dos conhecidos, a lista de sintomas de covid vai engrossando de dia para dia. Diria que os sintomas são tão variados quanto a quantidade de humanos, uma vez que cada sistema imunitário é um caso particular. Afirmei ser redutor pensar parcialmente, não só sobre um órgão, um ser, o conjunto de humanos, mas considerando outrossim o organismo “Terra”, e acrescento que ao espaço de análise deve-se juntar uma visão alargada do tempo. Depois de tomar conhecimento de alguns sintomas invulgares apercebi-me que tive uns quantos, e a partir daí surgiu a interrogação: será que estive infectado? Os primeiros casos vieram a público na China em Dezembro de 2019.

A primeira vítima reportada em Portugal foi no dia 2 de Março de 2020. No entanto amostras recolhidas em Março de 2019 revelam os marcadores genéticos do covid, levando a crer que circulava nos esgotos de Barcelona, uma conclusão posteriormente descartada pela comunidade científica porque não se verificou uma contaminação generalizada. Todavia até hoje não foi contrariada outra amostragem de esgotos em Florianópolis no Estado de Santa Catarina, no sul do Brasil, que reporta a presença do vírus em Outubro de 2019. Penso que perante estes e outros casos isolados na China devemos reformular o que julgamos saber sobre o vírus, alargando a moldura temporal em que o situamos. Talvez seja um vírus dormente activado por condições ambientais e já estivesse disseminado por várias regiões do mundo, sofrendo depois algum tipo de mutação que o tornou tão letal.  Não irei elencar sintomas mas digo-vos que desde meados de 2019 e início de 2020 apresentei alguns bizarros, que só agora tomei consciência de se poderem relacionar ao coronavirus.

Em 2019 passei meses no sul da China e regressei a Portugal no final do ano. Nessa altura apanhei uma gripe daquelas de caixão à cova da qual infelizmente não recordo sintomas, não estava preparado para contemplar diferentes cenários. Só recordo que foi uma das piores que tenho memória, vindo alguns familiares igualmente a apanhá-la no início de Janeiro; só se lembram de ser terrível, esqueceram os sintomas. É curioso, facilmente desatendemos as coisas más. Também em Janeiro faleceram dois idosos no meu prédio com dias de diferença, um do primeiro, outro do terceiro andar, contudo desconheço as causas. Estando a fazer um relato de incidentes singulares dessa época, não podia deixar de incluir a referência a estas mortes. Posteriormente tive várias ocorrências incomuns, culminando num estado bem pior que a tal gripe; quedei-me uma semana de cama a agonizar supondo ter um problema grave.

Não querendo assustar ninguém mas temendo o pior busquei pelos sintomas na net, deduzindo que teria intolerância ao glúten. Ignorava que se sofresse tanto por esta causa, as prateleiras dos supermercados cheias de produtos sem glúten sugeriam-me uma mariquice de moda. Além disso descobri que esta é uma doença auto-imune. Apareceu do nada, parei de ingerir glúten e a decorrência foi milagrosa, recobrando de um dia para o outro. Entretanto passei o Fevereiro a dirigir-me ao banco do hospital acompanhando familiares que desenvolveram de igual modo sintomas estranhos, cada um munido do seu exotismo particular. Nenhum parecer médico foi conclusivo quanto às origens nem conseguiu estabelecer um quadro clínico fiável, só suposições. Contei recentemente esta espécie de epifania a amigos, e alguns lembraram-se de terem passado ou assistido no seu círculo próximo a situações anormalmente semelhantes. Se algum de vós teve um ataque de caspa somente do lado esquerdo da cabeça e ganhou uma mancha na mão direita que lembra a imagem do Che Guevara, é o típico candidato a realizar um teste serológico. Desde Março de 2020 tornei-me disciplinadamente focado no reforço do sistema imunitário, e esta semana constatei outra peripécia, neste caso positiva: há um ano que nem uma simples constipação apanho, o que não é raro, é único. No dia 6 deste mês pesquisadores do hospital Ichilov em Tel Aviv anunciaram terem desenvolvido um remédio 95% eficaz contra o covid. Qual foi o tratamento dado aos doentes? Imunoterapia. Vai dar tudo ao mesmo… Ao fim de um ano de tanta incerteza acho que temos dados para entender, pelo menos em traços largos, o funcionamento do covid; já não é mau.

*Músico e embaixador do Plataforma

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