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O poder da palavra

João MeloJoão Melo*

“A linguagem é um vírus do espaço”- William S. Burroughs

Quem visita países islâmicos certamente escutou em megafones públicos o cântico de chamamento para as orações, é uma experiência marcante. As religiões judaica, cristã e islâmica sempre realçaram a força da oração, e se praticada em congregação, mais perceptível se torna a elevação energética emanada do colectivo. No hinduísmo e budismo a repetição de palavras ou sons chama-se mantra, noutras manifestações de carácter religioso ou não, além da concentração esta repetição fomenta estados de espírito alterados. Eis o imenso poder do som e da palavra, que nem o da poesia. Em tempos trabalhei musicalmente sobre discursos de comunicadores, e nos melhores percebi claros tons e ritmos próprios, logrando beliscar uma corda na sensibilidade do receptor; se repetidos funcionam qual mantra. Há quem se deixe levar pela música, outros pelas palavras, mas os que conseguem unir os dois factores numa simbiose perfeita alcançam sucesso garantido; juntando-se a imagem à equação o quadro completa-se. O apelo emocional, aquele que interessa aos emissores, vem do áudio. Experimentem ver um jogo de futebol ou um filme de qualquer género, e tirem o volume: a dimensão emocional esvazia-se, perde-se o potencial onírico irradiado pelas palavras e sons, transformando-se num documentário, porque o que a imagem transmite são “factos”. Quanto mais um filme apelar a emoções fortes, mais caricatural se tornará sem som. 

Numa altura em que o mundo se confina sem grande variedade de distracções, a palavra voltou a ganhar uma relevância que há muito não observava. Ao não aceitar os resultados das eleições, lançando suspeitas em sucessivos tweets inflamatórios, Donald Trump está a par do peso e alcance das palavras; pode abdicar do apelo directo a uma insurreição, sabendo que a sua narrativa possui a faculdade de conduzir a esse fim. Quando uma turba em fúria invade o Congresso, não interessa se ele teve ou não a intenção, o resultado foi um dos expectáveis. Salvas as devidas distâncias, municiar massas acríticas com discursos de ódio resulta na invasão do Congresso, da Academia de Alcochete, do pogrom contra os judeus na Noite de Cristal… Vimos antes e continuamos a ver. Deflagra-se uma catarse de grupo irracional, comprovada por um repórter da ITV no momento de ocupação do Congresso: perguntando a um manifestante qual o propósito da invasão, outro responde enquanto avança “como posso saber isso?” Apesar de tudo não entendo o funcionamento de certas empresas, por exemplo o Twitter, que ao longo do tempo teve sobejos motivos para encerrar a conta do presidente, apenas ganhando coragem para o fazer agora que ele será substituído. Sim, ajudou bastante o incidente ser gravíssimo, mas não admira se o interesse residir no fluxo económico gerado pela conta, já vimos antes, desde o simultâneo financiamento a Napoleão e à Inglaterra, à revolução russa, ao III Reich, e por aí fora…

Em Portugal os debates entre candidatos presidenciais têm atingido notoriedade, destacando-se André Ventura que propaga um discurso populista, prestando-se a inúmeros memes e comentários, igualmente evidenciados na importância que aqui dou. Após ter lutado para balizar o seu espaço à direita, eliminando a concorrência e apontando inimigos do outro lado do espectro, estabeleceu-se num modelo de comunicação impactante, diferente dos da sua área. Reparem na quantidade de vezes que repete slogans inconsequentes do tipo “eu nunca vou ser presidente do Sócrates, dos pedófilos, dos ciganos, do Pedro Dias, da mãe da Joana” ou “enquanto os portugueses estavam confinados em casa e não podiam sair à rua, o governo abriu as prisões e pôs cá fora a bandidagem”. O discurso político não difere do que produz enquanto opinante de futebol, semelhante ao ouvido nas conversas de café (o fórum português correspondente à cervejaria alemã), em que um penalty se escrutina à lupa, onde todos se servem das regras do jogo ou de outros casos para fundamentar convicções, mas cada um fica “na sua verdade” em função da cor clubista, raramente acordando sobre “factos”. Se são factos, porque não há consonância? A diferença de Ventura para os colegas de café é que ele é mais declarativo e convincente, daí alguns afirmarem que discordam aqui e ali, admitindo no entanto que ele “diz as verdades”, tal como o outro as dizia nas brauereien. Está ciente do efeito das suas invectivas, e sem disfarçar o orgulho declara “não ter medo das palavras”. Sendo assim há uma coisa em que coincidimos: mais tarde ou mais cedo tende a ser a terceira força política em Portugal, afinal uma porção cada vez maior de portugueses, por inactividade ou entretenimento, frequenta cafés onde disserta deste modo, sem nada a perder. Também sem nada a perder, Ventura não é original na medida em que modelos análogos ao seu são “anti-sistema”… até se instalarem nele; depois vampirizam-no a seu favor. Não perdi tempo a escrutinar acusações feitas pelos adversários, todavia para escrever isto dei-me ao trabalho de verificar factos que apresentou enfaticamente, e quase todos têm problemas, desde meias-verdades, à falta de contexto; no fundo como as conversas de café. É-lhe indiferente, pela rapidez e variedade da informação ninguém fará essa avaliação, o que fica no ar é a palavra assertiva que de tanto reiterada inculca-se no espírito por via emotiva, permeando o pensamento que se vai modelando mediante uma espécie de programação neuro-linguística; ao fim de algum tempo de exposição a este discurso, uma pessoa “é” este discurso. Dir-me-ão que todos fazem isso, todavia não reconheço em nenhum candidato o potencial desavergonhadamente cínico, oportunista e destrutivo de Ventura, sem ideais, centrado somente em servir o seu ego. Se algum dia chegar à presidência pelo voto, sairá de lá da mesma maneira que Trump, isto se o Estado ainda mantiver a orgânica actual. Notaa reter: quem passou a vida a cuidar de não ser enganado por mentiras, de futuro terá de cuidar para não ser enganado por verdades. Nas “true news” a atenção é no foco.  

Em 1987 o jornal “Folha de S.Paulo” lançou um spot televisivo que ganharia o Leão d’Ouro de Cannes. Veem-se vários pontos indistintos enquanto a câmara lentamente se afasta deles e uma voz off diz “Este homem pegou uma nação destruída, recuperou a economia e devolveu o orgulho ao seu povo. Em seus 4 primeiros anos de governo o número de desempregados caiu de 6 milhões para 900 mil pessoas. Este homem fez o PIB crescer 102% e a renda per capita dobrar. Aumentou os lucros das empresas de 175 milhões para 5 bilhões de marcos e reduziu uma hiper inflacção a um máximo de 25% ao ano. Este homem adorava música e pintura, e quando jovem imaginava seguir a carreira artística.” Finalmente a câmara mostra um plano aberto do conjunto dos pontos e percebemos que estes compõem a imagem de Hitler. A voz off remata: “É possível contar um monte de mentiras dizendo só a verdade”.

*Músico e embaixador do Plataforma

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Meio de comunicação social generalista, com foco na relação entre os Países de Língua Portuguesa e a China

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