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Uma questão de tempo

João MeloJoão Melo*

Em 1981 eu era um adolescente que depois de um certo esforço consegui convencer os meus pais a deixarem-me fazer férias sozinho. Arrumei a trouxa e fui fazer campismo selvagem no litoral alentejano. Nessa época aquilo era realmente isolado, apenas duas pensões na aldeia perto da praia e uns três cafés. Um dia apareceram duas adolescentes suíças que acabaram atraídas para o nosso pequeno grupo de amigos entretanto formado pelas serenatas de viola na praia. Palavra puxa palavra, uma delas converteu-se num romance de verão que se prolongaria além da estação. Para um puto português agarrado às saias da mãe, o seu espírito livre fascinava-me, afinal ainda era mais nova que eu, e enquanto me dirigi de autocarro a um sítio que conhecia, ela viera com uma amiga de avião desde Zurique até ao fim do mundo. Estava fascinada pela nossa liberdade, pintando-me um quadro tão negro da Suíça que tive dificuldade em compreender. Contava que o seu país se equiparava a um Big Brother, tudo era controlado, e nem tínhamos noção da sorte de vivermos aqui. Nunca esquecerei a imbecil resposta que lhe transmiti baseado na minha parca experiência de vida, pensando que menos de uma década a seguir à revolução de Abril e devido ao rebelde espírito latino, as pessoas em Portugal nunca se submeteriam a tal sistema. Há 40 anos ela informara-me em primeira mão, seguidamente li sobre o assunto, mas só 20 anos mais tarde tive consciência quando passei a sentir na pele. De facto espanta os humanos serem tão pouco impressionáveis pela razão e tão influenciáveis pela emoção, reagindo por intermédio desta; acostumarem-se a tudo é só uma questão de tempo. 

Ao abrigo da necessidade de segurança após os ataques do 11 de Setembro, os movimentos passaram a estar mais controlados. Cruzar um aeroporto implica uma bateria de procedimentos que visam criar o hábito de convivermos com a indignidade. Revistam-nos, apalpam-nos, despojam-nos dos nossos valores, cinto, e sapatos. Não sei se alguma vez observaram, esse é o procedimento usual aplicado a condenados que entram na prisão. Durante uns minutos somos colocados numa condição tão criminosa como os criminosos que nos levaram a esta situação. Dantes só me despia perante estranhos se fossem médicos, passei também a despir-me à frente de seguranças para entrar num avião. Queremos viajar? Então temos de consentir. E uma vez consentido, o que os impedirá de avançar mais pelo caminho da indecência? Nada, é uma questão de tempo até surgir pior. 

Na primeira década do século XXI a tecnologia de controlo instalou-se e aceitámo-la, primeiro por via do entretenimento, posteriormente de modo a garantir a nossa segurança. Actualmente nas redes sociais fala-se uma espécie de novilíngua, repleta de emojis, abreviaturas, num número limitado de palavras que configuram uma forma redutora de pensamento e expressão, gerando reacções emocionais rápidas através do modelo like ou dislike. Nem na novela distópica de Orwell se fora tão longe, aí os cidadãos duplipensavam; hoje não há cidadãos, quem duplipensa são consumidores/contribuintes. Inculcada a sensação de insegurança generalizada concordamos em fazer exames, não porque estejamos doentes mas para provar que somos saudáveis, não desejamos constituir perigo ou despesa. A via verde é cómoda, os débitos directos em conta, cómodos são. Só se acede ao conteúdo dos últimos smartphones mediante um reconhecimento facial; ou achamos giro ou não há opção, e portanto anuímos. Os testes de ADN e genealogia popularizaram-se; são mais uma forma de entretenimento que derivará em bancos de dados utilizáveis na prevenção de características potencialmente ameaçadoras. Está em curso uma nazificação da sociedade, todavia julgamos ter limites intransponíveis. O tempo e as circunstâncias encarregar-se-ão de os esquecermos e os transpormos. Uma grande parte dos avisados cidadãos europeus, conhecedores de teorias da conspiração era contra vacinações em massa… até chegar a pandemia. Na semana passada houve na Holanda violentos motins contra o confinamento que se prolongaram por vários dias, e onde se exigia o quê? Rapidez na vacinação. 

No fundo o que pretendemos é regressar quanto antes à normalidade nem que abdiquemos de princípios ou dignidade pessoal. Contudo o processo ainda não está concluído, precisamos de atingir o extremo do desespero para nos quedarmos perfeitamente maleáveis. Falta tolher completamente a liberdade de movimentos, aprisionados em solitárias, doutrinados por horas de números de mortos, imagens de ambulâncias e vacinação nos noticiários, soirées de séries como “Prison Break”, ou “Mayday, desastres aéreos” no… National Geographic que já foi um canal “da natureza”. Sim, devemos mantermo-nos nas celas, é mais seguro que a loucura lá fora, porém ninguém mostra a loucura cá dentro. Em 2001 deram-nos um vislumbre duma nova ordem e não reparámos, tolerámos a indecência para mantermos a sanidade. Em 2021 se ousarmos sair da prisão e ir a Pequim ou Tsingtao vão-nos literalmente ao cu. Supusera que de futuro ninguém poderia viajar sem um passaporte de vacinas, não obstante esta ideia ultrapassa a minha imaginação. Ao abrigo da segurança sanitária, o governo chinês instituiu que quem queira entrar nessas cidades terá de se sujeitar a exames anais, certificados pela inquestionável ciência que garante serem mais eficazes do que os realizados na garganta e vias nasais. Apanhar o sabonete incomoda os chineses? Não sei, agora parece claro que o governo não quer ali estrangeiros a meter o bedelho, a mensagem soa a “vão lamber sabão”. Fica anotado. E o que impedirá a norma de se institucionalizar por todo o território? Nada. É só uma questão de tempo. 

*Músico e embaixador do Plataforma

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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